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quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

 

ANÁLISE COMPARATIVA ESPÍRITA DE SONETOS DE CRUZ E SOUSA – 10



Cruz e Sousa era um autêntico nefelibata, mas nefelibata sublime, daqueles que estão acima das nuvens, além do céu visível, para lá do infinito. Este soneto expressa bem seu anseio de imortalidade:

      Triunfo supremo

 

  • Quem anda pelas lágrimas perdido,               
  • Sonâmbulo dos trágicos flagelos,                  
  • É quem deixou para sempre esquecido           
  • O mundo e os fúteis ouropéis mais belos!                  
  •  
  • É quem ficou do mundo redimido,     
  • Expurgado dos vícios mais singelos              
  • E disse a tudo o adeus indefinido                  
  • E desprendeu-se dos carnais anelos!              
  •  
  • É quem entrou por todas as batalhas              
  • As mãos e os pés e o flanco ensanguentando,
  • Amortalhado em todas as mortalhas.             
  •  
  • Quem florestas e mares foi rasgando             
  • E entre raios, pedradas e metralhas,               
  • Ficou gemendo, mas ficou sonhando!

  

Walter M. Barbosa, no artigo intitulado Aspectos Metafísicos no Simbolismo de Cruz e Sousa, compara a poesia deste à de Antero de Quental e Augusto dos Anjos, no que se refere ao destaque elevado da angústia metafísica presente nos sonetos desses três grandes poetas. Mas se Quental não conseguiu conciliar sua alma religiosa com o negativismo filosófico, e Anjos via, na filosofia de Haeckel, o alimento vital fecundante do espírito, Sousa ascendeu do "efêmero para o eterno", conclui Barbosa (1979, p. 354). Para nós, Cruz e Sousa identificou-se tanto com a filosofia socrática e platônica quanto com a do Espiritismo, ainda que, no último caso, inconscientemente.

Em nota de rodapé, na obra Cruz e Sousa: poesia, Tasso da Silveira (1982, p. 90) refere-se aos dois últimos versos deste soneto como sintetizadores do destino do poeta na expressão de "[...] sua total dignidade de sentimento e de espírito". Por isso, foram "recortados em bronze" e inseridos "[...] como legenda no monumento funerário erguido à memória do poeta no Cemitério de S. Francisco Xavier [...]" no Rio de Janeiro.

            E que diríamos, se na prática da alteridade, como nos propõe Mikhail Bakhtin, nos víssemos, como o poeta, em corpo espiritual semelhante ao que deixamos sob a terra? Se percebêssemos, como nos ensina Platão, que o mundo das ideias é real e que nossa alma, liberta do casulo carnal, o conserva, ao adentrar em um plano de existência maravilhoso, como o idealizado pelos santos? Com certeza, nos incentivaríamos, como Cruz e Sousa, a expressar nossa gratidão ao Ser Supremo por nos confirmar tudo o que, enquanto no corpo, sonhamos ser verdadeiro. É o que o poeta faz neste poema psicografado por Chico Xavier:

 

Página de louvor

 

Glória aos heróis da crença soberana

Em cujo amor a terra se redime,

Portadores da fé pura e sublime

De que a luz evangélica se ufana!

 

Glória à dilacerada caravana

Que combate a impiedade, a sombra e o crime,

Embora o mundo que a persegue e oprime

Sob as pedradas de miséria humana!

 

Louvor eterno aos grandes infelizes

Que se cobrem de estranhas cicatrizes

Sem abrigo de paz que os reconforte!

 

São vanguardeiros a que o Céu se ajusta

Resplandecendo de beleza augusta,

Na passagem divina, além da morte...

 

            Diz-nos Jorge de Souza que: "Cruz e Souza [...] retorna do Além pela psicografia para ensinar-nos as verdades capazes de explicar e, sobretudo, de possibilitar-nos uma autêntica postura cristã diante dos verdadeiros desgraçados das tragédias humanas" (SOUZA, 2004, p. 53). Em seguida, completa ensinando que desgraçado, mesmo, é quem pratica crimes e semeia o mal. Esses colherão os frutos do que, por ora, estão plantando. Os grandes missionários, porém, escolhem uma existência de lutas, de perseguições, "pedradas" para nos exemplificar a renúncia, exercitar o perdão e o amor, qualidades que nos farão felizes antes mesmo de retornarmos ao mundo espiritual, onde se situa nossa pátria verdadeira.

 

Referências

BARBOSA, Walter M. Aspectos Metafísicos no Simbolismo de Cruz e Sousa. In: COUTINHO, Afrânio. Cruz e Sousa. Coletânea organizada por Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1979  (Coleção Fortuna crítica, v. 4).

