Uma visita de
Alcebíades
CARTA DO
DESEMBARGADOR X... AO CHEFE DE POLÍCIA DA CORTE
Corte, 20 de setembro de 1875.
Desculpe V. Ex.ª o tremido da letra
e o desgrenhado do estilo; entendê-los-á daqui a pouco.
Hoje, à tardinha, acabado o jantar,
enquanto esperava a hora do Cassino, estirei-me no sofá e abri um tomo de
Plutarco. V. Ex.ª, que foi meu companheiro de estudos, há de lembrar-se que eu,
desde rapaz, padeci esta devoção do grego; devoção ou mania, que era o nome que
V. Ex.ª lhe dava, e tão intensa que me ia fazendo reprovar em outras
disciplinas. Abri o tomo, e sucedeu o que sempre se dá comigo quando leio
alguma coisa antiga: transporto-me ao tempo e ao meio da ação ou da obra.
Depois de jantar é excelente. Dentro de pouco acha-se a gente numa via romana,
ao pé de um pórtico grego ou na loja de um gramático.
Desaparecem os
tempos modernos, a insurreição da Herzegovina, a guerra dos carlistas, arua do
Ouvidor, o circo Chiarini. Quinze ou vinte minutos de vida antiga, e de graça.
Uma verdadeira digestão literária.
Foi o que se deu hoje. A página
aberta acertou de ser a vida de Alcibíades. Deixei-me ir ao sabor da loquela
ática; daí a nada entrava nos jogos olímpicos, admirava o mais guapo dos atenienses,
guiando magnificamente o carro, com a mesma firmeza e donaire com que sabia reger
as batalhas, os cidadãos e os próprios sentidos. Imagine V. Ex.ª se vivi! Mas,
o moleque entrou e acendeu o gás; não foi preciso mais para fazer voar toda a
arqueologia da minha imaginação. Atenas volveu à história, enquanto os olhos me
caíam das nuvens, isto é, nas calças de brim branco, no paletó de alpaca e nos
sapatos de cordovão. E então refleti comigo:
— Que impressão daria ao ilustre
ateniense o nosso vestuário moderno?
Sou espiritista desde alguns meses.
Convencido de que todos os sistemas são puras niilidades, resolvi adotar o mais
recreativo deles. Tempo virá em que este não seja só recreativo, mas também
útil à solução dos problemas históricos; é mais sumário evocar o espírito dos
mortos, do que gastar as forças críticas, e gastá-las em pura perda, porque não
há raciocínio nem documento que nos explique melhor a intenção de um ato do que
o próprio autor do ato. E tal era o meu caso desta noite. Conjeturar qual fosse
a impressão de Alcibíades era despender o tempo, sem outra vantagem, além do
gosto de admirar a minha própria habilidade. Determinei, portanto, evocar o
ateniense; pedi-lhe que comparecesse em minha casa, logo, sem demora.
E aqui começa o extraordinário da
aventura. Não se demorou Alcibíades em acudir ao chamado; dois minutos depois
estava ali, na minha sala, perto da parede; mas não era a sombra impalpável que
eu cuidara ter evocado pelos métodos da nossa escola; era o próprio Alcibíades,
carne e osso, vero homem, grego autêntico, trajado à antiga, cheio daquela gentileza
e desgarre com que usava arengar às grandes assembléias de Atenas, e também, um
pouco, aos seus pataus. V. Ex.ª, tão sabedor da história, não ignora que também
houve pataus em Atenas; sim, Atenas também os possuiu, e esse precedente é uma
desculpa. Juro a V. Ex.ª que não acreditei; por mais fiel que fosse o testemunho
dos sentidos, não podia acabar de crer que tivesse ali, em minha casa, não a
sombra de Alcibíades, mas o próprio Alcibíades redivivo. Nutri ainda a esperança
de que tudo aquilo não fosse mais do que o efeito de uma digestão mal rematada,
um simples eflúvio do quilo, através da luneta de Plutarco; e então esfreguei
os olhos, fitei-os, e...
— Que me queres? perguntou ele.
Ao ouvir isto, arrepiaram-se-me as
carnes. O vulto falava e falava grego, o mais puro ático. Era ele, não havia
duvidar que era ele mesmo, um morto de vinte séculos, restituído à vida, tão
cabalmente como se viesse de cortar agora mesmo a famosa cauda do cão. Era
claro que, sem o pensar, acabava eu de dar um grande passo na carreira do
espiritismo; mas, ai de mim! não o entendi logo, e deixei-me ficar assombrado. Ele
repetiu a pergunta, olhou em volta de si e sentou-se numa poltrona. Como eu
estivesse frio e trêmulo (ainda o estou agora) ele que o percebeu, falou-me com
muito carinho, e tratou de rir e gracejar para o fim de devolver-me o sossego e
a confiança. Hábil como outrora! Que mais direi a V. Ex.ª? No fim de poucos
minutos conversávamos os dois, em grego antigo, ele repotreado e natural, eu
pedindo a todos os santos do céu a presença de um criado, de uma visita, de uma
patrulha, ou, se tanto fosse necessário, - de um incêndio.
