Em dia com o Machado 290 (Jó)
Ontem à noite, fui visitado por
Machado de Assis, que me disse o seguinte:
— Sabe, Joteli, meu maior tesouro é
a criatividade. Com esta, colaborou meu prazer de ler. Na juventude, lia tudo que
havia lá em casa, como o Almanaque Laemmertz,
assinado por papai e a Bíblia. Devido
a problemas financeiros e doenças familiares, não pude frequentar regularmente
a escola. Desse modo, aprendi a ler e escrever até os dez anos, quando deixei o
banco escolar e me tornei autodidata.
Minha melhor professora, até 18 de
janeiro de 1849, foi minha mãezinha querida, que faleceu, nessa data, aos 36
anos. Também nessa época, eu completaria dez anos em 21 de junho, e ela sempre
lera para mim, até eu aprender a ler e escrever. Desde então, com o que me
ensinou mamãe e os poucos anos de minha frequência à escola primária, eu já lia
e escrevia razoavelmente, embora ainda trocasse os pronomes...
Como forma de gratidão à mãe amada e
em honra à sua memória, decidi que seria poeta, pois naquele tempo esse dom era
tido em alto prestígio.
Foi assim que, dali em diante,
passei a exercitar a poesia e enviar meus primeiros rabiscos para os
jornaizinhos da cidade. Nos anos seguintes, aprendi tipografia com Paula Brito,
em sua tipografia chamada Dois de
Setembro, onde passei a trabalhar.
Brito foi outro autodidata empreendedor
e ombro amigo que me permitiu, em sua modesta empresa, construir as bases
intelectuais para no futuro tornar-me conhecido nas rodas sociais literárias. Ali
nascia o “poeta Machadinho”...
Os meus primeiros versos, entretanto,
publicados em jornal quando eu tinha quinze anos, foram ridicularizados por
meus biógrafos, como é o caso do soneto que escrevi em homenagem a uma vizinha, no qual eu “assassinava” a “última
flor do Lácio”.
— Quando foi isso e como se chamava
o periódico que o incentivou com a publicação desse seu rabisco, meu caro Machado?
— Isso ocorreu em 3 de outubro de
1854, e o jornal era o Periódico dos
Pobres. Não ria, Joteli, foi assim mesmo o início de minha jornada... como prosador,
pois como disse Manuel Bandeira, apenas uma dúzia de meus poemas futuros poderiam
ser considerados bons, além do soneto À
Carolina.
— Creio que você esteja sendo
modesto, amigo Bruxo. Escreva para nós o poema inaugurador de sua produção
literária.
— Vá lá, mesmo porque nada mais
tenho a perder, além do corpo físico que já as traças consumiram... Quem sabe
isso não incentive outros jovens, que ignoram seu potencial inato, a gostar de
ler e escrever...
É um soneto sem título e com a seguinte
dedicatória: “À Ilma. Sra. D. P. J. A.”. Ao leitor pouco familiarizado com a
gramática, destaco em itálico, para sua identificação, além do erro de
concordância na primeira estrofe (virtudes que fazem [...] e faz [...]) e das trocas
incorretas do pronome pela mudança brusca, na última estrofe do poema, da segunda pessoa do plural para a segunda do
singular:
Quem
pode em um momento descrever
Tantas
virtudes de que sois dotada
Que
fazem dos viventes ser amada
Que
mesmo em vida faz de amor morrer!
O
gênio que vos faz enobrecer,
Virtude
e graça de que sois c’oroada,
Vos fazem do esposo
ser amada.
(Quanto
é doce no mundo tal viver!)
A
natureza nessa obra primorosa,
Obra
que dentre todas as mais brilha,
Ostenta-se
brilhante e majestosa!
Vós sois
de vossa mãe a cara filha,
Do
esposo feliz a grata esposa,
Todos
os dotes tens, ó Petronilha!
— Quá, quá, quá, quá... Esse
poema lembra-me uma frase de Thomas
Édson, Machado.
— Qual frase, Joteli?
— A de que o gênio é fruto de noventa e nove por cento de transpiração e apenas um
por cento de inspiração. Soube que
você foi “rato de biblioteca” e leu, não somente obras dos maiores poetas e
escritores brasileiros e portugueses, como também de ingleses, franceses,
italianos e espanhóis. Mas, apenas para matar a minha e a curiosidade do
leitor, diga-nos os títulos dos seus poemas, além do soneto À Carolina, que já transcrevemos em passada
crônica, tidos por Manuel Bandeira como dos mais belos já escritos.
— Embora o ditado popular reze que
“gosto não se discute”, se o gosto é de um poeta de primeira linha como o
Bandeira, creio merecer algum valor os seguintes poemas, que o leitor pode ler
na internet: O Desfecho, Círculo Vicioso, Uma Criatura, A Artur de
Oliveira Enfermo, Mundo Interior,
O Corvo, Suave Mari Magno, A Mosca
Azul, Spinoza, Soneto de Natal e No Alto.
— Não seja modesto, Machado, esses
poemas não são para “merecer algum valor”; são lindos, perfeitos. Eles provam que,
se gostamos de ler, nossa mente abre-se a horizontes fantásticos.
— Isso é verdade... Creio ter sido
Einstein que disse isto: “A mente que se abre a uma nova ideia jamais volta ao
seu tamanho original”. Assim sendo, Joteli, quanto mais leitura, mais mente
aberta a novas ideias e menos intolerância aos que não pensam como nós.
— Como não podia deixar de ser,
Bruxo, sua frase é para nos fazer refletir...