GERALDO, José. Cem anos com Cruz e Sousa. 2. ed. Brasília: CEUB: LGE Editora, 1998, p. 115.

SOUSA, Cruz e. Cruz e Sousa: poesia. Por Tasso da Silveira. 6. ed. Rio de Janeiro: Agir (Nossos clássicos; 4), 1982.

SOUSA, Cruz e. (Espírito). In: ESPÍRITOS Diversos. Relicário de luz. Psicografado por Francisco Cândido Xavier. 7. ed. 2. imp. Brasília: FEB, 2014, p. 98.

SOUZA, Jorge de. Quem é o autor? Bragança Paulista, SP: Lachâtre, 2004.

 

 

 



segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

 

Em dia com o Machado 451:

casamento: não separar o que Deus uniu (Jó)

 


Encontramos no capítulo 22, item 3 d'O Evangelho Segundo o Espiritismo, preciosa informação de Kardec sobre a união sexual: "[..] ao lado da lei divina material, comum a todos os seres vivos, há outra lei divina, imutável como todas as leis de Deus, exclusivamente moral: a lei do amor" (grifei). Esta lei é assim citada por Jesus: "[...] Portanto, deixará o homem pai e mãe e se unirá à sua mulher [...]. Assim, não serão mais dois, mas uma só carne. Pois o que Deus juntou, não separe o homem" (Mateus, 19:5- 6).

Na obra Vida e Sexo, o Espírito Emmanuel, referindo-se ao relacionamento sexual, alimento hormonal e psíquico, necessário a uma união respeitosa entre dois seres que se amam, esclarece-nos o seguinte: "[...] Não proibição, mas educação. Não abstinência imposta, mas emprego digno, com o devido respeito aos outros e a si mesmo. Não indisciplina, mas controle. Não impulso livre, mas responsabilidade".

Infelizmente, o que ouvimos, por vezes, no relato de um ou outro membro de casal passa longe do entendimento do que o guia espiritual de Chico Xavier recomenda. Falta respeito a si mesmo e ao outro. Quando não é o homem que gosta de revelar as intimidades de seus relacionamentos sexuais, por vezes com a própria companheira, que deveria respeitar, é esta que, entre amigas, narra todas as suas aventuras dentro e fora do lar. Daí...

Hipocrisia maior é a dos que agem na surdina. Passam por verdadeiros santos ou santas entre os membros de sua igreja, templo ou centro espírita, mas ali mesmo já conheceram um, uma ou vários parceiros sexuais. Esse tipo de atitude, quando adotada por adeptos do Espiritismo, é apropriado para confirmar a definição de Allan Kardec sobre os tipos de espíritas imperfeitos: "[...] os que veem no Espiritismo mais do que os fatos; compreendem sua parte filosófica, admiram a moral daí decorrente, mas não a praticam", como lemos no capítulo terceiro, item 28 d'O Livro dos Médiuns.

Pior ainda age a pessoa que, descoberta em sua atitude de prevaricação (pois nada há encoberto que um dia não seja revelado), em vez de esforçar-se em se corrigir, quando perdoada, continua vulnerável às entidades espirituais inferiores e deduz da intimidade do casal motivo para realizar, fora do lar, desejos contrários às recomendações do Cristo. Aí está patente o predomínio duma das duas naturezas do ser humano citadas por Kardec, no item 6 da introdução d'O Livro dos Espíritos: a animal, em detrimento da espiritual.

Mikhail Bakhtin, filósofo russo do século XX, muito conhecido nos meios universitários, afirma que precisamos praticar a alteridade, ou seja, colocarmo-nos no lugar do outro, para cultivarmos seu afeto, haja vista ser o outro quem melhor nos conhece. Esta é uma grande verdade, mas esse exercício também nos permite o autoconhecimento, ao percebermos a reação doutrem ante o que fazemos.

No caso do casamento, o Espírito Emmanuel recomenda-nos casar diariamente. Com a mesma pessoa... O que significa reforçar aquele encanto do primeiro olhar, no primeiro encontro com o ser amado, que nos fez senti-lo tão diferente, que nada do que nos digam contra esse ser é levado a sério por nós.

Por essa pessoa, somos capazes de revirar o mundo. Por ela,  fazemos coisas absurdas. E, por isso mesmo, perdoamos facilmente quaisquer dos seus pecados anteriores ao nosso relacionamento, pois uma força divina nos atrai um para o outro.