Escusado é dizer a V. Ex.ª que abri
mão da ideia de o consultar acerca do vestuário moderno; pedira um espectro,
não um homem "de verdade", como dizem as crianças. Limitei-me a
responder ao que ele queria; pediu-me notícias de Atenas, dei-lhas; disse-lhe que
ela era enfim a cabeça de uma só Grécia, narrei-lhe a dominação muçulmana, a independência,
Botzaris, lord Byron. O grande homem tinha os olhos pendurados da minha boca;
e, mostrando-me admirado de que os mortos lhe não houvessem contado nada, explicou-me
que à porta do outro mundo afrouxavam muito os interesses deste. Não vira Botzaris
nem lord Byron, - em primeiro lugar, porque é tanta e tantíssima a multidão de espíritos,
que estes se fazem naturalmente desencontrados; em segundo lugar, porque eles lá
congregam-se, não por nacionalidades ou outra ordem, senão por categorias de
índole, costume e profissão: assim é que ele, Alcibíades, anda no grupo dos
políticos elegantes e namorados, com o duque de Buckingham, o Garrett, o nosso
Maciel Monteiro, etc. Em seguida pediu-me notícias atuais; relatei-lhe o que
sabia, em resumo; falei-lhe do parlamento helênico e do método alternativo com
que Bulgaris e Comondouros, estadistas seus patrícios, imitam Disraeli e
Gladstone, revezando-se no poder, e, assim como estes, a golpes de discurso.
Ele, que foi um magnífico orador, interrompeu-me:
— Bravo, atenienses!
Se entro nestas minúcias é para o
fim de nada omitir do que possa dar a V. Ex.ª o conhecimento exato do
extraordinário caso que lhe vou narrando. Já disse que Alcibíades escutava-me
com avidez; acrescentarei que era esperto e arguto; entendia as coisas sem largo
dispêndio de palavras. Era também sarcástico; ao menos assim me pareceu em um
ou dois pontos da nossa conversação; mas no geral dela, mostrava-se simples,
atento, correto, sensível e digno. E gamenho, note V. Ex.ª, tão gamenho como
outrora; olhava de soslaio para o espelho, como fazem as nossas e outras damas
deste século, mirava os borzeguins, compunha o manto, não saía de certas atitudes esculturais.
— Vá, continua, dizia-me ele, quando
eu parava de lhe dar notícias.
Mas eu não podia mais. Entrado no
inextricável, no maravilhoso, achava tudo possível, não atinava por que razão,
assim, como ele vinha ter comigo ao tempo, não iria eu ter com ele à
eternidade. Esta ideia gelou-me. Para um homem que acabou de digerir o jantar e
aguarda a hora do Cassino, a morte é o último dos sarcasmos.
Se pudesse fugir... Animei-me:
disse-lhe que ia a um baile.
— Um baile? Que coisa é um baile?
Expliquei-lho.
— Ah! ver dançar a pírrica!
— Não, emendei eu, a pírrica já lá
vai. Cada século, meu caro Alcibíades, muda de danças como muda de ideias. Nós
já não dançamos as mesmas coisas do século passado; provavelmente o século XX
não dançará as deste. A pírrica foi-se, com os homens de Plutarco e os numes de
Hesíodo.
— Com os numes?
Repeti-lhe que sim, que o paganismo
acabara, que as academias do século passado ainda lhe deram abrigo, mas sem
convicção, nem alma, que as mesmas bebedeiras arcádicas,
Evoé!
padre Bassareu!
Evoé!
etc.
honesto passatempo de alguns desembargadores
pacatos, essas mesmas estavam curadas, radicalmente curadas. De longe em longe,
acrescentei, um ou outro poeta, um ou outro prosador alude aos restos da
teogonia pagã, mas só o faz por gala ou brinco, ao passo que a ciência reduziu
todo o Olimpo a uma simbólica. Morto, tudo morto.
— Morto Zeus?
— Morto.
— Dionisos, Afrodita?...
— Tudo morto.
