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quarta-feira, 26 de dezembro de 2012



Machado por ele mesmo (2)

         Nem sempre respondo por papéis velhos; mas aqui está um que parece autêntico; e, se o não é, vale pelo texto, que é substancial. É um pedaço do evangelho do Diabo, justamente um sermão da montanha, à maneira de S. Mateus. Não se apavorem as almas católicas. Já Santo Agostinho dizia que “a igreja do Diabo imita a igreja de Deus”. Daí a semelhança entre os dois evangelhos. Lá vai o do Diabo:
“1. E vendo o Diabo a grande multidão de povo, subiu a um monte, por nome Corcovado, e, depois de se ter sentado, vieram a ele os seus discípulos.
“2. E ele abrindo a boca, ensinou, dizendo as palavras seguintes:
“3. Bem-aventurados aqueles que embaçam, porque eles não serão embaçados.
“4. Bem-aventurados os afoitos, porque eles possuirão a terra.
“5. Bem-aventurados os limpos das algibeiras, porque eles andarão mais leves.
“6. Bem-aventurados os que nascem finos, porque eles morrerão grossos.
“7. Bem-aventurados sois, quando vos injuriarem e disserem todo o mal, por meu respeito.
“8. Folgai e exultai, porque o vosso galardão é copioso na terra.
“9. Vós sois o sal do money market. E se o sal perder a força, com que outra coisa se há de salgar?
“10. Vós sois a luz do mundo. Não se põe uma vela acesa debaixo de um chapéu, pois assim se perdem o chapéu e a vela.
“11. Não julgueis que vim destruir as obras imperfeitas, mas refazer as desfeitas.
“12. Não acrediteis em sociedades arrebentadas. Em verdade vos digo que todas se concertam, e se não for com remendo da mesma cor, será com remendo de outra cor.
“13. Ouvistes que foi dito aos homens: Amai-vos uns aos outros. Pois eu digo-vos: Comei-vos uns aos outros; melhor é comer que ser comido; o lombo alheio é muito mais nutritivo que o próprio.
“14. Também foi dito aos homens: não matareis a vosso irmão, nem a vosso inimigo, para que não sejais castigados. Eu digo-vos que não é preciso matar o vosso irmão para ganhardes o reino da terra; basta arrancar-lhe a última camisa.
“15. Assim, se estiveres fazendo as tuas contas, e te lembrar que teu irmão anda meio desconfiado de ti, interrompe as contas, sai de casa, vai ao encontro de teu irmão na rua, restitui-lhe a confiança, e tira-lhe o que ele ainda levar consigo.
“16. Igualmente ouvistes que foi dito aos homens: Não jurareis falso, mas cumpri ao Senhor os vossos juramentos.
“17. Eu, porém, vos digo que não jureis nunca a verdade, porque a verdade nua e crua, além de indecente, é dura de roer; mas jura e sempre e a propósito de tudo, porque os homens foram feitos para crer antes nos que juram falso, do que nos que não juram nada. Se disserdes que o sol acabou, todos acenderão velas.
“18. Não façais as vossas obras diante de pessoas que possam ir contá-lo à polícia.
“19. Quando, pois, quiserdes tapar um buraco, entendei-vos com algum sujeito hábil, que faça treze de cinco e cinco.
“20. Não queirais guardar para vós tesouros na terra, onde a ferrugem e a traça os consomem, e donde os ladrões os tiram e levam.
“21. Mas remetei os vossos tesouros para algum banco de Londres, onde nem a ferrugem, nem a traça os consomem, nem os ladrões os roubam, e onde ireis vê-los no dia do juízo.
“22. Não vos fieis uns nos outros. Em verdade vos digo, que cada um de vós é capaz de comer o seu vizinho, e boa cara não quer dizer bom negócio.
“23. Vendei gato por lebre, e concessões ordinárias por excelentes, a fim de que a terra se não despovoe das lebres, nem as más concessões pareçam nas vossas mãos.
“24. Não queirais julgar para que não sejais julgados; não examineis os papéis do próximo para que ele não examine os vossos, e não resulte irem os dois para a cadeia, quando é melhor não ir nenhum.
“25. Não tenhais medo às assembleias de acionistas, e afagai-as de preferência às simples comissões, porque as comissões amam a vanglória e as assembleias as palavras.
“26. As percentagens são as primeiras flores do capital; cortai-as logo para que as outras flores brotem mais viçosas e lindas.
“27. Não deis conta das contas passadas, porque passadas são as contadas, e perpétuas as contas que se não contam.
“28. Deixai falar os acionistas prognósticos; uma vez aliviados, assinam de boa vontade.
“29. Podeis excepcionalmente amar a um homem que vos arranjou um bom negócio; mas não até o ponto de o não deixar com as cartas na mão, se jogardes juntos.
“30. Todo aquele que ouve estas minhas palavras, e as observa, será comparado ao homem sábio, que edificou sobre a rocha e resistiu aos ventos; ao contrário do homem sem consideração, que edificou sobre a areia, e fica a ver navios...”
         Aqui acaba o manuscrito que me foi trazido pelo próprio Diabo, ou alguém por ele; mas eu creio que era o próprio. Alto, magro, barbícula ao queixo, ar de Mefistófeles. Fiz-lhe uma cruz com os dedos e ele sumiu-se. Apesar de tudo, não respondo pelo papel, nem pelas doutrinas nem pelos erros de cópia.
         Já agora parece que estou em dia de fantasmas. Mal pingava o ponto final do outro parágrafo, quando me apareceu um senhor, que me disse ser defunto e haver-se chamado Barão Luís.
         — Conheço muito, disse-lhe eu: tenho ouvido a sua célebre máxima: “Dai-me boa política e eu vos darei finanças”.
         — Ah! meu caro senhor, acudiu o barão; essa máxima tem-me tirado o sono da eternidade. Já não a posso ouvir, sem tédio. Quer ajudar-me a publicar uma troca de palavras que fiz, mudando o sentido, a ver se pegam na segunda forma e deixam-me em descanso a primeira?
         — Senhor barão...
         — Escute-me.
         — Em vez de: “dai-me boa política e eu vos darei boas finanças”, arranjei esta outra forma: “Dai-me boas finanças e eu vos darei boa política”. Promete-me?
         — Pois não!
         — Não esqueça: “Dai-me boas finanças e eu vos darei boa política”.
                                                                 (A semana - Gazeta de Notícias. 4 set. 1892.)


