Em
dia com o Machado 135
(jlo)
Eu
se fosse apresentar um comunicado sobre a literatura feminina em qualquer
universidade, falaria sobre Francisca Júlia da Silva, não por ela ter o
primeiro nome Francisca e o sobrenome da
Silva. Não, ela não é a decantada Chica da Silva[1],
na voz de Jorge Ben Jor e outros cantores, mas a esposa do Filadelfo Edmundo
Munster, modesto telegrafista.
E
isto é o que é incrível: Francisca afastou-se do meio social literário para se
dedicar quase totalmente ao marido e ao lar, embora ela fosse genial poetisa
parnasiana com acentuados traços simbolistas.
Mais
conhecida como Francisca Júlia, essa grande escritora foi apelidada "Musa
impassível" após ter escrito o seguinte soneto, publicado no livro Mármores, em 1895:
Musa Impassível[2]
Musa! um gesto sequer de dor ou de sincero
Luto jamais te afeie o cândido semblante!
Diante de Jó, conserva o mesmo orgulho; e
diante
De um morto, o mesmo olhar e sobrecenho
austero.
Em teus olhos não quero a lágrima; não quero
Em tua boca o suave e idílico descante.
Celebra ora um fantasma anguiforme de Dante,
Ora o vulto marcial de um guerreiro de
Homero.
Dá-me o hemistíquio d'ouro, a imagem
atrativa;
A rima, cujo som, de uma harmonia crebra,
Cante aos ouvidos d'alma; a estrofe limpa e viva;
Versos que lembrem, com seus bárbaros ruídos,
Ora o áspero rumor de um calhau que se
quebra,
Ora o surdo rumor de mármores partidos.
Não sabia ela que estava escrevendo sobre si mesma, mas o contrário do
que viveria quinze anos mais tarde. Sim, pois muitas vezes o que se escreve é o
avesso do que se sente. Se o aspecto de seus poemas foi formal e tido como
impessoal, do Parnasianismo alheio ao lirismo centrado no eu, o fundo foi simbólico
e genialmente explorado por essa poetisa segundo João Ribeiro. Louvada em sua
época pelos mais destacados poetas e críticos, sua vida sentimental era outra.
Apaixonada pelo marido, resolvera dedicar todo o restante de sua última
existência terrena especialmente a ele.
Casou-se com Filadelfo em 1909, na capela de Lajeado, em São Paulo,
capital, e teve como padrinho nada menos do que Vicente de Carvalho. Nesse dia,
foi convidada a participar como fundadora e membro da Academia Paulista de
Letras de São Paulo, mas amavelmente recusou o convite, por preferir viver para
o lar, embora não alheia às letras e aos movimentos literários de seu tempo.
Em 31 de outubro de 1920, quinze anos após Francisca Júlia escrever o
poema que lhe deu o epíteto de Musa
Impassível, publicado no livro Mármores,
o marido de Francisca Júlia morreu tuberculoso. No dia seguinte, ela foi
encontrada morta, em seu lar, após ingerir grande dose de narcóticos. Aos
amigos, dissera, diante do esquife de Filadelfo e antes do gesto extremo:
"— Jamais porei o véu de viúva". Leia, leitora, os dois primeiros
versos do soneto que a consagrou em 1995:
"Musa! um gesto sequer de dor ou de sincero
Luto jamais te afeie o cândido semblante!"
Se o luto jamais tornou feio o semblante da musa, o mesmo não se pode
dizer do gesto doloroso que a fez suicidar-se no dia seguinte à morte do marido
idolatrado. Entretanto, a vida não começa no berço e nem termina no túmulo. Eis
que ela é eterna e, sendo assim, imprimimos em nosso corpo espiritual,
denominado por Allan Kardec períspirito, as marcas produzidas pelo uso do nosso
livre-arbítrio.
Trinta e cinco anos após o gesto de desespero, no dia 13 de outubro de
1955, pela mediunidade psicofônica de Chico Xavier[3],
o Espírito Francisca Júlia da Silva transmitiu-nos o soneto que reproduzimos
abaixo:
Lutai!
Por mais vos fira o sonho, a rajada violenta
Do temporal de fel que enlouquece e vergasta,
Suportai, com denodo, a fúria iconoclasta
E o granizo cruel da lúrida tormenta.