Então, por que não alimentarmos esse sentimento, o respeito, o comprometimento íntimo, não somente físico, como também moral e espiritual, por toda a existência? Por que não honrarmos essa cumplicidade celestial? Agindo assim, começaríamos a exercitar, no próprio lar, a ser enriquecido pelos filhos, o modelo de verdadeiros espíritas, ou espíritas cristãos, que Kardec nos propõe no capítulo citado d'O Livro dos Médiuns: os espíritas "[...] que não se contentam com admirar a moral espírita, que a praticam e lhe aceitam todas as consequências".

Desse modo, ainda que venhamos a  agir com falta menos leve para com o outro, o que significa agredir a nós mesmos, o arrependimento sincero, a confissão, aliada ao desejo real e esforço para não mais magoar nosso companheiro ou companheira devem ser suficientes para que nossa consciência se acalme. Não há amor verdadeiro que se não deixe comover por arrependimento, conversa franca e pedido sincero de perdão. É nesse sentido que Jesus nos recomenda não separar o que Deus uniu.

sábado, 26 de dezembro de 2020

 


13.4 Convidar os pobres e estropiados. Dar sem esperar retribuição

 

    Disse também àquele que o convidara: Quando der um jantar ou uma ceia, não convide nem seus amigos, nem seus irmãos, nem seus parentes, nem seus vizinhos que forem ricos, para que não aconteça que também eles o convidem à sua vez, e lhe paguem com isso. Mas quando der um banquete, convide os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos.  E você será feliz, porque esses não têm com que lhe retribuir; porque isso lhe será retribuído na ressurreição dos justos.         

    Um dos que estavam à mesa, ao ouvir estas palavras, disse a Jesus: Feliz é aquele que comer do pão no Reino de Deus (Lucas, 14: 12-15).

    Quando der um banquete, disse Jesus, não convide seus amigos, mas os pobres e os aleijados. Estas palavras, absurdas, se as tomarmos ao pé da letra, são sublimes, quando procuramos entender-lhes o espírito. Jesus não poderia ter querido dizer que, em lugar dos amigos, se devesse reunir à mesa os mendigos da rua. Sua linguagem era quase sempre figurada, e para os homens incapazes de compreender os tons mais delicados do pensamento, precisava usar de imagens fortes, que produzissem o efeito de cores vivas. O fundo de seu pensamento se revela por estas palavras: E você será feliz, porque esses não têm com o que lhe retribuir. Ou seja,  não se deve fazer o bem com vistas à retribuição, mas pelo simples prazer de fazê-lo. Para fazer  uma comparação impressionante, disse: Convida os pobres para seu banquete, pois você sabe que eles não podem lhe retribuir. E por banquete é necessário entender, não propriamente as refeições, mas a participação na abundância de que você desfruta.

    Essas palavras podem também ser aplicadas em sentido mais literal. Quantas pessoas só convidam para a sua mesa os que podem, como dizem, honrá-los ou retribuir-lhes o convite. Outros, ao contrário, ficam satisfeitos em receber parentes ou amigos menos afortunados. Ora, quem não os têm entre os seus? Dessa forma, prestamos-lhes um grande serviço sem que o percebam. Os que, sem ir buscar os cegos e os estropiados, praticam a máxima de Jesus, se o fazem por benevolência, sem ostentação, e se sabem disfarçar o benefício com sincera cordialidade.

    Tradução livre do prof. dr. Jorge Leite de Oliveira

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

 

ANÁLISE COMPARATIVA ESPÍRITA DE SONETOS DE CRUZ E SOUSA – 9

 


Segundo Caldeira (2020, it. 6.3), há 1.500 a.C, ou seja, 3.520 anos atrás, foram publicados livros com a "experiência sensorial do sagrado", na Índia, conhecidos como Os Vedas. Os livros que compõe essa obra são quatro: 1º) Rigveda, com 1028 hinos, é o mais antigo. Compõe-se de hinos ou louvações; 2º) Yajurveda: obra com fórmulas para serem lidas durante os sacrifícios à divindade; 3º) Samaveda: de contos litúrgicos e rituais compõe-se esta obra; e 4º) Atharvaveda: livro sobre magias e encantamentos destinados a curas, longevidade etc.

São livros elaborados em forma de poesia. Neles, verificamos que a poética foi uma das primeiras artes na busca de comunicação entre a humanidade e Deus. Na manifestação lírica, observamos o culto do belo, do som, no anseio de perfeição e, por consequência, de integração com o Eterno, como consolo às dores mundanas e esperança de sobrevivência num mundo metafísico, bem melhor, como vemos nos sonetos simbolistas de Cruz e Sousa, como este:  

 

Clamor supremo

 

Vem comigo por estas cordilheiras!

