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domingo, 27 de janeiro de 2013


Uma visita de Alcebíades

CARTA DO DESEMBARGADOR X... AO CHEFE DE POLÍCIA DA CORTE

            Corte, 20 de setembro de 1875.

             Desculpe V. Ex.ª o tremido da letra e o desgrenhado do estilo; entendê-los-á daqui a pouco.

            Hoje, à tardinha, acabado o jantar, enquanto esperava a hora do Cassino, estirei-me no sofá e abri um tomo de Plutarco. V. Ex.ª, que foi meu companheiro de estudos, há de lembrar-se que eu, desde rapaz, padeci esta devoção do grego; devoção ou mania, que era o nome que V. Ex.ª lhe dava, e tão intensa que me ia fazendo reprovar em outras disciplinas. Abri o tomo, e sucedeu o que sempre se dá comigo quando leio alguma coisa antiga: transporto-me ao tempo e ao meio da ação ou da obra. Depois de jantar é excelente. Dentro de pouco acha-se a gente numa via romana, ao pé de um pórtico grego ou na loja de um gramático.

           Desaparecem os tempos modernos, a insurreição da Herzegovina, a guerra dos carlistas, arua do Ouvidor, o circo Chiarini. Quinze ou vinte minutos de vida antiga, e de graça. Uma verdadeira digestão literária.

            Foi o que se deu hoje. A página aberta acertou de ser a vida de Alcibíades. Deixei-me ir ao sabor da loquela ática; daí a nada entrava nos jogos olímpicos, admirava o mais guapo dos atenienses, guiando magnificamente o carro, com a mesma firmeza e donaire com que sabia reger as batalhas, os cidadãos e os próprios sentidos. Imagine V. Ex.ª se vivi! Mas, o moleque entrou e acendeu o gás; não foi preciso mais para fazer voar toda a arqueologia da minha imaginação. Atenas volveu à história, enquanto os olhos me caíam das nuvens, isto é, nas calças de brim branco, no paletó de alpaca e nos sapatos de cordovão. E então refleti comigo:

            — Que impressão daria ao ilustre ateniense o nosso vestuário moderno?

            Sou espiritista desde alguns meses. Convencido de que todos os sistemas são puras niilidades, resolvi adotar o mais recreativo deles. Tempo virá em que este não seja só recreativo, mas também útil à solução dos problemas históricos; é mais sumário evocar o espírito dos mortos, do que gastar as forças críticas, e gastá-las em pura perda, porque não há raciocínio nem documento que nos explique melhor a intenção de um ato do que o próprio autor do ato. E tal era o meu caso desta noite. Conjeturar qual fosse a impressão de Alcibíades era despender o tempo, sem outra vantagem, além do gosto de admirar a minha própria habilidade. Determinei, portanto, evocar o ateniense; pedi-lhe que comparecesse em minha casa, logo, sem demora.

            E aqui começa o extraordinário da aventura. Não se demorou Alcibíades em acudir ao chamado; dois minutos depois estava ali, na minha sala, perto da parede; mas não era a sombra impalpável que eu cuidara ter evocado pelos métodos da nossa escola; era o próprio Alcibíades, carne e osso, vero homem, grego autêntico, trajado à antiga, cheio daquela gentileza e desgarre com que usava arengar às grandes assembléias de Atenas, e também, um pouco, aos seus pataus. V. Ex.ª, tão sabedor da história, não ignora que também houve pataus em Atenas; sim, Atenas também os possuiu, e esse precedente é uma desculpa. Juro a V. Ex.ª que não acreditei; por mais fiel que fosse o testemunho dos sentidos, não podia acabar de crer que tivesse ali, em minha casa, não a sombra de Alcibíades, mas o próprio Alcibíades redivivo. Nutri ainda a esperança de que tudo aquilo não fosse mais do que o efeito de uma digestão mal rematada, um simples eflúvio do quilo, através da luneta de Plutarco; e então esfreguei os olhos, fitei-os, e...

            — Que me queres? perguntou ele.