O homem de Plutarco levantou-se,
andou um pouco, contendo a indignação, como se dissesse consigo, imitando o
outro: — Ah! se lá estou com os meus atenienses! - Zeus, Dionisos, Afrodita...
murmurava de quando em quando. Lembrou-me então que ele fora uma vez acusado de
desacato aos deuses e perguntei a mim mesmo donde vinha aquela indignação póstuma, e naturalmente postiça.
Esquecia-me, - um devoto do grego! -esquecia-me que ele era também um refinado
hipócrita, um ilustre dissimulado. E quase não tive tempo de fazer esse reparo,
porque Alcibíades, detendo-se repentinamente, declarou-me que iria ao baile
comigo.
— Ao baile? repeti atônito.
— Ao baile, vamos ao baile.
Fiquei aterrado, disse-lhe que não,
que não era possível, que não o admitiriam, com aquele trajo; pareceria doido;
salvo se ele queria ir lá representar alguma comédia de Aristófanes, acrescentei
rindo, para disfarçar o medo. O que eu queria era deixá-lo, entregar-lhe a
casa, e uma vez na rua, não iria ao Cassino, iria ter com V. Ex.ª. Mas o diabo
do homem não se movia; escutava-me com os olhos no chão, pensativo,
deliberante. Calei-me; cheguei a cuidar que o pesadelo ia acabar, que o vulto
ia desfazer-se, e que eu ficava ali com as minhas calças, os meus sapatos e o
meu século.
— Quero ir ao baile, repetiu ele. Já
agora não vou sem comparar as danças.
— Meu caro Alcibíades, não acho
prudente um tal desejo. Eu teria certamente a maior honra, um grande
desvanecimento em fazer entrar no Cassino, o mais gentil, o mais feiticeiro dos
atenienses; mas os outros homens de hoje, os rapazes, as moças, os velhos... é
impossível.
— Por quê?
— Já disse; imaginarão que és um
doido ou um comediante, porque essa roupa...
— Que tem? A roupa muda-se. Irei à
maneira do século. Não tens alguma roupa que me
emprestes?
Ia a dizer que não; mas ocorreu-me
logo que o mais urgente era sair, e que uma vez na rua, sobravam-me recursos
para escapar-lhe, e então disse-lhe que sim.
— Pois bem, tornou ele levantando-se,
irei à maneira do século. Só peço que te vistas primeiro, para eu aprender e
imitar-te depois.
Levantei-me também, e pedi-lhe que
me acompanhasse. Não se moveu logo; estava assombrado.
Vi que só então reparara nas minhas
calças brancas; olhava para elas com os olhos arregalados, a boca aberta;
enfim, perguntou por que motivo trazia aqueles canudos de pano. Respondi que
por maior comodidade; acrescentei que o nosso século, mais recatado e útil do
que artista, determinara trajar de um modo compatível com o seu decoro e
gravidade. Demais nem todos seriam Alcibíades. Creio que o lisonjeei com isto;
ele sorriu e deu de ombros.
— Enfim!
Seguimos para o meu quarto de
vestir, e comecei a mudar de roupa, às pressas. Alcibíades sentou-se molemente
num divã, não sem elogiá-lo, não sem elogiar o espelho, a palhinha, os quadros.
- Eu vestia-me, como digo, às pressas, ansioso por sair à rua, por meter-me no primeiro
tílburi que passasse...
— Canudos pretos! exclamou ele.
Eram as calças pretas que eu acabava
de vestir. Exclamou e riu, um risinho em que o espanto vinha mesclado de
escárnio, o que ofendeu grandemente o meu melindre de homem moderno. Porque,
note V. Ex.ª ainda que o nosso tempo nos pareça digno de crítica, e até de
execração, não gostamos de que um antigo venha mofar dele às nossas barbas. Não
respondi ao ateniense; franzi um pouco o sobrolho e continuei a abotoar os
suspensórios. Ele perguntou-me então por que motivo usava uma cor tão feia...
— Feia, mas séria, disse-lhe. Olha,
entretanto, a graça do corte, vê como cai sobre o sapato, que é de verniz,
embora preto, e trabalhado com muita perfeição.
E vendo que ele abanava a cabeça:
— Meu caro, disse-lhe, tu podes
certamente exigir que o Júpiter Olímpico seja o emblema eterno da majestade: é
o domínio da arte ideal, desinteressada, superior aos tempos que passam e aos
homens que os acompanham. Mas a arte de vestir é outra coisa. Isto que parece
absurdo ou desgracioso é perfeitamente racional e belo, - belo à nossa maneira,
que não andamos a ouvir na rua os rapsodos recitando os seus versos, nem os
oradores os seus discursos, nem os filósofos as suas filosofias. Tu mesmo, se
te acostumares a ver-nos, acabarás por gostar de nós, porque...