Põe teu manto e bordão e vem comigo,

Atravessa as montanhas sobranceiras

E nada temas do mortal Perigo!

Sigamos para as guerras condoreiras!

Vem, resoluto, que eu irei contigo.

Dentre as Águias e as chamas feiticeiras,

Só tenho a Natureza por abrigo.

Rasga florestas, bebe o sangue todo

Da Terra e transfigura em astros lodo,

O próprio lodo torna mais fecundo.

Basta trazer um coração perfeito,

Alma de eleito, Sentimento eleito

Para abalar de lado a lado o mundo!

 

 

Cruz e Sousa parece estar plenamente integrado ao sagrado neste poema. Para alcançar a ventura celeste, é preciso lutar contra os inimigos que se ocultam na Natureza, purificar-se e, desse modo, tornar-se eleito. É preciso coragem, nessa empreitada, mas o convidado não seguirá só. Terá a companhia do poeta, nessa viagem por entre "Águias" e "chamas feiticeiras".

Porém, como condores, aves imensas que voam alto, ambos vencerão essa luta do bem contra o mal, este representado pelas águias devoradoras, que são as inteligências perversas, e seu fogo enfeitiçador. Para tanto, há uma condição: é preciso ter o "coração perfeito dos eleitos". Esses são os que já estão na condição de trabalho interior que, pela sua vitória no combate às mazelas físicas, sorveram o sangue terreno e se uniram aos que se doam por uma causa nobre. A transformação do lodo em astros é a superação da matéria pela iluminação do espírito. Eleito só será o ser que souber vencer, com o poeta, essa "guerra". Somente assim, o mundo será abalado, ou seja, pelo incentivo à luta contra tudo e contra todos os seres da Natureza material.

 

Da vida espiritual, o poeta confirma a excelência de seu clamor com o convite intitulado

 

Segue e confia

 

Vive na eterna luz que aperfeiçoa

A compreensão da vida clara e imensa.

Servindo ao mundo, alheio a recompensa,

Cultivando a humildade terna e boa.

 

Seja a esperança a lúcida coroa

Com que brilhes na sombra fria e densa

Da noite da maldade e da descrença

Que perturba, destrói e amaldiçoa.

 

Sob as desilusões, penas e assombros,

Não sepultes teus sonhos nos escombros

Do amargo desalento que te invade!

 

Rota a veste de carne que redime,

Encontrarás a luz pura e sublime

No divino país da Eternidade.

 

 

Aos que estranham a preferência do Espírito liberto da matéria no enfoque temático, agora voltado para a essência espiritual, e não mais para a luta contra as misérias da matéria, cito para reflexão uma questão d'O livro dos espíritos e sua resposta abaixo:

 

— As ideias dos Espíritos se modificam no estado errante?

— Muito, sofrem grandes modificações, à medida que o Espírito se desmaterializa. Às vezes, ele pode permanecer muito tempo com as mesmas ideias, mas, pouco a pouco, a influência da matéria diminui e o Espírito vê as coisas mais claramente. É então que procura os meios de se tornar melhor. (KARDEC, 2017, questão 318)

 

Em relação a Cruz e Sousa, quase nada se modificou nos planos físico e espiritual. Já desde encarnado, o poeta se espiritualizara. Apenas o enfoque, que antes estivera mais centrado nas lutas contra o preconceito racial e as dores causadas pela rejeição da sociedade, a sede, mesmo, de reconhecimento transcendente à mera questão étnica, agora se volta para as compensações reservadas a quem tem fé e esperança. O poeta, do além, promete a quem "segue e confia" um mundo onde são compensados todos os sofrimentos e todas as humilhações, por nivelar os Espíritos consoante sua elevação moral e espiritual e não mais pelas aquisições da matéria e poder temporário.

 

Referências

CALDEIRA, Wesley. Deus: antes e depois de Jesus. Brasília: FEB, 2020 (no prelo), item 6.3 Os Vedas: o fôlego do eterno.

KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. 4. ed. 4. imp. Brasília: FEB, 2017. Livro seg, cap. 6, p. 181.

SOUSA, Cruz e. Cruz e Sousa: poesia. Por Tasso da Silveira. 6. ed. Rio de Janeiro: Agir (Nossos clássicos; 4), 1982, p. 88.

