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terça-feira, 29 de janeiro de 2013


Em dia com o Machado 34 (jlo)

 

            Amiga leitora, você que é mãe e educadora por excelência, cuida bem de teus filhos desde pequeno, para que, mais tarde, esse lindo pimpolho ou pimpolha não venha a ter sérios problemas de relacionamento social.

            Explico-me. Geraldino, quando tinha seis anos, foi levado pela irmã a sua primeira escola primária. Ali foi deixado aos cuidados das madres e professoras, pois o colégio era administrado por freiras.

            Logo no recreio da primeira aula, no pátio da escola, encontrou um menino um pouco maior que ele e se aproximou tentando fazer amizade. Para sua surpresa, porém, o colega ameaçou-o com as seguintes palavras: — Você não tem medo de mim? Se eu quiser, posso lhe bater...

            Nenhum adulto perto, para orientar ambas as crianças. Por certo, o ameaçador já ouvira ameaça semelhante de outra criança maior que ele e agora, como bom discípulo, “educava” Geraldino.

            Em sua casa, Geraldino fora “orientado” por seu pai: — Não quero que você brinque com moleques. E tem mais, se chegar em casa chorando por ter apanhado na rua, apanha também de mim.

            Ó tempos! Ó equívocos, em que a educação tinha por base a pancadaria intimidatória e as crianças precisavam deduzir, das palavras paternas, o que precisariam fazer para a sobrevivência num mundo em que os fracos não tinham vez. Dedução de Geraldino: todos os meninos são “moleques” e qualquer um que me der um tapa deve levar, no mínimo dois. Chegar em casa chorando por ter apanhado, jamais, pois tenho que mostrar a papai que sou o mais forte de todos os que atravancarem meu caminho.

            Resultado, Geraldino não podia ver outra criança, maior ou menor que ele, que já lhe parecia estar diante de um inimigo. Sem noção das próprias capacidades físicas, muitas vezes, batia em crianças menores que ele e enfrentava, nem sempre com sucesso, outras, maiores ou iguais. Mas, se chegasse em casa com o nariz sangrando ou com o olho roxo, dizia que levara um tombo, na rua. Melhor passar por acidentado em uma queda do que dizer a verdade e apanhar duas vezes.

            O tempo passou, Geraldino cresceu, casou-se, teve filhos e, agora, como avô de um dos filhos de seu filho, jogava bola com o neto de três anos, em um pequeno campo, ao lado de um parquinho, quando aproximou-se um pirralho de menos de três anos (mais precisamente, dois anos e oito meses, segundo a mãe) e pediu, educadamente: — Posso jogar?

            — Claro, disse o vovô, vamos combinar assim, jogam vocês dois contra mim.

            Geraldino percebeu que seu neto não gostou da ideia. Passava a bola para o neto Zezinho e este nunca a passava para Caio, o novo amiguinho. Então, o avô resolveu repassar a bola para Caio, que a chutava em direção ao gol e gritava, contente, a cada tento marcado no gol vazio. Às vezes, corria em direção contrária, mas era orientado a chutar no gol ou para Zezinho, este, porém, nunca a devolvia para o coleguinha e, sim, para o avô.

            Em dado momento, Zezinho deixou Geraldino e Caio brincando sozinhos e se afastou para trás de um pequeno arbusto, ali ficando sem querer participar da brincadeira com o novo amiguinho.

            Priscila, a mãe de Caio, aproximou-se de Zezinho e tentou, de todas as formas, convencê-lo a brincar com seu filho. Tudo inútil.

            Geraldino, por sua vez, propôs-lhe ser o juiz e jogarem os dois meninos. Para sua surpresa, Zezinho respondeu-lhe: — Então, jogam vocês dois. Eu serei o juiz.

            Vendo que Zezinho nada queria com ele, Caio afastou-se, seguido pela mãe e, com certa relutância, Zezinho foi levado de volta a casa, nas costas do avô.

            Ao chegarem, a mãe de Zezinho estranhou sua cara zangada, e Geraldino contou-lhe o ocorrido. Ouvindo isso, a ama do menino, não perdeu tempo e saiu em sua defesa: — Ele é muito bom menino. O que aconteceu foi que, outro dia, um menino maior que ele o ameaçou no parquinho dizendo que ia lhe bater. Ao ouvir isso, Zezinho respondeu-lhe: — Mas você não é meu amigo? E o menino voltou a dizer, agressivo: — Não! Eu vou é lhe dar uma surra.

            Mães e pais, acompanhem seus filhos pequeninos em seus folguedos e amizades, para que o círculo vicioso da maldade e ignorância não lhes invadam a frágil cabecinha! Provavelmente, aquele menino estava repassando o que aprendera com outro maior que ele, e agora, Zezinho recebera o primeiro aviso de que meninos maiores não são amigos de outros, pequeninos, a quem lhes cabe intimidar.

            Não deixem, sempre, seus filhos com suas amas. Procurem mostrar-lhes que o mundo lá fora é bom, que apenas algumas crianças não estão sendo bem-educadas, entretanto, cabe-lhes como crianças, não maltratarem as outras, principalmente quando estas são menores que elas.

            O acompanhamento paterno, em especial na idade infantil dos filhos, é fundamental a que não ocorram complexos futuros e aversão ao meio social. Outros perigos podem surgir, como o de adultos inescrupulosos, que praticam a pedofilia, como a influência negativa de personalidades infantis desestruturadas pela própria desestabilização de seus lares, como o da omissão de socorro e de orientação, junto ao despreparo daqueles que não se sentem na obrigação de educar os filhos alheios. E assim por diante.

