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quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Em dia com o Machado 87 (jlo)

        — E então, meu caro Machado, podemos continuar a ouvi-lo?
     — Ora, Joteli, como você sabe, nunca gostei de falar sobre mim, em todos os tempos: pretérito, presente e futuro do presente e do pretérito.
        — Isso significa que não nos revelará nada sobre seu retorno à vida?
        — Como, retorno à vida, se ela é única?
        — É verdade, amigo, esqueci-me do que concluíramos, na crônica anterior...
        — Isso mesmo! Só se vive uma vez... Para sempre!
        — Mas... E a reencarnação, também não é eterna?
        — Meu caro, sobre isso, sei menos do que você. Todavia, como diz Allan Kardec, a reencarnação só é necessária enquanto o espírito é imperfeito.
       — Ih, então vou ter que reencarnar ainda muuuuito...
     — E eu também... Mas não nos preocupemos com isso. Falemos, ainda, sobre a brevidade de cada existência na Terra. Um simples vírus pode causar mais mortes do que as duas últimas guerras mundiais, como ocorreu durante o surto de gripe espanhola, pandemia que matou mais de 20 milhões de pessoas no mundo.
       — Mudemos de assunto, Machado, como se deu sua transição da poesia para a prosa?
    — Bem... Isso aconteceu naturalmente.  Todo bom profissional sabe que, para ele se dar bem no negócio, é preciso diversificá-lo. Assim, além da poesia, passei a ocupar a função de tradutor, cronista, dramaturgo, crítico, censor cultural, contista e, por fim, romancista...
    Aliás, a função de censor cultural custou-me a antipatia de Sílvio Romero, que me qualificou de tartamudo, entre outros apodos pouco lisonjeiros em seu livro crítico sobre os escritores brasileiros. Isso, porém, faz parte da vida de todos nós. Se só recebermos elogio ao que fizermos, como vamos corrigir e aperfeiçoar nossa obra?
     — Em compensação, Machado, não faltou quem o considerasse “a mais alta expressão do nosso gênero literário”, como José Veríssimo e Alfredo Bosi, entre muitos outros críticos. Sem falar em críticos e escritores internacionais, como John Gledson e Harold Bloom... O próprio Romero reconheceu você como um dos nossos melhores escritores.
      — Ainda na adolescência, comecei meus primeiros ensaios literários em prosa...            
     — Sempre fugindo aos elogios e às polêmicas, principalmente quando se trata de Sílvio Romero, não é mesmo, Bruxo?
      — O Sr. me desculpe as idas e voltas em meu retrato biográfico, mas é que meus relatos não obedecem a uma ordem cronológica, pois a memória deste seu amigo não é linear, e, sim, espiralada, como nosso Dna.
      — E no corpo espiritual, também existe Dna, Machado? Você disse nosso...
     — Sua matriz está no períspirito. Leia os livros Espiritismo e genética, do Eurípedes Kühl, Evolução em dois mundos, psicografado pelo Chico Xavier, e outros do gênero, publicados pela Federação Espírita Brasileira e outras editoras.
       — Como diz Einstein, meu caro Bruxo do Cosme Velho, “a mente que se abre a uma nova ideia jamais voltará ao seu tamanho original”.
       — Voltando ao assunto autobiográfico...
       Aos 17 anos incompletos (10 jun. 1856), iniciei, na Marmota Fluminense, meus ensaios prosaicos, na seção intitulada Ideias vagas. Meu primeiro texto publicado ali foi, na realidade, além da tradução de pequeno trecho, em francês, de Alphonse de Lamartine, intitulado Méditations Poétiques, também um apelo ao leitor para que valorizasse poemas e poetas, como o autor do título, ou seja, eu, jovem estreante nas letras que requeria, em causa própria, o reconhecimento e a benevolência para seu primeiro ensaio. (MAGALHÃES JÚNIOR, 2008, v. 1., p. 53- 54.)
     O segundo trabalho, publicado 51 dias depois (boa ideia!), intitulei A comédia moderna. Tal artigo serviria de mote, 43 anos após, para a elaboração do capítulo nono daquela que é minha obra prima: Dom Casmurro (1899)[1]. Comentei, então, que, para mim, o teatro era “o verdadeiro lugar de distração e de ensino, o verdadeiro meio de civilizar a sociedade e os povos”. E convoquei o povo: “Ao teatro! Ao teatro!” (Id., ibid., p. 56.). Foi quando resolveram me chamar para integrar a equipe de censores teatrais.
    O terceiro artigo em prosa deste articulador, na Marmota, foi uma apologia a frei Francisco de Mont’Alverne, o melhor orador sacro do meu e do seu século, ó Joteli. Na época, tive como amigo e mestre o padre Antônio José da Silveira Sarmento, que durante um ano foi meu “modesto preceptor[2] e um agradável companheiro” (Id., ibid., p. 59), a quem dediquei um longo poema quando, a 2 de dezembro de 1858, ele faleceu.
     Aos dezessete anos, pois, já me iniciara na prosa. A essas três “ideias vagas”, outras se sucederiam, como ocorreu com minha nova tradução de alguns tópicos de um texto do poeta francês Alphonse de Lamartine, publicado na revista de Paula Brito, de agosto a dezembro de 1857. Diz Magalhães Júnior (2008, p. 60), que, com certeza, essa minha proeza serviu para que eu fosse convidado a ser um dos cinco tradutores de O Brasil pitoresco, obra planejada pelo fotógrafo Victor Frond e Charles Ribeyrolles, ambos meus admiradores e amigos.
    Veja você, leitor, que já aos dezessete anos, autodidata, possuía este seu amigo aqui um razoável conhecimento, não só do idioma português, como também do francês.
      E você, o que tem feito em seus dezessete, vinte anos, além de torcer pelo seu time do coração, bater papos intermináveis com outros internautas e gastar horas vendo programas duvidosos na TV?
       — Pois, amigo Bruxo, de minha parte, por ora, prefiro continuar entrevistando-o sobre a brevidade da vida... Ops, da existência física.
       — Então, convido-o a continuar nosso diálogo sobre trivialidades de minha última passagem pela Terra, como as que ocorreram “no tempo da Petalógica” e outros tempos. É assim que construímos, paulatinamente, nossa cultura e abrimos nossa mente a uma grande ideia, como propôs o amigo Einstein.
       — E o que era a Petalógica?
       — Calma, amigo, semana que vem, eu digo... A bientôt!