SOUSA, Cruz e. (Espírito). In: ESPÍRITOS Diversos. Relicário de luz. Psicografado por Francisco Cândido Xavier. 7. ed. 2. imp. Brasília: FEB, 2014, p. 53.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

 

  • Em dia com o Machado 450 -
  • A Arte Divina de Jesus Cristo:
  • convite para um banquete! (Jó)

 


        O evangelista Lucas relata-nos que José e Maria foram de Nazaré a Jerusalém, quando seu filho, Jesus, tinha a idade de doze anos, para participarem da Festa da Páscoa. Ao regressarem do evento, seus pais perceberam que Jesus não estava mais entre eles e regressaram a Jerusalém à sua procura. Somente três dias depois, encontraram o adolescente no templo, entre doutores, com os quais dialogava.

        Ali começou a primeira manifestação da arte divina de Jesus. Os doutores eram arguidos por ele com tão grande inteligência que se maravilharam com os conceitos espirituais que lhes eram transmitidos pelo jovem, como lemos no relato de Lucas, 2:47 a 49.

        Já adulto, após convocar para segui-lo seus primeiros discípulos, Jesus percorreu toda a Galileia "ensinando em suas sinagogas, pregando o Evangelho do Reino e curando todas as enfermidades e moléstias entre o povo" (Mateus, 4:23). Daí por diante, ele começou a ser seguido por grande multidão, não só da Galileia, como também de Decápolis, de Jerusalém, da Judeia e d'além do Jordão (id, vers. 24).

        Então, Jesus subiu a um monte e proferiu o mais belo e consolador poema de que se tem notícia na Terra: o Sermão do Monte, relatado por Mateus nos capítulos 5 a 7 do seu evangelho. Este sermão resume toda a Doutrina do Cristo. Bastar-nos-á segui-lo para ter uma vida santificada e abençoada no mundo. Sobre ele, disse Mahatma Gandhi: "Se se perdessem todos os livros sacros da humanidade, e só se salvasse o Sermão do Monte, nada estaria perdido".

        Segundo Mateus, 13:34, Jesus ensinava por meio de parábolas. O sentido espiritual e moral de sua doutrina estava sempre presente nelas, que se destinavam não somente aos que as ouviam, mas a toda a humanidade, e em todos os tempos, como lemos no versículo 35: "[...] Abrirei em parábolas a boca; publicarei coisas ocultas desde a criação do mundo".

        A arte divina de Jesus está presente no relato, por todos os evangelistas, dos seus discursos, debates e suas representações alegóricas, como a da figueira seca (Mateus, 21:18-22), a entrada triunfal em Jerusalém, montado num jumentinho (Marcos, 11:1-11), a expulsão dos vendilhões do templo (Lucas, 19:45, 46), a cerimônia de lava-pés aos seus discípulos (João, 13:3-8) etc. Sua linguagem é simples, por vezes clara, por vezes simbólica. Não somente é entendida pelos doutos, como também pelos incultos. Todos esses exemplos  demonstram-nos seu pleno domínio da linguagem e da arte, associado ao comando das forças da natureza, qual ocorreu nesta passagem:

 

E aconteceu que, num daqueles dias, entrou num barco com seus discípulos, e disse-lhes: Passemos para o outro lado do lago. E partiram. / E, navegando eles, adormeceu; e sobreveio uma tempestade de vento no lago, e enchiam-se de água, estando em perigo. / E chegando-se a ele o despertaram, dizendo: — Mestre, Mestre, perecemos. Ele levantou-se e repreendeu o vento e a fúria da água, que cessaram, e fez-se bonança. / E disse-lhes: Onde está a vossa fé? E eles, temendo, maravilharam-se, dizendo uns aos outros: — Quem é este, que até aos ventos e à água manda, e lhe obedecem? (Lucas 8:22-25).

 

         Que, neste Natal, convidemos nossas famílias para um banquete on-line, certos de que, em espírito, estaremos irmanados ao Cristo.  Façamos, assim, do mais jovem ao mais idoso, a leitura de cada versículo do Sermão do Monte. Não haverá melhor banquete do que este, pois a Divina Arte de Jesus alimenta nossas almas, não somente na presente existência, mas por toda a eternidade. Feliz Natal!

               

sábado, 19 de dezembro de 2020

 

 

13.3 O óbolo da viúva

Jesus estava sentado diante do gazofilácio e observava de que modo o povo lançava ali o dinheiro. Muitos, que eram ricos, doavam bastante. Viu chegar também uma pobre viúva, que lançou somente duas pequenas moedas de ínfimo valor. Então, chamando seus discípulos, Jesus lhes disse: Eu lhes digo, em verdade, que  aquela pobre viúva doou mais do que todos os outros que deitaram suas ofertas no gazofilácio. Porque todos os outros deitaram do que tinham em abundância; ela, porém, doou de sua pobreza mesma tudo o que lhe restava para seu sustento (Marcos, 12:41- 44;  Lucas, 21:1-4).