            Procurem saber de seus filhos, quando não estiverem com eles, como estão sendo tratados, por coleguinhas e adultos. E não julguem que seus filhos sejam melhores que os dos outros, mas acompanhem seus passos, proximamente ou a distância, diariamente, para que eles cresçam com a mente sadia, o corpo são e contribuam para a melhoria da sociedade, com a qual interajam sempre positivamente.

            Se desejamos um mundo melhor para nossos filhos, é preciso ser seus amigos e confidentes antes mesmo de seus primeiros passos. E orientá-los adequadamente, sem ameaça, mas com muito amor e compreensão.

domingo, 27 de janeiro de 2013


Uma visita de Alcebíades

CARTA DO DESEMBARGADOR X... AO CHEFE DE POLÍCIA DA CORTE

            Corte, 20 de setembro de 1875.

             Desculpe V. Ex.ª o tremido da letra e o desgrenhado do estilo; entendê-los-á daqui a pouco.

            Hoje, à tardinha, acabado o jantar, enquanto esperava a hora do Cassino, estirei-me no sofá e abri um tomo de Plutarco. V. Ex.ª, que foi meu companheiro de estudos, há de lembrar-se que eu, desde rapaz, padeci esta devoção do grego; devoção ou mania, que era o nome que V. Ex.ª lhe dava, e tão intensa que me ia fazendo reprovar em outras disciplinas. Abri o tomo, e sucedeu o que sempre se dá comigo quando leio alguma coisa antiga: transporto-me ao tempo e ao meio da ação ou da obra. Depois de jantar é excelente. Dentro de pouco acha-se a gente numa via romana, ao pé de um pórtico grego ou na loja de um gramático.

           Desaparecem os tempos modernos, a insurreição da Herzegovina, a guerra dos carlistas, arua do Ouvidor, o circo Chiarini. Quinze ou vinte minutos de vida antiga, e de graça. Uma verdadeira digestão literária.

            Foi o que se deu hoje. A página aberta acertou de ser a vida de Alcibíades. Deixei-me ir ao sabor da loquela ática; daí a nada entrava nos jogos olímpicos, admirava o mais guapo dos atenienses, guiando magnificamente o carro, com a mesma firmeza e donaire com que sabia reger as batalhas, os cidadãos e os próprios sentidos. Imagine V. Ex.ª se vivi! Mas, o moleque entrou e acendeu o gás; não foi preciso mais para fazer voar toda a arqueologia da minha imaginação. Atenas volveu à história, enquanto os olhos me caíam das nuvens, isto é, nas calças de brim branco, no paletó de alpaca e nos sapatos de cordovão. E então refleti comigo:

            — Que impressão daria ao ilustre ateniense o nosso vestuário moderno?

            Sou espiritista desde alguns meses. Convencido de que todos os sistemas são puras niilidades, resolvi adotar o mais recreativo deles. Tempo virá em que este não seja só recreativo, mas também útil à solução dos problemas históricos; é mais sumário evocar o espírito dos mortos, do que gastar as forças críticas, e gastá-las em pura perda, porque não há raciocínio nem documento que nos explique melhor a intenção de um ato do que o próprio autor do ato. E tal era o meu caso desta noite. Conjeturar qual fosse a impressão de Alcibíades era despender o tempo, sem outra vantagem, além do gosto de admirar a minha própria habilidade. Determinei, portanto, evocar o ateniense; pedi-lhe que comparecesse em minha casa, logo, sem demora.

            E aqui começa o extraordinário da aventura. Não se demorou Alcibíades em acudir ao chamado; dois minutos depois estava ali, na minha sala, perto da parede; mas não era a sombra impalpável que eu cuidara ter evocado pelos métodos da nossa escola; era o próprio Alcibíades, carne e osso, vero homem, grego autêntico, trajado à antiga, cheio daquela gentileza e desgarre com que usava arengar às grandes assembléias de Atenas, e também, um pouco, aos seus pataus. V. Ex.ª, tão sabedor da história, não ignora que também houve pataus em Atenas; sim, Atenas também os possuiu, e esse precedente é uma desculpa. Juro a V. Ex.ª que não acreditei; por mais fiel que fosse o testemunho dos sentidos, não podia acabar de crer que tivesse ali, em minha casa, não a sombra de Alcibíades, mas o próprio Alcibíades redivivo. Nutri ainda a esperança de que tudo aquilo não fosse mais do que o efeito de uma digestão mal rematada, um simples eflúvio do quilo, através da luneta de Plutarco; e então esfreguei os olhos, fitei-os, e...

            — Que me queres? perguntou ele.

            Ao ouvir isto, arrepiaram-se-me as carnes. O vulto falava e falava grego, o mais puro ático. Era ele, não havia duvidar que era ele mesmo, um morto de vinte séculos, restituído à vida, tão cabalmente como se viesse de cortar agora mesmo a famosa cauda do cão. Era claro que, sem o pensar, acabava eu de dar um grande passo na carreira do espiritismo; mas, ai de mim! não o entendi logo, e deixei-me ficar assombrado. Ele repetiu a pergunta, olhou em volta de si e sentou-se numa poltrona. Como eu estivesse frio e trêmulo (ainda o estou agora) ele que o percebeu, falou-me com muito carinho, e tratou de rir e gracejar para o fim de devolver-me o sossego e a confiança. Hábil como outrora! Que mais direi a V. Ex.ª? No fim de poucos minutos conversávamos os dois, em grego antigo, ele repotreado e natural, eu pedindo a todos os santos do céu a presença de um criado, de uma visita, de uma patrulha, ou, se tanto fosse necessário, - de um incêndio.

