Machado por ele mesmo (3)
Grito do
Ipiranga? Isso era bom antes de um nobre amigo, que veio reclamar pela Gazeta
de Notícias contra essa lenda de meio século.
Segundo o
ilustrado paulista, não houve nem grito nem Ipiranga.
Houve algumas
palavras, entre elas a Independência ou
Morte, - as quais todas foram proferidas em lugar diferente das margens do
Ipiranga.
Pondera o meu
amigo que não convém, a tão curta distância, desnaturar a verdade dos fatos.
Ninguém ignora a
que estado reduziram a história romana alguns autores alemães, cuja pena,
semelhante a uma picareta, desbastou os inventos de dezoito séculos, não nos
deixando mais que uma certa porção de sucessos exatos.
Vá feito! O tempo
decorrido era longo e a tradição estava arraigada como uma idéia fixa.
Demais, que Numa
Pompílio houvesse ou não existido é coisa que não altera sensivelmente a
moderna civilização.
Certamente é belo
que Lucrécia haja dado um exemplo de castidade às senhoras de todos os tempos;
mas se os escavadores modernos me provarem que Lucrécia é uma ficção e Tarquínio
uma hipótese, nem por isso deixa de haver castidade... e pretendentes.
Mas isso é
história antiga.
O caso do Ipiranga
data de ontem. Durante cinquenta a quatro anos temos vindo a repetir uma coisa
que o dito meu amigo declara não ter existido.
Houve resolução do príncipe D. Pedro, independência e o mais; mas não foi positivamente um grito, nem ele se deu nas margens do célebre ribeiro.
Houve resolução do príncipe D. Pedro, independência e o mais; mas não foi positivamente um grito, nem ele se deu nas margens do célebre ribeiro.
Lá se vão as
páginas dos historiadores; e isso é o menos. Emendam-se as futuras edições. Mas
os versos? Os versos emendam-se com muito menos facilidade.
Minha opinião é que a lenda é melhor do que a história autêntica. A lenda resumia todo o fato da independência nacional, ao passo que a versão exata o reduz a uma coisa vaga e anônima. Tenha paciência o meu ilustrado amigo. Eu prefiro o grito do Ipiranga; é mais sumário, mais bonito e mais genérico.
Minha opinião é que a lenda é melhor do que a história autêntica. A lenda resumia todo o fato da independência nacional, ao passo que a versão exata o reduz a uma coisa vaga e anônima. Tenha paciência o meu ilustrado amigo. Eu prefiro o grito do Ipiranga; é mais sumário, mais bonito e mais genérico.
15 set. 1876.
Análise (jlo)
O espaço é o das margens
do rio Ipiranga. O gradiente espacial utilizado pelo narrador é o da audição.
Ouve-se o grito às margens do citado rio. Entretanto, diz o narrador que, para
um seu amigo, esse grito não existiu no Ipiranga e, sim, em outro lugar.
Então, o cronista
lembra a história romana de Lucrécia, que, violentada sexualmente, cometeu o
suicídio para resguardar sua honra. O espaço foi outro, o tempo também, é da
história antiga. A data do grito do Ipiranga, diz o autor, é recente. Em sua
época, distava de apenas 54 anos e, em todo esse tempo, sempre se repetiu que o
fato ocorreu naquele local.
Com base na
informação do amigo paulista, teria havido a resolução de D. Pedro I em
declarar a independência, mas não daquela forma, o que contrariava os
historiadores.
Por fim,
propõe-se emendar as futuras edições da história. Fica, contudo, algo que não é
fácil de se corrigir: os versos. Por que os versos? O que esse elemento tem a
ver com a história?
Nada, diria o
apresentador da Globo, Tadeu Schimidt...
Muita coisa,
diríamos nós. As más línguas diziam que D. Pedro I era um conquistador (mas não
necessariamente de um país...) incorrigível, que se dirigia à casa de sua
amante, quando, surpreendido pela tropa brasileira, às margens do famoso rio, e
perguntado se desejaria voltar a Portugal para assumir o trono vago,
imediatamente rejeitou a proposta.
Em outro local,
porém, ou seja, na casa da amante, ao ser indagado por esta, ciente do fato, se
a deixaria sozinha, proferiu, aí sim, o brado:
“— Independência
ou morte!”
Ou seja: "- Minha mãe quer que eu continue em sua dependência e acha que eu vou deixar este paraíso para assumir o trono de Portugal, mas ela está enganada. Ou ela deixa-me neste país maravilhoso, com belas praias e belas moças, ou a morte de quem se interpuser em meu caminho e tentar me deportar. Minha pátria, agora, é aqui: Independência ou morte!".
Em seguida, teria composto para a amada uns versos em que lhe jurava fidelidade, o que não ocorreu porque aí a aventura romântica e a política já não podiam mais se misturar.
Ou seja: "- Minha mãe quer que eu continue em sua dependência e acha que eu vou deixar este paraíso para assumir o trono de Portugal, mas ela está enganada. Ou ela deixa-me neste país maravilhoso, com belas praias e belas moças, ou a morte de quem se interpuser em meu caminho e tentar me deportar. Minha pátria, agora, é aqui: Independência ou morte!".
Em seguida, teria composto para a amada uns versos em que lhe jurava fidelidade, o que não ocorreu porque aí a aventura romântica e a política já não podiam mais se misturar.
Mas isso são
histórias, como a de Lucrécia, em que a ficção e a realidade se confundem.
A preferência do
cronista pelo grito do Ipiranga é, pois, mais uma de suas ironias. Para tal,
trabalha com espaços e épocas distanciadas, além de narrativas controversas.