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quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

 

ANÁLISE COMPARATIVA ESPÍRITA DE SONETOS DE CRUZ E SOUSA – 8

 


Esclarece-nos José Geraldo (1998, p. 35) que está suficientemente confirmado que a primeira pessoa é pouco utilizada nos poemas de Cruz e Sousa. Menos ainda, diz Geraldo, é o uso da terceira pessoa, no soneto intitulado Um ser, sob a qual o "eu lírico se oculta":

Um ser

  • Um ser na placidez da Luz habita,
  • Entre os mistérios inefáveis mora.
  • Sente florir nas lágrimas que chora
  • A alma serena, celestial, bendita.
  •  
  • Um ser pertence à música infinita
  • Das Esferas, pertence à luz sonora
  • Das estrelas do Azul e hora por hora
  • Na Natureza virginal palpita.
  •  
  • Um ser desdenha das fatais poeiras,
  • Dos miseráveis ouropéis mundanos
  • E de todas as frívolas cegueiras...
  •  
  • Ele passa, atravessa entre os humanos,
  • Como a vida das vidas forasteiras
  • Fecundada nos próprios desenganos. 

           

Nesse ser oculto, como viu bem Geraldo, está a pessoa Cruz e Sousa. Não a do corpo físico, discriminada, humilhada em virtude da cor, mas a do ser iluminado que extrapola a matéria. O ser que floresce adubado pelas "lágrimas que chora", mas que o purifica, eleva às "estrelas do Azul", ou seja, do Céu. Esse ser, que desdenha das coisas mundanas: "ouropéis", passa desconhecido, como forasteiro "entre os humanos", entretanto são os "próprios desenganos" sofridos por ele que o tornam um ser habitante da Luz envolvida em mistérios para os que ainda estão presos às "fatais poeiras", ou seja, às ilusões da matéria.

Confirmando essa impressão do soneto acima, já liberto da matéria pela morte, o Espírito Cruz e Sousa transmite-nos, agora pela psicografia do médium Waldo Vieira (2002, p. 262), o poema número 2, intitulado Corpo, de um total de cinco sonetos:

 

  • Corpo 

  • Carne! Vaso de dor, sinistro e belo,
  • Estruturado em grânulos de escória,
  • Relicário de lama transitória,
  • Tugúrio estreito e fúlgido castelo!
  •  
  • Assinalas, em lúgubre duelo,
  • O bem e o mal na cinza merencória;
  • Mas elevas o lodo para a glória,
  • Da sombra à luz, em trágico flagelo.
  •  
  • Louvor à encarnação que te sustenta,
  • Lâmpada de amargura ansiosa e lenta,
  • Ergástulo do amor puro e profundo!...
  •  
  • És a humana e arcangélica fornalha,
  • Templo e gleba onde Deus sonha e trabalha
  • Santificando as lágrimas do mundo!...

 

O que desejamos comentar, além de comparar o poema post-mortem com o que o poeta escreveu em vida física, não é simplesmente o estilo, que alguns teóricos contestam, por desconhecerem o assunto na profundidade que ele comporta, mas sim a preocupação com o transcendental, com o mundo espiritual, ou metafísico, que é considerado, pelos estudiosos espiritualistas e, em especial, pelos espíritas, como o principal. Aquele que, nas palavras de Jesus representa o Céu, "onde nem a traça, nem a ferrugem consomem, e onde os ladrões não minam, nem roubam", como lemos em Mateus, 6: 20.

A poesia simbolista de Cruz e Sousa, em sua grande maioria, está voltada para o sagrado, desde sua existência física à espiritual, como observamos nos poemas supracitados. No primeiro capítulo da obra de Wesley Caldeira, intitulada Deus: antes e depois de Jesus, a ser brevemente publicada pela FEB, que recomendamos, desde já, é feito pelo autor um minucioso estudo sobre as origens e funções do fenômeno religioso, além das contribuições de diversos filósofos e da Doutrina Espírita, na análise de sua importância em nossas existências.

Segundo Caldeira (op. cit., loc. cit.), Immanuel Kant, em sua genial obra Crítica da razão pura (1781), diz que o conhecimento começa com a experiência, mas há conhecimentos a priori e a posteriori. Os primeiros são os chamados inatos, ou seja, os que a pessoa traz consigo desde que nasce; os segundos são os efetivamente adquiridos pela experiência. Já Otto Rudolf, em sua renomada obra intitulada O sagrado (1917), informa-nos que o sagrado pode ser classificado em três partes: numinoso, mysterium tremendum e mysterium fascinosum. O sagrado numinoso é o do poder divino, que se pode sentir, mas não definir; o mysterium tremendum é a sensação sentida ante o mistério, sensação inexprimível, do divino, que "assombra, atemoriza e estremece" por sua grandiosidade; finalmente, o mysterium fascinosum é o sentimento ante o mistério que fascina, encanta, comove e desperta o zelo até o heroísmo ante sua sublimidade.

Por fim, Caldeira remete-nos ao item 455 d'O livro dos espíritos, onde podemos ler a revelação espírita sobre esse maravilhoso mundo, de onde viemos e para onde vamos, creiamos ou não nos Espíritos, acreditemos ou não na existência de Deus. A vida de poetas como Cruz e Sousa assemelha-se à dos profetas e santos que, em linguagem simbólica, preparam-nos para o ingresso na vida do Espírito imortal, sejamos crentes ou ateus. 

No meu modesto ponto de vista, Cruz e Sousa, ao regressar ao Mundo dos Espíritos, agora, ao utilizar a terceira pessoa em seu poema, não mais se refere a si mesmo, mas também a todos os seres que ainda transitam pelo mundo sob as mais duras provas, em especial aos que são discriminados, humilhados e desprezados.

Referências

CALDEIRA, Wesley. Deus: antes e depois de Jesus. Brasília: FEB, 2020. No prelo.

GERALDO, José. Cem anos com Cruz e Sousa. Brasília: LCE, 1998.

KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Tradução de Evandro Noleto Bezerra. 4. ed. Brasília: FEB, 2017.

XAVIER, Francisco Cândido; VIEIRA, Waldo. Antologia dos imortais. Por Espíritos diversos. 4. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2002. João da Cruz e Sousa.

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