            Escusado é dizer a V. Ex.ª que abri mão da ideia de o consultar acerca do vestuário moderno; pedira um espectro, não um homem "de verdade", como dizem as crianças. Limitei-me a responder ao que ele queria; pediu-me notícias de Atenas, dei-lhas; disse-lhe que ela era enfim a cabeça de uma só Grécia, narrei-lhe a dominação muçulmana, a independência, Botzaris, lord Byron. O grande homem tinha os olhos pendurados da minha boca; e, mostrando-me admirado de que os mortos lhe não houvessem contado nada, explicou-me que à porta do outro mundo afrouxavam muito os interesses deste. Não vira Botzaris nem lord Byron, - em primeiro lugar, porque é tanta e tantíssima a multidão de espíritos, que estes se fazem naturalmente desencontrados; em segundo lugar, porque eles lá congregam-se, não por nacionalidades ou outra ordem, senão por categorias de índole, costume e profissão: assim é que ele, Alcibíades, anda no grupo dos políticos elegantes e namorados, com o duque de Buckingham, o Garrett, o nosso Maciel Monteiro, etc. Em seguida pediu-me notícias atuais; relatei-lhe o que sabia, em resumo; falei-lhe do parlamento helênico e do método alternativo com que Bulgaris e Comondouros, estadistas seus patrícios, imitam Disraeli e Gladstone, revezando-se no poder, e, assim como estes, a golpes de discurso. Ele, que foi um magnífico orador, interrompeu-me:

            — Bravo, atenienses!

            Se entro nestas minúcias é para o fim de nada omitir do que possa dar a V. Ex.ª o conhecimento exato do extraordinário caso que lhe vou narrando. Já disse que Alcibíades escutava-me com avidez; acrescentarei que era esperto e arguto; entendia as coisas sem largo dispêndio de palavras. Era também sarcástico; ao menos assim me pareceu em um ou dois pontos da nossa conversação; mas no geral dela, mostrava-se simples, atento, correto, sensível e digno. E gamenho, note V. Ex.ª, tão gamenho como outrora; olhava de soslaio para o espelho, como fazem as nossas e outras damas deste século, mirava os borzeguins, compunha o manto, não saía de certas atitudes esculturais.

            — Vá, continua, dizia-me ele, quando eu parava de lhe dar notícias.

            Mas eu não podia mais. Entrado no inextricável, no maravilhoso, achava tudo possível, não atinava por que razão, assim, como ele vinha ter comigo ao tempo, não iria eu ter com ele à eternidade. Esta ideia gelou-me. Para um homem que acabou de digerir o jantar e aguarda a hora do Cassino, a morte é o último dos sarcasmos.

            Se pudesse fugir... Animei-me: disse-lhe que ia a um baile.

            — Um baile? Que coisa é um baile?

            Expliquei-lho.

            — Ah! ver dançar a pírrica!

            — Não, emendei eu, a pírrica já lá vai. Cada século, meu caro Alcibíades, muda de danças como muda de ideias. Nós já não dançamos as mesmas coisas do século passado; provavelmente o século XX não dançará as deste. A pírrica foi-se, com os homens de Plutarco e os numes de Hesíodo.

            — Com os numes?

            Repeti-lhe que sim, que o paganismo acabara, que as academias do século passado ainda lhe deram abrigo, mas sem convicção, nem alma, que as mesmas bebedeiras arcádicas,

Evoé! padre Bassareu!
                                      Evoé! etc.
honesto passatempo de alguns desembargadores pacatos, essas mesmas estavam curadas, radicalmente curadas. De longe em longe, acrescentei, um ou outro poeta, um ou outro prosador alude aos restos da teogonia pagã, mas só o faz por gala ou brinco, ao passo que a ciência reduziu todo o Olimpo a uma simbólica. Morto, tudo morto.

            — Morto Zeus?

            — Morto.

            — Dionisos, Afrodita?...

            — Tudo morto.

            O homem de Plutarco levantou-se, andou um pouco, contendo a indignação, como se dissesse consigo, imitando o outro: — Ah! se lá estou com os meus atenienses! - Zeus, Dionisos, Afrodita... murmurava de quando em quando. Lembrou-me então que ele fora uma vez acusado de desacato aos deuses e perguntei a mim mesmo donde vinha aquela  indignação póstuma, e naturalmente postiça. Esquecia-me, - um devoto do grego! -esquecia-me que ele era também um refinado hipócrita, um ilustre dissimulado. E quase não tive tempo de fazer esse reparo, porque Alcibíades, detendo-se repentinamente, declarou-me que iria ao baile comigo.

            — Ao baile? repeti atônito.

            — Ao baile, vamos ao baile.

            Fiquei aterrado, disse-lhe que não, que não era possível, que não o admitiriam, com aquele trajo; pareceria doido; salvo se ele queria ir lá representar alguma comédia de Aristófanes, acrescentei rindo, para disfarçar o medo. O que eu queria era deixá-lo, entregar-lhe a casa, e uma vez na rua, não iria ao Cassino, iria ter com V. Ex.ª. Mas o diabo do homem não se movia; escutava-me com os olhos no chão, pensativo, deliberante. Calei-me; cheguei a cuidar que o pesadelo ia acabar, que o vulto ia desfazer-se, e que eu ficava ali com as minhas calças, os meus sapatos e o meu século.

            — Quero ir ao baile, repetiu ele. Já agora não vou sem comparar as danças.

            — Meu caro Alcibíades, não acho prudente um tal desejo. Eu teria certamente a maior honra, um grande desvanecimento em fazer entrar no Cassino, o mais gentil, o mais feiticeiro dos atenienses; mas os outros homens de hoje, os rapazes, as moças, os velhos... é impossível.

            — Por quê?

            — Já disse; imaginarão que és um doido ou um comediante, porque essa roupa...
            — Que tem? A roupa muda-se. Irei à maneira do século. Não tens alguma roupa que me

emprestes?