REFERÊNCIA
MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Machado de Assis: vida e obra. Rio de Janeiro: Record, 2008, v. 1.





[1] É como dizem os chineses (ou seriam os japoneses?): a maturidade plena do ser humano ocorre a partir dos 50 anos. Idade que eu tinha quando escrevi Dom Casmurro.

[2] Preceptor: educador; mentor; instrutor.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Em dia com o Machado 86 (jlo)
            
            Bom-dia, amigas e amigos!
            Conversávamos, eu e Joteli, sobre a transcendental questão da brevidade existencial no corpo físico. Dizia-lhe eu que...
            — Sobre minha vida, todos conhecem por demais. E é inútil dizer-lhe que nasci no Morro do Livramento, em 21 de junho de 1839, tive como pais Francisco de Assis e Maria Leopoldina Machado de Assis. Também é sabido que mamãe morreu quando eu ainda não completara 10 anos (9a. e 7m.) e que papai se casou de novo, mas desencarnou na época dos meus 25 anos (1864).
            Antes de viajar para o reino da luz, mamãe ainda enterrou minha irmã de apenas quatro aninhos, quando eu ainda estava com seis. Chamava-se também Maria e morreu de sarampo. Foi chocante... A ela dediquei, entre outros, o poema intitulado Um anjo, que começa e termina com a seguinte estrofe (MAGALHÃES JÚNIOR, 2008, p. 17):
Foste a rosa desfolhada                                                   
Na urna da eternidade
Pra sorrir mais animada,                   
Mais bela, mais perfumada,
Lá na etérea imensidade.

            Em meu tempo, morria-se epidemicamente. Quase ninguém podia garantir mais que trinta, trinta e poucos anos no corpo carnal. Eu mesmo, aos dezesseis anos, cheguei a pensar que jamais alcançaria a maturidade física e pensei em juntar-me a minha pobre e querida mãe no céu:
Se perdi minha mãe sendo tão moço,
Se padeço de ti tanta saudade,
Não posso existir no mundo triste,
É melhor eu morrer já nesta idade!