         Muita gente lamenta não poder fazer todo o bem que desejaria, por falta de recursos, e se querem a fortuna, dizem, é para dela fazerem bom uso. A intenção é louvável, sem dúvida, e pode ser muito sincera de parte de alguns. Mas seriam todos assim completamente desinteressados? Não haverá os que, desejando fazer o bem aos outros, se sentirão bem por começar por fazê-lo a si mesmos, concedendo-se mais algumas satisfações, um pouco mais do supérfluo, que ora não têm, para dar apenas o resto aos pobres?  

         Este motivo oculto, talvez dissimulado, mas que encontrariam no fundo de seus corações, se o procurassem, cuidadosamente, anula o mérito da intenção, pois a verdadeira caridade faz antes pensar nos outros que em si mesmo. O sublime da caridade, nesse caso, seria procurar cada qual no seu próprio trabalho, pelo emprego de suas forças, de sua inteligência, de sua capacidade, os recursos que lhe faltam para realizar suas intenções generosas. Nisso estaria o sacrifício mais agradável ao Senhor. Infelizmente, a maioria sonha com meios mais rápidos e fáceis de se enriquecer, de um golpe e sem sacrifícios, correndo atrás de quimeras, como a descoberta de tesouros, uma oportunidade favorável, o recebimento de heranças inesperadas etc.

         Que dizer dos que esperam encontrar para os secundar nas pesquisas dessa natureza, auxiliares entre os Espíritos? Com certeza, eles nem conhecem nem compreendem o sagrado objetivo do Espiritismo, e menos ainda a missão dos Espíritos, aos quais Deus permite comunicarem-se com os homens. São, assim, punidos pelas decepções (O livro dos médiuns, itens 294 e 295).

         Aqueles cuja intenção é desprovida de qualquer interesse pessoal devem consolar-se de sua impotência para fazer o bem que desejariam lembrando que o óbolo do pobre, que o tira da sua própria privação, pesa mais na balança de Deus do que o ouro do rico, que dá sem privar-se de nada. A satisfação seria grande, sem dúvida, de poder socorrer largamente a indigência; mas, se isso é impossível, é necessário submeter-se a fazer o que se pode.

         Aliás, não é somente com o ouro que se podem enxugar as lágrimas, e não devemos ficar inativos por não o possuirmos. Quem deseje, sinceramente, tornar-se útil a seus irmãos encontra mil ocasiões para isso. Que as procure e as encontrará. Se não for de uma maneira, será de outra, pois não há uma só pessoa, no livre gozo de suas faculdades, que não possa prestar algum serviço, dar uma consolação, amenizar um sofrimento físico ou moral, tomar uma providência útil. Na falta de dinheiro, não dispõem todos do seu esforço, do seu tempo, do seu repouso, para oferecer um pouco aos outros? Aí está, também, a esmola do pobre, o óbolo da viúva.


         Tradução livre da 3ª ed. francesa: prof. dr. Jorge Leite de Oliveira

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

 

ANÁLISE COMPARATIVA ESPÍRITA DE SONETOS DE CRUZ E SOUSA – 8

 


Esclarece-nos José Geraldo (1998, p. 35) que está suficientemente confirmado que a primeira pessoa é pouco utilizada nos poemas de Cruz e Sousa. Menos ainda, diz Geraldo, é o uso da terceira pessoa, no soneto intitulado Um ser, sob a qual o "eu lírico se oculta":

Um ser

  • Um ser na placidez da Luz habita,
  • Entre os mistérios inefáveis mora.
  • Sente florir nas lágrimas que chora
  • A alma serena, celestial, bendita.
  •  
  • Um ser pertence à música infinita
  • Das Esferas, pertence à luz sonora
  • Das estrelas do Azul e hora por hora
  • Na Natureza virginal palpita.
  •  
  • Um ser desdenha das fatais poeiras,
  • Dos miseráveis ouropéis mundanos
  • E de todas as frívolas cegueiras...
  •  
  • Ele passa, atravessa entre os humanos,
  • Como a vida das vidas forasteiras
  • Fecundada nos próprios desenganos. 