— Desgraçado! bradou ele atirando-se
a mim.
Antes de entender a causa do grito e
do gesto, fiquei sem pinga de sangue. A causa era uma
ilusão. Como eu
passasse a gravata à volta do pescoço e tratasse de dar o laço, Alcibíades supôs
que ia enforcar-me, segundo confessou depois. E, na verdade, estava pálido,
trêmulo, em suores frios. Agora quem se riu fui eu. Ri-me, e expliquei-lhe o
uso da gravata e notei que era branca, não preta, posto usássemos também
gravatas pretas. Só depois de tudo isso explicado é que ele consentiu em
restituir-ma. Atei-a enfim, depois vesti o colete.
— Por Afrodita! exclamou ele. És a
coisa mais singular que jamais vi na vida e na morte. Estás todo cor da noite -
uma noite com três estrelas apenas - continuou apontando para os botões do
peito. O mundo deve andar imensamente melancólico, se escolheu para uso uma cor
tão morta e tão triste. Nós éramos mais alegres; vivíamos...
Não pôde concluir a frase; eu
acabava de enfiar a casaca, e a consternação do ateniense foi indescritível.
Caíram-lhe os braços, ficou sufocado, não podia articular nada, tinha os olhos cravados
em mim, grandes, abertos. Creia V. Ex.ª que fiquei com medo, e tratei de
apressar ainda mais a saída.
— Estás completo? perguntou-me ele.
— Não: falta o chapéu.
— Oh! venha alguma coisa que possa
corrigir o resto! tornou Alcibíades com voz suplicante. Venha, venha. Assim
pois, toda a elegância que vos legamos está reduzida a um par de canudos
fechados e outro par de canudos abertos (e dizia isto levantando-me as abas da casaca),
e tudo dessa cor enfadonha e negativa? Não, não posso crê-lo! Venha alguma
coisa que corrija isso. O que é que, falta, dizes tu?
— O chapéu.
- Põe o que te falta, meu caro, põe
o que te falta.
Obedeci; fui dali ao cabide,
despendurei o chapéu, e pu-lo na cabeça. Alcibíades olhou para mim, cambaleou e
caiu. Corri ao ilustre ateniense, para levantá-lo, mas (com dor o digo) era
tarde; estava morto, morto pela segunda vez. Rogo a V. Ex.ª se digne de expedir
suas respeitáveis ordens para que o cadáver seja transportado ao necrotério, e
se proceda ao corpo de delito, relevando-me de não ir pessoalmente à casa de V.
Ex.ª agora mesmo (dez da noite) em atenção ao profundo abalo por que acabo de passar,
o que aliás farei amanhã de manhã, antes das oito.
FIM
Análise
(jlo)
Esse conto foi publicado na obra Papéis avulsos, de Machado de Assis, em
1882. É o terceiro livro da chamada fase realista do nosso maior escritor, com
a característica da narrativa curta, o que era novidade em sua época. Retrata o
primeiro personagem espírita, mas a intenção do autor não é representar
fielmente a Doutrina Espírita e, sim, com base no aspecto da carnavalização
literária proposta por Bakhtin e no aspecto burlesco da sátira menipeia, expor
a contradição entre os costumes de épocas distintas. A ideia principal é
criticar os costumes culturais e estéticos da sociedade em que vivia o autor.
O narrador havia acabado de jantar,
o que ocorria à tardinha, em seu tempo, e esperava a “hora do Cassino”, o que
demonstra ser hábito comum do personagem o dos jogos. Confessa, entretanto que se
tornara espírita e desejava, como bom cultor do conhecimento grego, conversar
com o espírito de Alcibíades, ateniense sobrinho de Péricles, célebre e
influente estadista, orador e general da Grécia antiga e também a maior
personalidade política do século XV, na chamada “Era de ouro de Atenas”. Outra
característica de Péricles é que ele é considerado um dos mais importantes
líderes democráticos atenienses (Disponível em: www.wikipedia.org. Acesso em 26 de janeiro de
2013.).