            Ia a dizer que não; mas ocorreu-me logo que o mais urgente era sair, e que uma vez na rua, sobravam-me recursos para escapar-lhe, e então disse-lhe que sim.

            — Pois bem, tornou ele levantando-se, irei à maneira do século. Só peço que te vistas primeiro, para eu aprender e imitar-te depois.

            Levantei-me também, e pedi-lhe que me acompanhasse. Não se moveu logo; estava assombrado.

            Vi que só então reparara nas minhas calças brancas; olhava para elas com os olhos arregalados, a boca aberta; enfim, perguntou por que motivo trazia aqueles canudos de pano. Respondi que por maior comodidade; acrescentei que o nosso século, mais recatado e útil do que artista, determinara trajar de um modo compatível com o seu decoro e gravidade. Demais nem todos seriam Alcibíades. Creio que o lisonjeei com isto; ele sorriu e deu de ombros.

            — Enfim!

            Seguimos para o meu quarto de vestir, e comecei a mudar de roupa, às pressas. Alcibíades sentou-se molemente num divã, não sem elogiá-lo, não sem elogiar o espelho, a palhinha, os quadros. - Eu vestia-me, como digo, às pressas, ansioso por sair à rua, por meter-me no primeiro tílburi que passasse...

            — Canudos pretos! exclamou ele.

            Eram as calças pretas que eu acabava de vestir. Exclamou e riu, um risinho em que o espanto vinha mesclado de escárnio, o que ofendeu grandemente o meu melindre de homem moderno. Porque, note V. Ex.ª ainda que o nosso tempo nos pareça digno de crítica, e até de execração, não gostamos de que um antigo venha mofar dele às nossas barbas. Não respondi ao ateniense; franzi um pouco o sobrolho e continuei a abotoar os suspensórios. Ele perguntou-me então por que motivo usava uma cor tão feia...

            — Feia, mas séria, disse-lhe. Olha, entretanto, a graça do corte, vê como cai sobre o sapato, que é de verniz, embora preto, e trabalhado com muita perfeição.

            E vendo que ele abanava a cabeça:

            — Meu caro, disse-lhe, tu podes certamente exigir que o Júpiter Olímpico seja o emblema eterno da majestade: é o domínio da arte ideal, desinteressada, superior aos tempos que passam e aos homens que os acompanham. Mas a arte de vestir é outra coisa. Isto que parece absurdo ou desgracioso é perfeitamente racional e belo, - belo à nossa maneira, que não andamos a ouvir na rua os rapsodos recitando os seus versos, nem os oradores os seus discursos, nem os filósofos as suas filosofias. Tu mesmo, se te acostumares a ver-nos, acabarás por gostar de nós, porque...

            — Desgraçado! bradou ele atirando-se a mim.

            Antes de entender a causa do grito e do gesto, fiquei sem pinga de sangue. A causa era uma

ilusão. Como eu passasse a gravata à volta do pescoço e tratasse de dar o laço, Alcibíades supôs que ia enforcar-me, segundo confessou depois. E, na verdade, estava pálido, trêmulo, em suores frios. Agora quem se riu fui eu. Ri-me, e expliquei-lhe o uso da gravata e notei que era branca, não preta, posto usássemos também gravatas pretas. Só depois de tudo isso explicado é que ele consentiu em restituir-ma. Atei-a enfim, depois vesti o colete.

            — Por Afrodita! exclamou ele. És a coisa mais singular que jamais vi na vida e na morte. Estás todo cor da noite - uma noite com três estrelas apenas - continuou apontando para os botões do peito. O mundo deve andar imensamente melancólico, se escolheu para uso uma cor tão morta e tão triste. Nós éramos mais alegres; vivíamos...

            Não pôde concluir a frase; eu acabava de enfiar a casaca, e a consternação do ateniense foi indescritível. Caíram-lhe os braços, ficou sufocado, não podia articular nada, tinha os olhos cravados em mim, grandes, abertos. Creia V. Ex.ª que fiquei com medo, e tratei de apressar ainda mais a saída.

            — Estás completo? perguntou-me ele.

            — Não: falta o chapéu.

            — Oh! venha alguma coisa que possa corrigir o resto! tornou Alcibíades com voz suplicante. Venha, venha. Assim pois, toda a elegância que vos legamos está reduzida a um par de canudos fechados e outro par de canudos abertos (e dizia isto levantando-me as abas da casaca), e tudo dessa cor enfadonha e negativa? Não, não posso crê-lo! Venha alguma coisa que corrija isso. O que é que, falta, dizes tu?

            — O chapéu.

            - Põe o que te falta, meu caro, põe o que te falta.

            Obedeci; fui dali ao cabide, despendurei o chapéu, e pu-lo na cabeça. Alcibíades olhou para mim, cambaleou e caiu. Corri ao ilustre ateniense, para levantá-lo, mas (com dor o digo) era tarde; estava morto, morto pela segunda vez. Rogo a V. Ex.ª se digne de expedir suas respeitáveis ordens para que o cadáver seja transportado ao necrotério, e se proceda ao corpo de delito, relevando-me de não ir pessoalmente à casa de V. Ex.ª agora mesmo (dez da noite) em atenção ao profundo abalo por que acabo de passar, o que aliás farei amanhã de manhã, antes das oito.

FIM


Análise (jlo)


            Esse conto foi publicado na obra Papéis avulsos, de Machado de Assis, em 1882. É o terceiro livro da chamada fase realista do nosso maior escritor, com a característica da narrativa curta, o que era novidade em sua época. Retrata o primeiro personagem espírita, mas a intenção do autor não é representar fielmente a Doutrina Espírita e, sim, com base no aspecto da carnavalização literária proposta por Bakhtin e no aspecto burlesco da sátira menipeia, expor a contradição entre os costumes de épocas distintas. A ideia principal é criticar os costumes culturais e estéticos da sociedade em que vivia o autor.