            Ao ouvir isto, arrepiaram-se-me as carnes. O vulto falava e falava grego, o mais puro ático. Era ele, não havia duvidar que era ele mesmo, um morto de vinte séculos, restituído à vida, tão cabalmente como se viesse de cortar agora mesmo a famosa cauda do cão. Era claro que, sem o pensar, acabava eu de dar um grande passo na carreira do espiritismo; mas, ai de mim! não o entendi logo, e deixei-me ficar assombrado. Ele repetiu a pergunta, olhou em volta de si e sentou-se numa poltrona. Como eu estivesse frio e trêmulo (ainda o estou agora) ele que o percebeu, falou-me com muito carinho, e tratou de rir e gracejar para o fim de devolver-me o sossego e a confiança. Hábil como outrora! Que mais direi a V. Ex.ª? No fim de poucos minutos conversávamos os dois, em grego antigo, ele repotreado e natural, eu pedindo a todos os santos do céu a presença de um criado, de uma visita, de uma patrulha, ou, se tanto fosse necessário, - de um incêndio.

            Escusado é dizer a V. Ex.ª que abri mão da ideia de o consultar acerca do vestuário moderno; pedira um espectro, não um homem "de verdade", como dizem as crianças. Limitei-me a responder ao que ele queria; pediu-me notícias de Atenas, dei-lhas; disse-lhe que ela era enfim a cabeça de uma só Grécia, narrei-lhe a dominação muçulmana, a independência, Botzaris, lord Byron. O grande homem tinha os olhos pendurados da minha boca; e, mostrando-me admirado de que os mortos lhe não houvessem contado nada, explicou-me que à porta do outro mundo afrouxavam muito os interesses deste. Não vira Botzaris nem lord Byron, - em primeiro lugar, porque é tanta e tantíssima a multidão de espíritos, que estes se fazem naturalmente desencontrados; em segundo lugar, porque eles lá congregam-se, não por nacionalidades ou outra ordem, senão por categorias de índole, costume e profissão: assim é que ele, Alcibíades, anda no grupo dos políticos elegantes e namorados, com o duque de Buckingham, o Garrett, o nosso Maciel Monteiro, etc. Em seguida pediu-me notícias atuais; relatei-lhe o que sabia, em resumo; falei-lhe do parlamento helênico e do método alternativo com que Bulgaris e Comondouros, estadistas seus patrícios, imitam Disraeli e Gladstone, revezando-se no poder, e, assim como estes, a golpes de discurso. Ele, que foi um magnífico orador, interrompeu-me:

            — Bravo, atenienses!

            Se entro nestas minúcias é para o fim de nada omitir do que possa dar a V. Ex.ª o conhecimento exato do extraordinário caso que lhe vou narrando. Já disse que Alcibíades escutava-me com avidez; acrescentarei que era esperto e arguto; entendia as coisas sem largo dispêndio de palavras. Era também sarcástico; ao menos assim me pareceu em um ou dois pontos da nossa conversação; mas no geral dela, mostrava-se simples, atento, correto, sensível e digno. E gamenho, note V. Ex.ª, tão gamenho como outrora; olhava de soslaio para o espelho, como fazem as nossas e outras damas deste século, mirava os borzeguins, compunha o manto, não saía de certas atitudes esculturais.

            — Vá, continua, dizia-me ele, quando eu parava de lhe dar notícias.

            Mas eu não podia mais. Entrado no inextricável, no maravilhoso, achava tudo possível, não atinava por que razão, assim, como ele vinha ter comigo ao tempo, não iria eu ter com ele à eternidade. Esta ideia gelou-me. Para um homem que acabou de digerir o jantar e aguarda a hora do Cassino, a morte é o último dos sarcasmos.

            Se pudesse fugir... Animei-me: disse-lhe que ia a um baile.

            — Um baile? Que coisa é um baile?

            Expliquei-lho.

            — Ah! ver dançar a pírrica!

            — Não, emendei eu, a pírrica já lá vai. Cada século, meu caro Alcibíades, muda de danças como muda de ideias. Nós já não dançamos as mesmas coisas do século passado; provavelmente o século XX não dançará as deste. A pírrica foi-se, com os homens de Plutarco e os numes de Hesíodo.

            — Com os numes?

            Repeti-lhe que sim, que o paganismo acabara, que as academias do século passado ainda lhe deram abrigo, mas sem convicção, nem alma, que as mesmas bebedeiras arcádicas,

Evoé! padre Bassareu!
                                      Evoé! etc.
honesto passatempo de alguns desembargadores pacatos, essas mesmas estavam curadas, radicalmente curadas. De longe em longe, acrescentei, um ou outro poeta, um ou outro prosador alude aos restos da teogonia pagã, mas só o faz por gala ou brinco, ao passo que a ciência reduziu todo o Olimpo a uma simbólica. Morto, tudo morto.

            — Morto Zeus?

            — Morto.

            — Dionisos, Afrodita?...

            — Tudo morto.