            Dos meus dez aos quinze anos, dizem (eu mesmo nunca falei a respeito) que fui coroinha, que vendi balas e doces num colégio, onde, da janela, acompanhava atentamente as aulas, as quais não podia frequentar, que um forneiro de padaria e um padre me ensinaram francês... Tudo especulação... Não falo, não falo, não falo... Leiam meu Conto de escola e verão que não fora tão leigo como dizem ter sido. Acessem: www.dominiopublico.gov.br e cliquem Machado de Assis: obra completa.
            Em 1854, quando eu já estava com 15 anos, meu pai deu-me uma segunda mãe: dona Maria Inês da Silva. Papai era pintor e pintava o sete com as mulheres, o bonitão de 46 anos que tornou a se casar com a nova Maria de 33. A partir de então, deslanchei como aprendiz de poeta, de tipografia e revisor, com a ajuda do mulato Paula Brito, também autodidata, que ascendeu ao cargo de jornalista. Brito foi o poeta, dono de tipografia, editor de jornais e amigo que apostou em meu futuro talento.
            Meus primeiros poemas, entretanto, eram ensaios medíocres que acabariam por me convencer a ser um bom prosador. Deus, entretanto, tem um plano para cada um de seus filhos. Comigo não foi diferente. Tive a felicidade de conhecer os mais brilhantes poetas e romancistas da época, com quem aprendi que meu futuro estava nos contos e romances, ainda que me chamassem de “poeta Machadinho” nos primeiros anos de subproduções literárias. Ó tempos! Ó tempos!
            Tempos que passaram velozmente. Conheci o amor de minha vida, portuguesa culta e formosa, Carolina, minha secretária, revisora, coautora anônima e fã número um. Com ela, aperfeiçoei meu francês e meu inglês. Como te amo, Carol, flor de meu jardim celestial. Sem você, não teria alcançado os píncaros da glória literária, minha alma gêmea!
            Tempos em que, além de Paula Brito, Manuel Antônio de Almeida também me deu emprego na Tipografia Nacional e me abriu as portas à participação em diversos periódicos, na revisão de textos, críticas literárias, coautor da edição da obra Brasil pitoresco, autor das primeiras crônicas e dos primeiros contos...
            Tive um bom relacionamento com Charles Ribeyrolles, Victor Frond e outros amigos franceses, o que me permitiu aprimorar meu francês. Nunca me esqueço de quando, aos vinte anos, fui convidado para uma festa em homenagem ao nascimento de seu filho, na casa de Victor Frond. Nesse dia, Ribeyrolles improvisou um poema, em versos alexandrinos, com rimas cruzadas, em homenagem ao menino Charles Frond, intitulado “Souvenirs d’Exil”, com cinco estrofes que, não fora o espaço curto, as reproduziria aqui. Imediatamente, traduzi os belos versos franceses para a nossa língua, com as mesmas rimas cruzadas e também em alexandrinos. Todos nos aplaudiram, admirados. Coisas da juventude, coisas da juventude... (MAGALHÃES JÚNIOR, 2008,  p. 110- 112).
            Estávamos em 27 de janeiro de 1859... Eu ainda viveria outros 49 anos, que passariam céleres, desde então.
            Ah, você ficou curioso, amigo leitor, e não tem a obra que narra minha proeza dos vinte anos!? Se insistir, e pedir-me delicadamente, terei prazer em publicar os dois poemas no blog do Joteli, o do francês e o meu; mas só se houver ao menos cinco pedidos: dois masculinos e três femininos. Afinal, estamos na era do matriarcado... ou não?
            Dias depois, eu mesmo escrevi um poema em francês, com versos alexandrinos, em homenagem ao filho do nosso amigo Victor Frond (MAGALHÃES JÚNIOR, 2008, p. 113- 114). Esse só publicarei atendendo ao pedido de ao menos uma leitora francesa. Afinal, mãe é mãe...
            Para não te cansar, Joteli, e muito menos aos meus seis ou sete leitores, vou ficar por aqui...
            — Podemos continuar na próxima semana, Machado?
            — Se meu fígado o permitir, talvez eu continue esse relato nada original...              
            — Ainda assim, gostaria de ouvi-lo, principalmente, saber de você o que o levou a trocar a poesia pela prosa.
            — Aguarda, meu jovem... Quem sabe um dia eu mate tua curiosidade... Quem o sabe?
            — Não sou tão jovem, mas lhe agradeço a referência...
         — Meu caro, estamos conversando sobre a brevidade da vida. No meu tempo, passou dos cinquenta anos já estava no lucro; hoje, a vida média do brasileiro é de 75 anos, mas ainda mesmo que se chegue a 104, como o grande arquiteto Oscar Niemeyer, a vida “é um sopro”. E não sou eu quem o diz; foi ele mesmo quem o afirmou no momento da transição para o lado de cá.
            — Agora sou obrigado a discordar de você, meu caro imortal. Como diz Roberto Carlos, em bela música, “Só se vive uma vez”...
            — Você tem toda a razão, Joteli, a vida é única, o que é múltiplo são as existências.
            — Eis aqui um desafio para o nosso amigo Astolfo resolver, Machado: “[...] o que é múltiplo são as existências”, ou “[...] o que são múltiplas são as existências”; ou seria "[...] o que é múltipla é a existência"?
            Com a palavra, o professor Astolfo.
            — To be or not to be... Eis a grande dúvida do ser, meu caro Joteli.
            Eu, por mim, fico com qualquer opção das frases citadas. Afinal, não sou professor de gramática e sim um defunto escritor... Ou seria um escritor defunto?