            O narrador havia acabado de jantar, o que ocorria à tardinha, em seu tempo, e esperava a “hora do Cassino”, o que demonstra ser hábito comum do personagem o dos jogos. Confessa, entretanto que se tornara espírita e desejava, como bom cultor do conhecimento grego, conversar com o espírito de Alcibíades, ateniense sobrinho de Péricles, célebre e influente estadista, orador e general da Grécia antiga e também a maior personalidade política do século XV, na chamada “Era de ouro de Atenas”. Outra característica de Péricles é que ele é considerado um dos mais importantes líderes democráticos atenienses (Disponível em: www.wikipedia.org. Acesso em 26 de janeiro de 2013.).

            Charles Baudelaire, poeta e crítico francês, escreveu que “Cada século e cada povo tem a sua própria expressão de beleza e de moral”. Nesse conto, Machado desenvolve justamente a questão dos conflitos culturais entre personagens de épocas distintas, ou seja, um deles vindo do século XV e o outro estando no século XIX. A narração enfoca, principalmente, o espanto de ambos os personagens em relação aos trajes de cada um. As vestes, segundo o Dicionário de símbolos (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2006 ), simbolizam a forma visível do homem interior, o lado exterior da manifestação espiritual. A modificação da roupa, do século do personagem grego para o do século XIX manifesta, para o desembargador, uma evolução social, enquanto para o grego, uma agressão a sua cultura e uma aberração de costume. A roupa não somente indica a “consciência de si mesmo”, o “aspecto moral” do ser humano (os animais não se vestem), como também representa seu desejo de influenciar.

            É importante observar que o narrador, de início, trajava uma calça branca, símbolo de pureza, e, quando a troca para a de cor preta, causa profunda estranheza em Alcibíades, uma vez que, em geral, essa cor simboliza o aspecto negativo, a morte. Ironicamente, a gravata, que era branca e, portanto, simbolizava a pureza, foi interpretada por Alcibíades como instrumento de enforcamento do seu interlocutor, pelo que tomou-lhe o acessório em sobressalto, justamente quando este justificava a mudança de costumes das épocas distintas.

            Depois do colete e da casaca, que continuaram a causar espécie a Alcibíades, o narrador informou-lhe que ainda faltava um último acessório: o chapéu. O espírito materializado ainda esperou, na esperança de, após tanto disparate em forma de vestiário, ver alguma coisa que corrigisse a extravagância da roupa do desembargador. Ao vê-lo de chapéu, porém, o susto foi tão grande que Alcibíades morreu pela segunda vez.

            O chapéu simboliza o poder, a mudança de costumes (ideias), da visão do mundo. É ele que “cobre a cabeça do chefe” (op. cit.). Daí explicar-se o choque mortal recebido pelo grego.

            No conto, podemos identificar igualmente um outro aspecto espacial: a questão das distâncias, proposta por Hall (2005). Para ele, podemos classificar, didaticamente, quatro tipos de distâncias: íntima, pessoal, social e pública. Cada uma delas possui uma fase próxima e outra remota. Em suas fases, respectivamente, próxima e remota, a íntima vai de um contato corpo a corpo e entre 15 cm a 45 cm; a pessoal fica entre 45 e 75 cm e  75 cm a 1,20 m; a social vai de 1,20 m a 2,20 m e de 2,10 m a 3,60m ; por fim,  a pública fica entre 3,60/7,50 m e a partir de 7,50 m. Nesse conto, a distância que se pode estimar, entre os interlocutores é a social.

            Na distância social da fase próxima as pessoas ficam de 1,20 m a 2,10 m uma da outra, o que se pode deduzir que ocorreu na sala onde apareceu, “em carne e osso” o espírito Alcibíades, que, após as saudações iniciais e, ante o espanto do narrador, sentou-se numa poltrona e entabulou com este uma conversa sobre fatos históricos relacionados a Atenas e à Grécia, após o evocado acalmar o desembargador e rir-se deste. No momento em que o narrador se afasta para pegar o chapéu, a fase da distância social aumenta e torna-se remota (entre 2,10 m e 3,60m). Quando o narrador volta com o chapéu na cabeça, a distância volta a ser próxima e a visão dos trajes extravagantes do desembargador, com a cabeça coberta, é-lhe fatal.

            Quanto à distância entre o desembargador, que escreve ao chefe de polícia da corte, essa não se enquadra em nenhuma das especificadas, mas poderíamos considerar que, espacialmente, há entre ambos, simbolicamente, uma remota distância pública e uma próxima distância pessoal, tendo em vista o coleguismo entre ambos, desde os tempos de estudos.

            Este conto demonstra-nos que tudo é fugaz  na vida social. Com a mudança das épocas, as tendências estéticas e culturais são efêmeras, e o conceito de beleza e elegância muda-se radicalmente de uma época para outra. Para haver mudança, entretanto, é necessária uma adaptação pessoal ao longo do tempo e do espaço. Caso contrário, o choque provocado por uma transformação social inadmitida é crucial.

       

Referências


BORGES FILHO, Ozíris; BARBOSA, Sidney. Organizadores. Poéticas do espaço literário. São Carlos, SP: Claraluz, 2009.


BORGES FILHO, Ozíris. Espaço & literatura: introdução à topoanálise. Franca, SP: Ribeirão Gráfica e Ed., 2007.


CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 20. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.


HALL, Edward. Distâncias no ser humano. In: A dimensão oculta. São Paulo: Martins Fontes, 2005.