           

Nesse ser oculto, como viu bem Geraldo, está a pessoa Cruz e Sousa. Não a do corpo físico, discriminada, humilhada em virtude da cor, mas a do ser iluminado que extrapola a matéria. O ser que floresce adubado pelas "lágrimas que chora", mas que o purifica, eleva às "estrelas do Azul", ou seja, do Céu. Esse ser, que desdenha das coisas mundanas: "ouropéis", passa desconhecido, como forasteiro "entre os humanos", entretanto são os "próprios desenganos" sofridos por ele que o tornam um ser habitante da Luz envolvida em mistérios para os que ainda estão presos às "fatais poeiras", ou seja, às ilusões da matéria.

Confirmando essa impressão do soneto acima, já liberto da matéria pela morte, o Espírito Cruz e Sousa transmite-nos, agora pela psicografia do médium Waldo Vieira (2002, p. 262), o poema número 2, intitulado Corpo, de um total de cinco sonetos:

 

  • Corpo 

  • Carne! Vaso de dor, sinistro e belo,
  • Estruturado em grânulos de escória,
  • Relicário de lama transitória,
  • Tugúrio estreito e fúlgido castelo!
  •  
  • Assinalas, em lúgubre duelo,
  • O bem e o mal na cinza merencória;
  • Mas elevas o lodo para a glória,
  • Da sombra à luz, em trágico flagelo.
  •  
  • Louvor à encarnação que te sustenta,
  • Lâmpada de amargura ansiosa e lenta,
  • Ergástulo do amor puro e profundo!...
  •  
  • És a humana e arcangélica fornalha,
  • Templo e gleba onde Deus sonha e trabalha
  • Santificando as lágrimas do mundo!...

 

O que desejamos comentar, além de comparar o poema post-mortem com o que o poeta escreveu em vida física, não é simplesmente o estilo, que alguns teóricos contestam, por desconhecerem o assunto na profundidade que ele comporta, mas sim a preocupação com o transcendental, com o mundo espiritual, ou metafísico, que é considerado, pelos estudiosos espiritualistas e, em especial, pelos espíritas, como o principal. Aquele que, nas palavras de Jesus representa o Céu, "onde nem a traça, nem a ferrugem consomem, e onde os ladrões não minam, nem roubam", como lemos em Mateus, 6: 20.

A poesia simbolista de Cruz e Sousa, em sua grande maioria, está voltada para o sagrado, desde sua existência física à espiritual, como observamos nos poemas supracitados. No primeiro capítulo da obra de Wesley Caldeira, intitulada Deus: antes e depois de Jesus, a ser brevemente publicada pela FEB, que recomendamos, desde já, é feito pelo autor um minucioso estudo sobre as origens e funções do fenômeno religioso, além das contribuições de diversos filósofos e da Doutrina Espírita, na análise de sua importância em nossas existências.

Segundo Caldeira (op. cit., loc. cit.), Immanuel Kant, em sua genial obra Crítica da razão pura (1781), diz que o conhecimento começa com a experiência, mas há conhecimentos a priori e a posteriori. Os primeiros são os chamados inatos, ou seja, os que a pessoa traz consigo desde que nasce; os segundos são os efetivamente adquiridos pela experiência. Já Otto Rudolf, em sua renomada obra intitulada O sagrado (1917), informa-nos que o sagrado pode ser classificado em três partes: numinoso, mysterium tremendum e mysterium fascinosum. O sagrado numinoso é o do poder divino, que se pode sentir, mas não definir; o mysterium tremendum é a sensação sentida ante o mistério, sensação inexprimível, do divino, que "assombra, atemoriza e estremece" por sua grandiosidade; finalmente, o mysterium fascinosum é o sentimento ante o mistério que fascina, encanta, comove e desperta o zelo até o heroísmo ante sua sublimidade.

Por fim, Caldeira remete-nos ao item 455 d'O livro dos espíritos, onde podemos ler a revelação espírita sobre esse maravilhoso mundo, de onde viemos e para onde vamos, creiamos ou não nos Espíritos, acreditemos ou não na existência de Deus. A vida de poetas como Cruz e Sousa assemelha-se à dos profetas e santos que, em linguagem simbólica, preparam-nos para o ingresso na vida do Espírito imortal, sejamos crentes ou ateus. 

No meu modesto ponto de vista, Cruz e Sousa, ao regressar ao Mundo dos Espíritos, agora, ao utilizar a terceira pessoa em seu poema, não mais se refere a si mesmo, mas também a todos os seres que ainda transitam pelo mundo sob as mais duras provas, em especial aos que são discriminados, humilhados e desprezados.

Referências

CALDEIRA, Wesley. Deus: antes e depois de Jesus. Brasília: FEB, 2020. No prelo.