sábado, 18 de janeiro de 2014

O MAIS LINDO POEMA DE JESUS – (Baseado em Mateus, 5: 3 a 12.)
O sermão do monte em versos (jlo)

Sempre bem-aventurados
são os pobres em espírito,
pois é deles meu reinado;
e consolem-se os aflitos,
pois serão recompensados...
 
Bem-aventurados são
todos espíritos mansos,
porque os mansos herdarão
a Terra da promissão
onde encontrarão descanso...
 
Sempre bem-aventurados
nas bênçãos do amor fecundo
os que têm fome e têm sede
de justiça neste mundo,
porque serão saciados...
 
 
Felizes são os que são
bons, misericordiosos;
misericórdia terão,
os de corações bondosos,
e também a Deus verão.
 
 
Felizes todos que são
bons com todos irmãos seus,
porque eles serão chamados
de servidores de Deus
e de bem-amados meus.
 
 
Felizes os atacados
pela lei humana injusta;
o reino de Deus é deles...
e ante minha Lei Augusta
sairão recompensados.
 
Tu também serás feliz
quando sofreres injúrias
e quando te perseguirem
com mentiras e perjúrios
inventados contra ti.
 
Alegra-te e regozija,
pois serás recompensado
se persistires nas metas
do testemunho elevado;
agem assim meus profetas.      

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Em dia com o Machado 85 (jlo)

            Eram da mesma família felina. O primeiro chamava-se Abdul; a segunda, Aimee. Desencarnados, ambos conversavam sobre a influência dos pensamentos em nossas vidas. Dizia a gata Aimee para o filho:
            — Cria minha, o pensamento é quase tudo em nossas vidas. Ele nos permite criações maravilhosas, mas também tenebrosas. As mentes que se alimentam de ideias nefastas, ligadas ao sexo deseducado, ao ódio, aos crimes hediondos e vícios torpes, ao desencarnarem vão direto para as zonas trevosas. Lugar triste e ermo.
            — O que é feito de meu felino pai, mamãe? Ele faleceu há vinte anos e, como estou aqui há apenas dez, nunca tive notícias dele.
            — Amore mio... Como você sabe, seu pai foi um engenheiro renomado, no mundo físico, que construiu belos arranha-céus na Terra, mas arranhou também duas gatas, ligadas às zonas trevosas de nossa dimensão, embora aparentasse ser um pai de família exemplar e frequentasse a missa aos domingos. Quando desencarnou, as gatas também já libertas do corpo físico o esperavam para continuar enredando-o nas malhas da paixão inconsequente. Atormentam-se os três até hoje. Now they are lost in the threshold umbral.
            — E como se chamam essas gatas assanhadas, mamma?
            — A loira chama-se Zypp; a morena, Cher.
            — Não tem como livrá-lo de tais influências nocivas, mother?
        — O problema é de vibração, meu gatinho, eu o visito muitas vezes, mas ele não identifica minha presença. Zypp e Cher sempre o retiram das minhas influências e o arrastam para as zonas sombrias, onde se enroscam, há anos, num novelo de lã negra, do qual não se conseguem soltar.
            — Miau! E como faremos para libertá-lo dessa escatológica fascinação, maman?
          — Somente quando Juan aderir mentalmente, pelo remorso e desejo sincero de se libertar dos fluidos mentais funestos,  poderei exercer influência sobre ele e libertá-lo das garras dessas gatas sensuais.
            — Então, mamãe, vamos miar por ele, mas não nos esqueçamos também delas.
            — É verdade, meu filho, miaremos igualmente por nossas inimigas, a fim de que sejam iluminados, pois, segundo Augusto dos Anjos,

Se devassássemos os labirintos
Dos eternos princípios embrionários,
A cadeia de impulsos e de instintos,
Rudimentos dos seres planetários;
[...]