REGO, Enylton de Sá. O calundu e a panaceia: Machado de Assis, a sátira menipeia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.


www.Wikipedia.org.br. Péricles. Acesso em 26 jan. 2013.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013


Em dia com o Machado 33 (jlo)

            Há pouco tempo (2012), desencarnou um articulista extraordinário: MillôR Fernandes. Uma característica dele, meu caro leitor, era escrever seu nome de uma forma diferente a cada vez que publicava um texto em um periódico. Jornalista, escritor, cartunista, dramaturgo e humorista de um humor inteligente como o de poucos, MillÔr descobriu, aos 17 anos que seu nome de batismo “Milton” fora escrito de forma equivocada, mais parecendo “MilLôr”. Gostou tanto da ideia que a adotou para o resto da vida.
            MiLlôr, que desencarnou aos 87 anos, ficou órfão de pai com um ano de idade e, aos dez perdeu a mãe. Tornou-se ateu, desde então, dizia...
            Iniciou sua carreira jornalística aos 14 anos e, aos 19, juntou-se com um grupo de jovens jornalistas articuladores da revista “O Cruzeiro” que, em poucos anos, elevou a tiragem de 11.000 a 750.000 exemplares semanais.
            Suas frases trocadilhescas, de cunho satírico são altamente criativas. Vamos a algumas:
“O futuro chegou com tanta rapidez que começo a desconfiar que agora ele já está atrás de mim”.
“O verdadeiro milagre brasileiro: uma democracia completamente isenta de democratas.”
“À minha volta todos, sempre reclamando de carga de imposto, do governo impostor, de bitributação. Não entendo. Ainda reclamam. E se o governo resolver cobrar mesmo a TRIbutação?”.
 “Um recém-nascido é a prova de que a natureza não desistiu do ser humano. Já os pró-aborto. Já os pró-eutanásia.” (sic)
            Sobre a questão do julgamento, vejamos o que escreveu numa de suas “fábulas”:

Abriu a porta e viu o amigo que há tanto não via. Estranhou apenas que ele, amigo, viesse acompanhado de um cão. O cão não muito grande, mas bastante forte, de raça indefinida, saltitante e com um ar alegremente agressivo. Abriu a porta e cumprimentou o amigo, com toda efusão. "Quanto tempo!". O cão aproveitou as saudações, se embarafustou casa adentro e logo o barulho na cozinha demonstrava que ele tinha quebrado alguma coisa.

O dono da casa encompridou um pouco as orelhas, o amigo visitante fez um ar de que a coisa não era com ele. "Ora, veja você, a última vez que nos vimos foi..." "Não, foi depois, na..." "E você, casou também?" O cão passou pela sala, o tempo passou pela conversa, o cão entrou pelo quarto e novo barulho de coisa quebrada. Houve um sorriso amarelo por parte do dono da casa, mas perfeita indiferença por parte do visitante. "Quem morreu definitivamente foi o tio... você se lembra dele?" "Lembro, ora, era o que mais... não?"

O cão saltou sobre um móvel, derrubou o abajur, logo trepou com as patas sujas no sofá (o tempo passando) e deixou lá as marcas digitais de sua animalidade. Os dois amigos, tensos, agora preferiam não tomar conhecimento do dogue. E, por fim, o visitante se foi. Se despediu, efusivo como chegara, e se foi. Se foi.

Mas ainda ia indo, quando o dono da casa perguntou: "Não vai levar o seu cão?" "Cão? Cão? Cão? Ah, não! Não é meu, não. Quando eu entrei, ele entrou naturalmente comigo e eu pensei que fosse seu. Não é seu, não?"

Moral: Quando notamos certos defeitos nos amigos, devemos sempre ter uma conversa esclarecedora.

            Para nossa reflexão final, amigo leitor, mais duas frases fabulosas desse não menos fabuloso escritor:
          “Claro, sabemos muito bem que VOCÊ, aí de cima, não tem mais como evitar o nascimento e a morte. Mas não pode, pelo menos, melhorar um pouco o intervalo?”
                        Esse é o MIllôr, que nos deixou fisicamente, por uma mera circunstância de tempo dilatado, conforme seu pedido ao Criador. Foram 87 anos de pura genialidade e de uma alma generosa, cujo único objetivo era divertir e divertir-se, ainda que, por vezes, suas tiradas humorísticas tivessem alvos certeiros, em especial, na política.
            “Não. Nada que faço tem um significado especial, ou algum outro. As circunstâncias traçam os acontecimentos e eu as sigo. Claro, faço parte das circunstâncias que alguém vai seguir.”

            Entendo... Eu também já disse algo parecido no século XIX. Quando quiser, venha tomar um cafezinho aqui em casa.         
            Até breve, millôr; um grande abraço, MILLÔR!

Fonte de consulta:
Disponível em: <www2.uol.com.br/millor/frases/fraes>: Millôr online. Acesso em 21 jan. 2013.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013


            Machado por ele mesmo (4) – Balas de estalo - 30 novembro 1865.


         Achei agora mesmo na rua um pedacinho de jornal, coisa de três dedos de altura e pouco mais de largura. A minha regra, em tais casos, é deixar o papel onde está: é a do meu vizinho, e provavelmente a do gênero humano. Mas, não sei por que, deu-me cócegas de apanhar este; lembrei-me de certa máxima que ouvi proferir em um drama, que aqui se representou há muitos anos, quando as galinhas ainda tinham dentes: "não se deve deixar rolar papel nenhum''. E vai então inclinei-me, apanhei-o e li este anúncio:

Contratam-se coristas de ambos os sexos no Teatro Politeama; preferem-se moços que saibam música.

       Antes de mais nada, agradeci à Providência Divina este imenso favor de haver-me deparado alguma coisa que, exprimindo um resto de superstição antiga, dá-me ocasião de pedir a meus contemporâneos que hasteemos audazmente a bandeira da liberdade.