GERALDO, José. Cem anos com Cruz e Sousa. Brasília: LCE, 1998.

KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Tradução de Evandro Noleto Bezerra. 4. ed. Brasília: FEB, 2017.

XAVIER, Francisco Cândido; VIEIRA, Waldo. Antologia dos imortais. Por Espíritos diversos. 4. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2002. João da Cruz e Sousa.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

 

Em dia com o Machado 449:

A cruz sagrada (Jó)

 


       Se pudéssemos entrar numa máquina do tempo que nos fizesse voltar ao passado, amigo leitor, bem poderia acontecer de conversarmos com nós mesmos. E não é que isso acabou de acontecer, não pela máquina do tempo, mas pela da imaginação? Pois é, acabei de imaginar um diálogo de Jó (68 anos) com Jorge (23 anos).

        Eu, Jó, noutro dos meus devaneios, voltei ao tempo e passei a conversar comigo mesmo, Jorge, quando ainda não usava pseudônimo, na noite de 26 de junho de 1975, ou seja, há 45 anos. Estava na Penha, bairro do Rio de Janeiro, e Jorge disse-me:

        — Caramba, Jó, você já é quase setuagenário? Ainda hoje, imaginei não chegar aos cinquenta anos de idade...

        — Pois é, Jorge, diz um ditado popular: "O que o homem põe, Deus dispõe"...

        — Mas que o trouxe aqui, Jó, em plena madrugada?

        — Li num caderno velho um dos seus primeiros poemas e gostei muito, Jorge. É um poema sacro.

        — Ora, Jó, são rabiscos de jovem iniciado na Doutrina Espírita, dois anos atrás, que mal começou seus exercícios literários. São versos de pés-quebrados que já nem me lembravam mais.

        — É verdade que você os escreveu sob a inspiração de Cruz e Sousa, Jorge?

        — Não sei, Jó. Imaginei, há poucas horas, que o melhor poeta da escola simbolista do Brasil e um dos melhores do mundo me incentivara a escrevê-los. Depois, guardei-os numa gaveta, até que tivesse melhores noções de poesia.

        — O que você acha de eu revisá-los e publicá-los em meu blog, Jorge?

        Blog? Que é isto, Jó? Nunca ouvi falar... mas, se é para melhorar o poema, desde já, autorizo sua revisão e modificação. Apenas lhe peço que mantenha o título...

        — Manterei não só o título, mas também a estrutura e os créditos, Jorge Leite de Oliveira. Eis seu poema sacro:

       

A Cruz Sagrada

 

Deus, nosso Pai, que sois todo amor e bondade,

Libertai-nos dos vícios, do ódio e maldade.

Dai-nos confiança e coragem dos que lutam

Contra as imperfeições que a todos nos insultam.

 

Fortificai, bom Senhor, nossos pensamentos,

Purificai-nos, Pai Perfeito, os sentimentos.

Perdoai, Pai querido, nossos inimigos,

Mas perdoai-nos também tê-los ofendido.

 

Confortai-nos nas horas de erma solidão

Com a luz projetada ao nosso coração

Pelas almas puras que nos vêm consolar

Quando unidos a elas passamos a orar.

 

Seja sempre feita vossa Boa Vontade

E jamais prevaleça em nós qualquer vaidade.

Elevai-nos as almas às luzes dos Céus,

Retirai-nos das mentes quaisquer negros véus.

 

Senhor, compadecei-vos desta Humanidade

A quem Jesus pregou e fez a Caridade.

Dai-nos a paz e luz nas horas de desdita,

Pois juntais à justiça bondade infinita.

 

Muito obrigado, Pai, por tudo que nos destes:

Amigos sinceros, família, pães e vestes...

Jamais nos rejeitais, Pai Sábio e generoso.

Mesmo ao filho calceta, vil e tenebroso

 

Enviastes Jesus Cristo para perdoá-lo,

Sabendo de antemão que seria imolado.

Por isso peço, Pai, piedade para nós,

Pequeninos filhos que recorrem a Vós.

 

Fazei com que sigamos Vosso Filho Amado,

Que amando e perdoando foi crucificado.

Fazei-nos carregar, humildes, nossa cruz,

Consagrados na fé e exemplos de Jesus.

 

        — Nossa, Jó, ficou bem melhor. Dedico-o a Cruz e Sousa.

        — Eu também, Jorge...

        Despedimo-nos. Jorge imaginou que sonhara; Jó, este que agora volta a falar ao leitor amigo, tem certeza de que não...

 

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