            O homem de Plutarco levantou-se, andou um pouco, contendo a indignação, como se dissesse consigo, imitando o outro: — Ah! se lá estou com os meus atenienses! - Zeus, Dionisos, Afrodita... murmurava de quando em quando. Lembrou-me então que ele fora uma vez acusado de desacato aos deuses e perguntei a mim mesmo donde vinha aquela  indignação póstuma, e naturalmente postiça. Esquecia-me, - um devoto do grego! -esquecia-me que ele era também um refinado hipócrita, um ilustre dissimulado. E quase não tive tempo de fazer esse reparo, porque Alcibíades, detendo-se repentinamente, declarou-me que iria ao baile comigo.

            — Ao baile? repeti atônito.

            — Ao baile, vamos ao baile.

            Fiquei aterrado, disse-lhe que não, que não era possível, que não o admitiriam, com aquele trajo; pareceria doido; salvo se ele queria ir lá representar alguma comédia de Aristófanes, acrescentei rindo, para disfarçar o medo. O que eu queria era deixá-lo, entregar-lhe a casa, e uma vez na rua, não iria ao Cassino, iria ter com V. Ex.ª. Mas o diabo do homem não se movia; escutava-me com os olhos no chão, pensativo, deliberante. Calei-me; cheguei a cuidar que o pesadelo ia acabar, que o vulto ia desfazer-se, e que eu ficava ali com as minhas calças, os meus sapatos e o meu século.

            — Quero ir ao baile, repetiu ele. Já agora não vou sem comparar as danças.

            — Meu caro Alcibíades, não acho prudente um tal desejo. Eu teria certamente a maior honra, um grande desvanecimento em fazer entrar no Cassino, o mais gentil, o mais feiticeiro dos atenienses; mas os outros homens de hoje, os rapazes, as moças, os velhos... é impossível.

            — Por quê?

            — Já disse; imaginarão que és um doido ou um comediante, porque essa roupa...
            — Que tem? A roupa muda-se. Irei à maneira do século. Não tens alguma roupa que me

emprestes?

            Ia a dizer que não; mas ocorreu-me logo que o mais urgente era sair, e que uma vez na rua, sobravam-me recursos para escapar-lhe, e então disse-lhe que sim.

            — Pois bem, tornou ele levantando-se, irei à maneira do século. Só peço que te vistas primeiro, para eu aprender e imitar-te depois.

            Levantei-me também, e pedi-lhe que me acompanhasse. Não se moveu logo; estava assombrado.

            Vi que só então reparara nas minhas calças brancas; olhava para elas com os olhos arregalados, a boca aberta; enfim, perguntou por que motivo trazia aqueles canudos de pano. Respondi que por maior comodidade; acrescentei que o nosso século, mais recatado e útil do que artista, determinara trajar de um modo compatível com o seu decoro e gravidade. Demais nem todos seriam Alcibíades. Creio que o lisonjeei com isto; ele sorriu e deu de ombros.

            — Enfim!

            Seguimos para o meu quarto de vestir, e comecei a mudar de roupa, às pressas. Alcibíades sentou-se molemente num divã, não sem elogiá-lo, não sem elogiar o espelho, a palhinha, os quadros. - Eu vestia-me, como digo, às pressas, ansioso por sair à rua, por meter-me no primeiro tílburi que passasse...

            — Canudos pretos! exclamou ele.

            Eram as calças pretas que eu acabava de vestir. Exclamou e riu, um risinho em que o espanto vinha mesclado de escárnio, o que ofendeu grandemente o meu melindre de homem moderno. Porque, note V. Ex.ª ainda que o nosso tempo nos pareça digno de crítica, e até de execração, não gostamos de que um antigo venha mofar dele às nossas barbas. Não respondi ao ateniense; franzi um pouco o sobrolho e continuei a abotoar os suspensórios. Ele perguntou-me então por que motivo usava uma cor tão feia...

            — Feia, mas séria, disse-lhe. Olha, entretanto, a graça do corte, vê como cai sobre o sapato, que é de verniz, embora preto, e trabalhado com muita perfeição.

            E vendo que ele abanava a cabeça:

            — Meu caro, disse-lhe, tu podes certamente exigir que o Júpiter Olímpico seja o emblema eterno da majestade: é o domínio da arte ideal, desinteressada, superior aos tempos que passam e aos homens que os acompanham. Mas a arte de vestir é outra coisa. Isto que parece absurdo ou desgracioso é perfeitamente racional e belo, - belo à nossa maneira, que não andamos a ouvir na rua os rapsodos recitando os seus versos, nem os oradores os seus discursos, nem os filósofos as suas filosofias. Tu mesmo, se te acostumares a ver-nos, acabarás por gostar de nós, porque...