       A razão da superstição é clara. Sociedades políticas que ainda tresandam à Idade Média, em que tudo se dividia em classes, não podem conceber que a liberdade das funções seja um corolário da liberdade das opiniões. Daí a exigência, ainda vulgar, de que os melhores sapatos são os dos sapateiros: erro funesto e odioso, direi até ridículo, que é preciso acabar de uma vez para sempre.

         Quando, por exemplo, certa folha dizia há alguns dias que convinha pôr de lado os políticos de profissão, e votar nos que o não eram, essa folha escrevia uma grande verdade, daquelas que devemos trazer gravadas na alma em letras perpétuas. E não digo isto, nem o disse ela, porque os políticos de profissão não possam exercê-la algumas vezes com vantagem, como Bismark, Pitt, Richelieu e alguns outros; mas porque o monopólio, sendo inimigo nato da liberdade (segundo elegantemente afirma o brigadeiro Calino), faz perdurar o vício medieval que apontei, e impede que outros cidadãos levem ao governo do Estado uma parte das qualidades que lhes são próprias. Além disso, restringindo Bismark à política, impede talvez que haja neste mundo mais um bom escrivão de órfãos e ausentes. O mesmo direi do Sr. Maia.

         Nada de ódios às preferências. Por causa delas, vimos o que aconteceu no matadouro. Mandemos governar o Estado pessoas que não entendam de política; encomendemos as calças aos ourives, e os relógios aos boticários. Só assim chegaremos à perfeita liberdade universal. Tudo que não for isto, é voltar ao regímen das corporações de ofícios; é fazer da sociedade um vasto tabuleiro de xadrez, ou ainda pior; pois neste jogo, se o tabuleiro se divide em quadrados, é certo que as peças vão de um a outro. Na sociedade, como a criaram, as peças têm de ficar onde estão, bispo é bispo, cavalo é cavalo.

         Não, ilustres contemporâneos meus; é evidente que este regímen já deu o seu cacho. A sociedade não pode ser isto. A própria História oferece exemplos salutares. Camões, que se gaba de ter tido em uma das mãos a pena, e na outra a espada, esqueceu dizer se era ele próprio que consertava os seus calções rotos, mas provavelmente era, e ninguém lhe levou a mal. De São Paulo, sabe-se que ora apostolava, ora trabalhava de correeiro, e não lhe saíam mal feitas, nem as correias, nem as epístolas. Reduzamos esses casos raros a um princípio fixo e eterno; tudo para todos; não se preferem moços que saibam música.

            Análise topológica (jlo)

             Como se vê, tudo começa com um simples pedaço de papel, que simboliza a escrita. Nesse sentido, a imaginação do escritor é fértil. Em seguida, faz uma breve descrição do papel achado: “coisa de três dedos de altura e pouco mais de largura”, o que significa que, na horizontalidade, as notícias seriam mais relevantes do que na verticalidade, embora, sendo um pedaço de papel, ambas as dimensões pouco diferenciavam. Sua regra é deixar o papel onde está, e esta regra é a do papel desempenhado pelo gênero humano, ou seja, deixar tudo como está e privilegiar mais a vida na Terra (horizontalidade) que a vida espiritual (verticalidade).

            O papel trazia um anúncio sobre a contratação de coristas de ambos os sexos, com preferência para moços que soubessem música. Quem contrataria seria o Teatro Politeama. Daí, surgem os comentários irônicos do cronista de que seria bobagem julgar que os melhores sapatos são feitos pelo sapateiro e de que os melhores políticos são os de carreira. Então critica o monopólio, inimigo da liberdade, ainda que tenha citado grandes políticos europeus de destaque, como Bismark e Richelieu. “Mandemos governar o Estado pessoas que não entendam de política; encomendemos as calças aos ourives, e os relógios aos boticários. Só assim chegaremos à perfeita liberdade universal”.

            Para finalizar, contesta as peças da sociedade, comparando-as com as do jogo de xadrez, no qual bispo é bispo, cavalo é cavalo. Cita então Camões, que acredita ter feito mais do que ser poeta, mas provavelmente pregava os próprios botões e S. Paulo, que ora pregava o Evangelho, ora trabalhava no ofício de fabricação de correias, o que não lhe saía mal. Então, conclui que, com base nesse princípio, não se deve preferir moços que saibam música.

            O sarcasmo é evidente. O cronista critica o critério óbvio do Teatro Politeama de contratar moços que saibam música. Fica claro que, para ser bom músico, como para ser bom escritor, orador ou bom político, o dom principal de cada um é o de sobressair-se no que faz. Então, analisando-se os aspectos espaciais desta crônica, observamos o trabalho com os gradientes da visão (escrita, produção artesanal), do tato (fabricação de correias e de sapatos) e da audição (discursos políticos e música). Cada um com sua função específica, mas dando-se “a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”, como propôs Jesus (Marcos: 12, 17).
              Por fim, é interessante observar o espaço do papel em analogia com o papel a ser exigido pelo corista de ambos os sexos, mas com preferência para moços. A máxima lembrada pelo narrador é a de que "não se deve deixar rolar papel nenhum". E, nesse sentido, ele enriqueceu a crônica com todo o tipo de papel ao falar do sapateiro, do ourives, do cantor, do político e do apóstolo. Todos têm seu papel, mas a máxima do cronista é que todos devem ter as mesmas oportunidades, além de que ninguém deve se prender a um único papel.

Referências

ALMEIDA, João Ferreira. A Bíblia Sagrada. Evangelho de Marcos. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969.

 CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.