Carreia a dor consigo a beleza opulenta
Da verdade suprema, eternamente casta;
Recebei-lhe o aguilhão que nos lacera e
arrasta,
Ouvindo a voz da fé que vos guarda e
apascenta.
De alma erguida ao Senhor varai a sombra
fria!...
Por mais horrenda noite, há sempre um novo
dia,
Ao calor da esperança — a luz que nos
enleva...
A aflição sem revolta é paz que nos redime.
Não olvides na cruz redentora e sublime
Que a fuga para a morte é um salto para a
treva.
Passados outros sete anos, em 1962, o médium Waldo Vieira[4]
psicografou o último soneto do Espírito Francisca Júlia, intitulado
Adeus
Na agonia da luz o astro-rei purpurina...
Leves tarjas de noite a manchar o
horizonte...
Uma estrela a piscar remove a névoa fina
E espelha-se, feliz, no regato defronte...
Soluça um pombo além e se alteia e se inclina
E voa sem que o Sol novo rumo lhe aponte...
Humilde rola chora a gemer na campina,
Alheia ao prado em flor e à carícia da
fonte...
Chega a sombra afinal... Aparece a tristeza
No arrulho que ficou por gemidos em bando,
Quais cordas a estalar numa lira retesa...
..................................................................
Assim, num dia assim, a morrer sem alarde,
Chorando eu disse adeus e ele partiu
chorando,
A renascer na Terra onde estarei mais
tarde....
Atualmente, amiga leitora e curioso leitor, Francisca Júlia da Silva
pode estar entre vós. É uma triste jovem à procura de um rapaz melancólico, seu
inesquecível Filadelfo, que a antecedeu no renascimento. Poder-se-ão encontrar
um dia? Não o sabemos. E se o soubéssemos não o poderíamos dizer. Faz parte de
suas provas procurarem-se eternidade afora, uma vez que a paixão doentia os
consumiu em sua última existência na Terra. Qual será a sua arte? Do palco? Da
música? Do lar? Só Deus o sabe...
Termino com a seguinte frase e uma reflexão: What we consider to be
art today may be very diferente from what our ancestors considered to be art.
O que o Espírito procura demonstrar a você, leitor e leitora
incrédulos, é que mesmo já não desenvolvendo os temas profanos de antes, seu
estilo continua o mesmo, apenas mais espiritualizado, pois não somente a arte é
seu fim, mas também a arte como demonstração da imortalidade da alma e das
consequências, para todos nós, do bom ou mau uso do nosso livre-arbítrio aí e
aqui.
Talvez a outrora festejada poetisa esteja, agora, empenhada em divulgar
a arte espiritual que, segundo Allan Kardec, quando for devidamente explorada
suplantará em muito o que se considera arte no mundo atual. Se é que essa arte
também não já esteja na Terra.
Saudação machadiana!
[1]
Chica da Silva (1732- 1796) foi uma escrava que, no séc. XVIII, viveu no Brasil
e foi alforriada por um rico "contratador de diamantes", João
Fernandes de Oliveira, com quem teve 13 filhos. Era aceita, nos meios sociais
da época, com o raro respeito dedicado às mulheres brancas. Doou parte dos seus
bens às irmandades religiosas do Carmo e de São Francisco de Assis, exclusivas
de brancos, e das Mercês e do Rosário, dedicadas aos negros. Foi sepultada na
irmandade dedicada aos brancos, São Francisco de Assis, considerada a mais
importante da época. Essa também extraordinária mulher, negra, foi imortalizada
na música de Jorge Ben Jor, que resume sua vida e pode ser ouvida acessando-se
o link http://letras.mus.br/jorge-ben-jor/86373/.
[2]
SILVA, Francisca Júlia da. Mármores.
São Paulo: Editor Horácio Belfort Sabino, 1895. Edição esgotada. Disponível em:
< www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/01681300>. Acesso em 11/12/2014.
[3]
XAVIER, Francisco Cândido. Vozes do
grande além. Org. Arnaldo Rocha. Rio de Janeiro: FEB, 2003, p. 80- 81.
[4]
XAVIER, Francisco Cândido; VIEIRA, Waldo. Antologia
dos imortais. 4. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2002. Parte II (Médium Waldo
Vieira), p. 185- 186.
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