            — Desgraçado! bradou ele atirando-se a mim.

            Antes de entender a causa do grito e do gesto, fiquei sem pinga de sangue. A causa era uma

ilusão. Como eu passasse a gravata à volta do pescoço e tratasse de dar o laço, Alcibíades supôs que ia enforcar-me, segundo confessou depois. E, na verdade, estava pálido, trêmulo, em suores frios. Agora quem se riu fui eu. Ri-me, e expliquei-lhe o uso da gravata e notei que era branca, não preta, posto usássemos também gravatas pretas. Só depois de tudo isso explicado é que ele consentiu em restituir-ma. Atei-a enfim, depois vesti o colete.

            — Por Afrodita! exclamou ele. És a coisa mais singular que jamais vi na vida e na morte. Estás todo cor da noite - uma noite com três estrelas apenas - continuou apontando para os botões do peito. O mundo deve andar imensamente melancólico, se escolheu para uso uma cor tão morta e tão triste. Nós éramos mais alegres; vivíamos...

            Não pôde concluir a frase; eu acabava de enfiar a casaca, e a consternação do ateniense foi indescritível. Caíram-lhe os braços, ficou sufocado, não podia articular nada, tinha os olhos cravados em mim, grandes, abertos. Creia V. Ex.ª que fiquei com medo, e tratei de apressar ainda mais a saída.

            — Estás completo? perguntou-me ele.

            — Não: falta o chapéu.

            — Oh! venha alguma coisa que possa corrigir o resto! tornou Alcibíades com voz suplicante. Venha, venha. Assim pois, toda a elegância que vos legamos está reduzida a um par de canudos fechados e outro par de canudos abertos (e dizia isto levantando-me as abas da casaca), e tudo dessa cor enfadonha e negativa? Não, não posso crê-lo! Venha alguma coisa que corrija isso. O que é que, falta, dizes tu?

            — O chapéu.

            - Põe o que te falta, meu caro, põe o que te falta.

            Obedeci; fui dali ao cabide, despendurei o chapéu, e pu-lo na cabeça. Alcibíades olhou para mim, cambaleou e caiu. Corri ao ilustre ateniense, para levantá-lo, mas (com dor o digo) era tarde; estava morto, morto pela segunda vez. Rogo a V. Ex.ª se digne de expedir suas respeitáveis ordens para que o cadáver seja transportado ao necrotério, e se proceda ao corpo de delito, relevando-me de não ir pessoalmente à casa de V. Ex.ª agora mesmo (dez da noite) em atenção ao profundo abalo por que acabo de passar, o que aliás farei amanhã de manhã, antes das oito.

FIM


Análise (jlo)


            Esse conto foi publicado na obra Papéis avulsos, de Machado de Assis, em 1882. É o terceiro livro da chamada fase realista do nosso maior escritor, com a característica da narrativa curta, o que era novidade em sua época. Retrata o primeiro personagem espírita, mas a intenção do autor não é representar fielmente a Doutrina Espírita e, sim, com base no aspecto da carnavalização literária proposta por Bakhtin e no aspecto burlesco da sátira menipeia, expor a contradição entre os costumes de épocas distintas. A ideia principal é criticar os costumes culturais e estéticos da sociedade em que vivia o autor.

            O narrador havia acabado de jantar, o que ocorria à tardinha, em seu tempo, e esperava a “hora do Cassino”, o que demonstra ser hábito comum do personagem o dos jogos. Confessa, entretanto que se tornara espírita e desejava, como bom cultor do conhecimento grego, conversar com o espírito de Alcibíades, ateniense sobrinho de Péricles, célebre e influente estadista, orador e general da Grécia antiga e também a maior personalidade política do século XV, na chamada “Era de ouro de Atenas”. Outra característica de Péricles é que ele é considerado um dos mais importantes líderes democráticos atenienses (Disponível em: www.wikipedia.org. Acesso em 26 de janeiro de 2013.).

            Charles Baudelaire, poeta e crítico francês, escreveu que “Cada século e cada povo tem a sua própria expressão de beleza e de moral”. Nesse conto, Machado desenvolve justamente a questão dos conflitos culturais entre personagens de épocas distintas, ou seja, um deles vindo do século XV e o outro estando no século XIX. A narração enfoca, principalmente, o espanto de ambos os personagens em relação aos trajes de cada um. As vestes, segundo o Dicionário de símbolos (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2006 ), simbolizam a forma visível do homem interior, o lado exterior da manifestação espiritual. A modificação da roupa, do século do personagem grego para o do século XIX manifesta, para o desembargador, uma evolução social, enquanto para o grego, uma agressão a sua cultura e uma aberração de costume. A roupa não somente indica a “consciência de si mesmo”, o “aspecto moral” do ser humano (os animais não se vestem), como também representa seu desejo de influenciar.