 BORGES FILHO, Ozíris. Espaço & literatura: introdução à topoanálise. Franca, SP: Ribeirão Gráfica e Editora, 2007.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013



Em dia com o Machado 32 (jlo)

            Boa-madrugada!

            Agora, meu prezado leitor e minha querida leitora... Não a que é casada ou comprometida, e sim a que está casada e comprometida comigo... Agora almejo falar-lhes sobre um tema muito comum contemporaneamente: a cota.
            Por que não estabelecer cotas para o feio? Sim, isso mesmo: cota para ele conseguir vaga em um bom emprego, cota para ter acesso às melhores universidades, cota para ser artista ou político, e assim por diante...
            Segundo um estudo publicado no jornal espanhol “El País”, na Austrália, os homens bonitos ganham salários bem maiores do que os feios. Creio, porém, que o resultado da mesma pesquisa se aplica à própria Espanha e ao Brasil.
            O jornalista esclareceu que, a rigor, não se deve falar em homem bonito e sim atraente. E justificou-se dizendo que, nos EUA, por exemplo, o homem que não é feio é chamado handsome. Já as mulheres são, elas sim, chamadas beautiful. O homem está associado ao cravo, a mulher à rosa. O cravo não é bonito e, sim, elegante; a rosa é bonita, linda, maravilhosa...
            Um gaiato, nos comentários à reportagem, disse que, para as mulheres, o importante não é a beleza do homem e, sim, o karatê:
o karatê muito dinheiro;
o karatê muito ouro;
o karatê muitos carros;
o karatê muitos imóveis.
            Não custa lembrar que a pesquisa tomou por base os profissionais da imprensa, artistas e políticos. Ainda bem, mas será que ela não se aplica a muitos outros profissionais? Por exemplo: professores, comerciantes, anunciantes, etc.
            Isso lembra-nos a história que lemos, há algum tempo, sobre uma conversa entre uma belíssima miss com Einstein.
            Dizia ela:
            — Já pensou se nos casássemos e tivéssemos um filho que associasse à minha beleza a sua inteligência?
            Ao que Einstein respondeu-lhe:
            — E se fosse o contrário e ele associasse a sua inteligência à minha beleza?
            Cotas para os feios já!

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013



Em dia com o Machado 31 (jlo)

            Ora, meu caro leitor, como pode uma doutrina que tanta influência provocou na alma de um escritor, que tanto foi comentada por ele, que tanto lhe serviu de mote  em suas crônicas, contos, romances e até em peças teatrais ser menosprezada pelo narrador; mormente quando agora já não são as “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, mas as do próprio Machado que estão sendo expostas, ao serem psicografadas por este meu secretário?
            Já lhe disse alhures, em crônica ulterior: tornei-me espírito-espírita e estou preparando este tolo pretensioso para verter, aos olhos mortais de quem me ler, as minhas notícias atuais. É assim que começo lembrando uma questão de O Livro dos Espíritos sobre o mérito do sacrifício, por alguém, sem segunda intenção, de sua própria vida para o salvamento da vida de outrem (q. 951). “— Isso é sublime”, pois “Todo sacrifício feito à custa da própria felicidade é um ato soberanamente meritório aos olhos de Deus, porque é a prática da lei de caridade”.
            — Do you have a dog?
            Pois esta semana, durante as enchentes ocorridas em Duque de Caxias, um pai e uma filha morreram afogados na tentativa desesperada de salvar seu cãozinho de afogamento. Não sei se o cão se salvou, mas a atitude do casal foi, no mínimo, heroica, conforme o conceito humano. Sua intenção não foi cuidar da própria vida, mas salvar a vida do pobre animal, o que eleva muito o mérito de sua ação diante de Deus.
            Enquanto tantos exterminam seu semelhante por bagatelas, como o caso do assassinato de um cliente por causa de uma diferença de sete reais na conta, há heróis ainda (felizmente), neste mundo, que não receiam arriscar a própria vida para salvar até mesmo a de um animal.
            Isso lembra Francisco de Assis: “— Irmão Vento, irmão Sol, irmã Lua... Irmão Lobo, tu és meu irmão. Rouxinol, sabiá, criaturas de Deus, somos obras da Criação”.
            Um bombeiro foi mais feliz. Conseguiu trazer em seu colo dois gatinhos, que, agradecidos, não reagiram quando ele os abraçou com carinho e salvou do afogamento.
            Quando tais cenas nos são mostradas na TV, refletimos em quanta lição de grandeza espiritual existe no dia a dia da humanidade. Que bom será quando a mídia passar a dar o mesmo destaque e prioridade a essas notícias como os dá às dos crimes e às patifarias políticas em nosso “Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho”, consoante previu meu amigo, também ora escritor do Plano Espiritual, Humberto de Campos, em obra psicografada por Chico Xavier. Uma entre 412 que ele permitiu às “Vozes do Além” transmitirem a este planeta.
            Desencarnei dois anos antes do nascimento desse monumento, desse homem que, em sua humildade, se dizia não passar de um cisco: franCISCO. Cândido como o são as almas elevadas, que não receiam arriscar suas vidas pelos seres da Criação, sejam eles homens ou bichos; alguns mais bichos do que humanos; outros, mais humanos do que bichos.
            Só ratifico o alerta da Espiritualidade Superior, contido nos comentários finais da questão supracitada: antes de sacrificar sua vida, com desinteresse, renunciando-a “pelo bem de seu semelhante”, deve-se “refletir se sua vida não será mais útil do que sua morte”.
            Nem sempre dá tempo para isso, não é mesmo?
            Por vezes, o amor fala mais alto. É aí que surgem os heróis.
            Boa-madrugada!

  Quando o texto é escorreito (Irmão Jó)   Atento à escrita correta É o olho do revisor, Mas pôr tudo em linha certa É com o diagramador.   ...