No profundo silêncio dos inermes,
Inferiores e rudimentares,
Nos rochedos, nas plantas e nos vermes,
A mesma luz dos corpos estelares!

É que, dos invisíveis microcosmos,
Ao monólito enorme das idades,
Tudo é clarão da evolução do cosmos,
Imensidade das imensidades!

Nós já fomos os germes doutras eras,
Enjaulados no cárcere das lutas,
Viemos do princípio das moneras,
Buscando as perfeições absolutas[1].

               — Mas então, Augusto, você quer dizer que nós, os gatos, ainda seremos humanos?
          — Exatamente, Abdul, mas não como imagina. Precisarão, antes, passar por um processo depuratório, no princípio inteligente universal, para, só então, com o acréscimo do pensamento contínuo, virarem humanos.
           — Se é assim, agradeço, mas prefiro continuar felino.
         — Assim dizem os brutos, mas não se esqueça de que mesmo os ignorantes, ainda que involuntários, terão de responder pelas marcas dos seus gatos. Continue, então, miando pelo seu pai... Quem sabe um dia...
          — E quem são os brutos, nós, ou vocês, que fazem churrasquinho de gato, assistem rinhas de galos e de cães, aos gritos ferozes que mais parecem urros de feras que de humanos, enquanto nos dilaceramos para seu gáudio?
           — É verdade, sob esse prisma, ainda somos mais animais que vocês... Mie por nós, gatinho!




[1] XAVIER, F. C. Parnaso de além-túmulo. Pelo Espírito Augusto dos Anjos. Brasília: FEB. Evolução.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014


Em dia com o Machado 84 (jlo)