            É importante observar que o narrador, de início, trajava uma calça branca, símbolo de pureza, e, quando a troca para a de cor preta, causa profunda estranheza em Alcibíades, uma vez que, em geral, essa cor simboliza o aspecto negativo, a morte. Ironicamente, a gravata, que era branca e, portanto, simbolizava a pureza, foi interpretada por Alcibíades como instrumento de enforcamento do seu interlocutor, pelo que tomou-lhe o acessório em sobressalto, justamente quando este justificava a mudança de costumes das épocas distintas.

            Depois do colete e da casaca, que continuaram a causar espécie a Alcibíades, o narrador informou-lhe que ainda faltava um último acessório: o chapéu. O espírito materializado ainda esperou, na esperança de, após tanto disparate em forma de vestiário, ver alguma coisa que corrigisse a extravagância da roupa do desembargador. Ao vê-lo de chapéu, porém, o susto foi tão grande que Alcibíades morreu pela segunda vez.

            O chapéu simboliza o poder, a mudança de costumes (ideias), da visão do mundo. É ele que “cobre a cabeça do chefe” (op. cit.). Daí explicar-se o choque mortal recebido pelo grego.

            No conto, podemos identificar igualmente um outro aspecto espacial: a questão das distâncias, proposta por Hall (2005). Para ele, podemos classificar, didaticamente, quatro tipos de distâncias: íntima, pessoal, social e pública. Cada uma delas possui uma fase próxima e outra remota. Em suas fases, respectivamente, próxima e remota, a íntima vai de um contato corpo a corpo e entre 15 cm a 45 cm; a pessoal fica entre 45 e 75 cm e  75 cm a 1,20 m; a social vai de 1,20 m a 2,20 m e de 2,10 m a 3,60m ; por fim,  a pública fica entre 3,60/7,50 m e a partir de 7,50 m. Nesse conto, a distância que se pode estimar, entre os interlocutores é a social.

            Na distância social da fase próxima as pessoas ficam de 1,20 m a 2,10 m uma da outra, o que se pode deduzir que ocorreu na sala onde apareceu, “em carne e osso” o espírito Alcibíades, que, após as saudações iniciais e, ante o espanto do narrador, sentou-se numa poltrona e entabulou com este uma conversa sobre fatos históricos relacionados a Atenas e à Grécia, após o evocado acalmar o desembargador e rir-se deste. No momento em que o narrador se afasta para pegar o chapéu, a fase da distância social aumenta e torna-se remota (entre 2,10 m e 3,60m). Quando o narrador volta com o chapéu na cabeça, a distância volta a ser próxima e a visão dos trajes extravagantes do desembargador, com a cabeça coberta, é-lhe fatal.

            Quanto à distância entre o desembargador, que escreve ao chefe de polícia da corte, essa não se enquadra em nenhuma das especificadas, mas poderíamos considerar que, espacialmente, há entre ambos, simbolicamente, uma remota distância pública e uma próxima distância pessoal, tendo em vista o coleguismo entre ambos, desde os tempos de estudos.

            Este conto demonstra-nos que tudo é fugaz  na vida social. Com a mudança das épocas, as tendências estéticas e culturais são efêmeras, e o conceito de beleza e elegância muda-se radicalmente de uma época para outra. Para haver mudança, entretanto, é necessária uma adaptação pessoal ao longo do tempo e do espaço. Caso contrário, o choque provocado por uma transformação social inadmitida é crucial.

       

Referências


BORGES FILHO, Ozíris; BARBOSA, Sidney. Organizadores. Poéticas do espaço literário. São Carlos, SP: Claraluz, 2009.


BORGES FILHO, Ozíris. Espaço & literatura: introdução à topoanálise. Franca, SP: Ribeirão Gráfica e Ed., 2007.


CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 20. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.


HALL, Edward. Distâncias no ser humano. In: A dimensão oculta. São Paulo: Martins Fontes, 2005.


REGO, Enylton de Sá. O calundu e a panaceia: Machado de Assis, a sátira menipeia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.


www.Wikipedia.org.br. Péricles. Acesso em 26 jan. 2013.

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