Charles Baudelaire, poeta e crítico
francês, escreveu que “Cada século e cada povo tem a sua própria expressão de
beleza e de moral”. Nesse conto, Machado desenvolve justamente a questão dos
conflitos culturais entre personagens de épocas distintas, ou seja, um deles
vindo do século XV e o outro estando no século XIX. A narração enfoca,
principalmente, o espanto de ambos os personagens em relação aos trajes de cada
um. As vestes, segundo o Dicionário de símbolos (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2006 ),
simbolizam a forma visível do homem interior, o lado exterior da manifestação
espiritual. A modificação da roupa, do século do personagem grego para o do
século XIX manifesta, para o desembargador, uma evolução social, enquanto para
o grego, uma agressão a sua cultura e uma aberração de costume. A roupa não
somente indica a “consciência de si mesmo”, o “aspecto moral” do ser humano (os
animais não se vestem), como também representa seu desejo de influenciar.
É importante observar que o
narrador, de início, trajava uma calça branca, símbolo de pureza, e, quando a
troca para a de cor preta, causa profunda estranheza em Alcibíades, uma vez
que, em geral, essa cor simboliza o aspecto negativo, a morte. Ironicamente, a
gravata, que era branca e, portanto, simbolizava a pureza, foi interpretada por
Alcibíades como instrumento de enforcamento do seu interlocutor, pelo que
tomou-lhe o acessório em sobressalto, justamente quando este justificava a
mudança de costumes das épocas distintas.
Depois do colete e da casaca, que continuaram
a causar espécie a Alcibíades, o narrador informou-lhe que ainda faltava um
último acessório: o chapéu. O espírito materializado ainda esperou, na
esperança de, após tanto disparate em forma de vestiário, ver alguma coisa que
corrigisse a extravagância da roupa do desembargador. Ao vê-lo de chapéu,
porém, o susto foi tão grande que Alcibíades morreu pela segunda vez.
O chapéu simboliza o poder, a
mudança de costumes (ideias), da visão do mundo. É ele que “cobre a cabeça do
chefe” (op. cit.). Daí explicar-se o choque mortal recebido pelo grego.
No conto, podemos identificar
igualmente um outro aspecto espacial: a questão das distâncias, proposta por
Hall (2005). Para ele, podemos classificar, didaticamente, quatro tipos de
distâncias: íntima, pessoal, social e pública. Cada uma delas possui uma fase
próxima e outra remota. Em suas fases, respectivamente, próxima e remota, a íntima
vai de um contato corpo a corpo e entre 15 cm a 45 cm; a pessoal fica entre 45
e 75 cm e 75 cm a 1,20 m; a social vai
de 1,20 m a 2,20 m e de 2,10 m a 3,60m ; por fim, a pública fica entre 3,60/7,50 m e a partir de
7,50 m. Nesse conto, a distância que se pode estimar, entre os interlocutores é
a social.
Na distância social da fase próxima
as pessoas ficam de 1,20 m a 2,10 m uma da outra, o que se pode deduzir que
ocorreu na sala onde apareceu, “em carne e osso” o espírito Alcibíades, que,
após as saudações iniciais e, ante o espanto do narrador, sentou-se numa
poltrona e entabulou com este uma conversa sobre fatos históricos relacionados
a Atenas e à Grécia, após o evocado acalmar o desembargador e rir-se deste. No
momento em que o narrador se afasta para pegar o chapéu, a fase da distância
social aumenta e torna-se remota (entre 2,10 m e 3,60m). Quando o narrador
volta com o chapéu na cabeça, a distância volta a ser próxima e a visão dos
trajes extravagantes do desembargador, com a cabeça coberta, é-lhe fatal.
Quanto à distância entre o
desembargador, que escreve ao chefe de polícia da corte, essa não se enquadra
em nenhuma das especificadas, mas poderíamos considerar que, espacialmente, há
entre ambos, simbolicamente, uma remota distância pública e uma próxima
distância pessoal, tendo em vista o coleguismo entre ambos, desde os tempos de
estudos.
Este conto demonstra-nos que tudo é fugaz
na vida social. Com a mudança das
épocas, as tendências estéticas e culturais são efêmeras, e o conceito de
beleza e elegância muda-se radicalmente de uma época para outra. Para haver
mudança, entretanto, é necessária uma adaptação pessoal ao longo do tempo e do
espaço. Caso contrário, o choque provocado por uma transformação social
inadmitida é crucial.
Referências
BORGES
FILHO, Ozíris; BARBOSA, Sidney. Organizadores. Poéticas do espaço literário. São Carlos, SP: Claraluz, 2009.
BORGES
FILHO, Ozíris. Espaço & literatura:
introdução à topoanálise. Franca, SP: Ribeirão Gráfica e Ed., 2007.
CHEVALIER,
Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de
símbolos. 20. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.
HALL,
Edward. Distâncias no ser humano. In: A dimensão
oculta. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
REGO,
Enylton de Sá. O calundu e a panaceia:
Machado de Assis, a sátira menipeia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1989.