            Desculpem, se lhes não estendo a mão; estou muito constipado. Observem; mal posso falar. Gripe dos infernos. Passo as noites respirando pela boca. Imagino até que estou magro e pálido.
            Não? Estou sim; vejam como fungo; fungo sem o mínimo sinal de poder; mas não fungo à toa como já funguei junto a você, amiga leitora, quando estive no corpo físico.
            Minha preocupação agora não é mais a saúde, como dantes ocorria. Entretanto, tenho ainda algumas razões para lhe falar de minha fungação. E não são por razões políticas. Citarei duas ou três:
            A primeira foi quando soube por André do caso do grande comerciante que sempre proporcionou uma vida folgada para seus filhos e, após a morte física, passou a ter ódio de um deles, que era médico. Sua família tinha dois filhos, duas filhas vivas e uma filha morta.
            — Quatro vivos e uma morta, Machado?
            — Uma viva, dois mortos e duas mortas.
            — Dois vivos, duas vivas e uma morta, Bruxo...
            — Dois mortos, duas mortas e uma viva, amigo leitor.
            — Não seriam quatro vivos e uma morta?
            — Quem é vivo não enterra mortos, entendeu, amiga leitora?
            — Nadinha!
            — Então, pergunte ao Senhor.
            — “Deixa aos mortos o cuidado de enterrar os seus mortos” (Lucas, 19: 60).
            — Exatamente...
            — Pois não é?
            — Perfeitíssimo.
            Dados esses esclarecimentos claros como água turva, pediria ao Dr. André que me explicasse o que ocorreu para que o comerciante falecido odiasse tanto seu filho doutor. Eis a resposta:
           — O genitor passara a vida trabalhando e ajuntara grande patrimônio. Entretanto, já idoso, adoecera gravemente e Agenor, o filho médico, resolvera antecipar o retorno do pai à pátria espiritual. Agora, enquanto os quatro filhos vivos disputavam, a tapas, a herança familiar e a mãe enlouquecera, o espírito paterno remoía-se de ódio pelo filho que cometera a eutanásia daquele antes que o pai pudesse deliberar sobre quem ficaria com o quê de seus imensos bens materiais.
            Bem dizia Jesus: “Não ajunteis tesouros na Terra, onde o verme rói, a ferrugem corrói e o ladrão rouba. Ajuntai-os no céu, onde nem a traça nem a ferrugem consomem e onde os ladrões não os podem roubar” (Mateus, 6: 19).
            — Machado, você está muito conselheiral, o que houve? Você não era disso...
            — Ah, meu amigo, nada melhor do que atravessar o rio Aqueronte, para nos convencermos de que as almas valem a pena, ainda que sua lama não seja pequena, parodiando meu amigo Fernando Pessoa. Vamos à segunda razão:
            Quando criança você se assustou quando viu na TV ou leu uma revista em quadrinhos sobre história de vampiros? Pois a TVS mostrou, no último domingo, uma pegadinha em que uma pessoa vestia uma roupa que lhe encobria a cabeça e, com um machado na mão, saía correndo atrás de outras pessoas, à noite, se fazendo passar por um fantasma sem cabeça. O susto era tão grande que vários perseguidos tropeçavam e caíam. Numa dessas, o suposto fantasma tropeçou, caiu sobre uma dessas pessoas e, descoberto, apanhou de todos os fugitivos que viram a cena e voltaram correndo para agredir o engraçadinho.
            Onde já se viu fantasma tropeçar e cair como qualquer de nós?
            Pois então, talvez você não saiba que, nas cidades espirituais de fluidos energéticos densos, como Nosso Lar, e nas zonas umbralinas que o antecedem somos surpreendidos por mais intensas sensações do que as dos corpos de matéria bruta. Por mais estranho lhe pareça, nossa existência terrena é cópia grosseira do que há ali. A Física e a Biologia Quânticas já têm explicações para tais fenômenos. Então, continue acompanhando nossa narrativa e você se surpreenderá.
            O jovem Francisco não queria nem saber de pensar na morte física. Muito apegado ao corpo, após um desastre, foi parar em Nosso Lar, depois de um período de transição pelo Umbral, onde ficou prisioneiro do próprio cadáver, quando sentiu os vermes roerem-lhe as carnes no túmulo, do qual se afastou correndo, apavorado e demente.
            Foi socorrido nas Câmaras de Retificação de Nosso Lar, enlouquecido, por se julgar perseguido por um monstro, que nada mais era senão a visão do próprio corpo cadavérico. Tempo depois, recebeu a visita do espírito paterno, ser evoluído, que orou por ele e lhe deu um passe. Depois disso, o jovem melhorou bastante, mas continuou sob os cuidados dos médicos e enfermeiros espirituais.
            Perguntei a André, penalizado, como era possível que alguém fosse assombrado pela imagem do próprio cadáver. Eis sua resposta:
            — Meu amigo, também tive essa dúvida e fiz a mesma pergunta ao espírito Narcisa, uma enfermeira bondosa do Ministério da Regeneração. Eis sua resposta:

A visão de Francisco [...] é o pesadelo de muitos Espíritos depois da morte carnal. Apegam-se demasiadamente ao corpo, não enxergam outra coisa, e nem vivem senão dele e para ele, votando-lhe verdadeiro culto, e, vindo o sopro renovador, não o abandonam. Repelem quaisquer ideias de espiritualidade e lutam desesperadamente pelo conservar. Surgem, no entanto, os vermes vorazes e os expulsam. A essa altura, horrorizam-se do corpo e adotam nova atitude extremista. A visão do cadáver, porém, como forte criação mental deles mesmos, atormenta-os no imo da alma. Sobrevêm perturbações e crises, mais ou menos longas, e muito sofrem até a eliminação integral do seu fantasma (XAVIER, F. C. Nosso Lar. Pelo Espírito André Luiz. Cap. 29: A visão de Francisco).

— Caramba, Machado! Depois dessa, fiquei morrendo de medo de morrer.
— Deixa de ser bobo, rapaz; a morte não existe, disso nunca duvidei. Basta que leia minhas obras, a começar pelos poemas; raros são aqueles que não se refiram ao aspecto sacrossanto da vida, como este, que dedico a todos os vivos, estejam no corpo físico ou no espiritual, intitulado:

OS SEMEADORES (Século XVI)

            ... Eis aí saiu o que semeia a semear...
            Mat., XIII, 3.

Vós os que HOJE colheis, por esses campos largos
         O doce fruto e a flor,
Acaso esquecereis os ásperos e amargos
         Tempos do semeador?
Rude era o chão; agreste e longo aquele dia;
         Contudo, esses heróis
Souberam resistir na afanosa porfia
         Aos temporais e aos sóis.

POUCOS; mas a vontade os poucos multiplica,
         E a fé e as orações
Fizeram transformar a terra pobre em rica
         E os centos em milhões.

Nem somente o labor, mas o perigo, a fome,
         O frio, a descalcez,
O morrer cada dia, uma morte sem nome,
         O morrê-la, talvez.

Entre bárbaras mãos, como se fora crime,
         Como se fora réu
Quem lhe ensinara aquela ação pura e sublime
         De as levantar ao céu!

Ó Paulos do sertão! Que dia e que batalha!
         Venceste-la; e podeis
Entre as dobras dormir da secular mortalha;
         Vivereis, vivereis!

(ASSIS, M. Machado de Assis: obra completa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1973, p. 134.)


            Au revoir, cher ami!

sábado, 4 de janeiro de 2014

 poema metamorfose (jlo)

o ato de elaborAr um conteÚdo
não é tarefa Fácil, certamEnte
é preciso pensAr em algo em mEnte
para se sEr objetIvo em tUdo
mas se desEjo redigIr em vErsos
não me basta rimAr feijÃo com pÃo
nem mesmo a rIma torna bOa a estrOfe
tampouco a mÉtrica lhe dÁ valor
escrever versos sObre o acontecIdo
é tentar fazer do poEma um tExto
informatIvo ou narratIvo em sUma
a poesIa nAda infOrma ou nArra
sem se vestIr de simbolIsmo e de Arte
em cada tErmo da composiçÃo

brasília, dez dez. 2013
Jorge Leite de Oliveira


Separa as estrofes do poema acima e terás um soneto.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

O cogumelo de Hirosaki (jlo)

1945,
o Sol de agosto nascia
em bela segunda-feira,
e Hiroshima sorria.

De repente, um avião
sobrevoando a cidade
lança-lhe a estúpida bomba,
e a “rosa atômica” se abre...

Não, não era aquilo rosa,
era, sim, um cogumelo,
um cogumelo fatal
desintegrador de anelo.

— Meu Deus! que fizemos nós?
Como fizemos, Deus meu,
um tormento tão atroz
a indefesos irmãos nossos?!

— Meu Deus! o que nós fizemos?
Como, Senhor, nós pudemos
destruir tanta esperança
em tanto ser inocente?!

— Meu Deus! que fizemos nós
à humanidade inteira
com nossa ação sorrateira
covarde, cruel, atroz?!

E os gritos gemem abaixo
e são ouvidos de cima:
— Monstros, monstros, assassinos,
destruístes Hiroshima!

Cem mil vidas já tirastes:
idosos, mulheres, jovens...
Somente de uma só vez
uns cem mil assassinastes...

Então, fera agonizante,
ante o triste e vão suspiro
gemeu também: — Foi bem mais
foram milhões de animais...

Como se isso não bastasse,
três dias perto dali
a chama radioativa
destruirá Nagasaki.

E novamente os lamentos
erguer-se-iam aos céus:
— Meu Deus, que fizestes vós
homens cruéis, maus ateus!?

Do alto, branco albatroz
crocitou ao projetar
o corpo abaixo das nuvens:
— Ó morte cruel, atroz!

Filhos, pais, netos, avós,
em seu lamento terrível,
gritaram no mesmo nível:
— Meu Deus, que fizestes vós?!

Oppenheimer, o criador
da bomba atômica, ao ver
todo um país arrasado
também disse com horror:

— O drama maior da Terra
É o cientista alienado,
e o soldado enlouquecido
pela cegueira da guerra...

É o político alienado
é o aluno, é o professor,
é o cidadão alienado
por não ter Deus por Senhor.

E quando futuramente
Nosso neto perguntar
Com sua voz inocente:
— Por que dois nomes juntar?...

— Pela morte das cidades
De Hiroshima e Nagasaki
na mais cruel das maldades:
cogumelo de Hirosaki.

Brasília, 2 de janeiro de 2014.
Jorge Leite de Oliveira

  Contador e ciência contábil (Irmão Jó)   Contador, tu não contas dor, Mas no balanço das contas O crédito há que ser superior.   Teu saldo...