Análise (jlo)

         A crônica inicia-se por um pedaço de papel que, ao narrador, parece autêntico: um “pedaço do evangelho do Diabo”. É o “sermão da montanha”. Explica que Santo Agostinho se refere à imitação da igreja de Deus pela do Diabo. Temos aqui o simbolismo da representação do opositor à divindade, começando pela própria igreja que, no caso, é vista como símbolo do mal, em oposição à igreja, como símbolo da cristandade, que também é a "imagem do mundo" (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2006).
         O Diabo inicia seu sermão também de sobre um monte, o que sugere, ironicamente, para uma espacialidade vertical. Mas o monte não é o do Cristo, em sua espacialidade também vertical que sugere elevação da alma a Deus. É o Corcovado, que, aqui, simboliza o Rio de Janeiro e suas artimanhas sociopolíticas. O sermão do Diabo, ao contrário do de Jesus, sugere a elevação da alma àquele mesmo, com sua mensagem relacionada ao incentivo do mal. Os seus discípulos são os da pior espécie: são os que comem uns aos outros (vers. 13); os que fazem da trapaça seu modo de vida (vers. 15), os adeptos das obras condenáveis (vers. 18); aqueles que transferem seus tesouros para paraísos fiscais (vers. 20 e 21), ou seja, os políticos corruptos, em sua maioria. Despertam a desconfiança (vers. 22); vendem gato por lebre (comerciantes desonestos, profissionais tratantes); fazem do calote sua forma de se dar bem na vida (vers. 27; trapaceiam no jogo, enfim.
         Três gradientes da análise espacial de uma obra literária, segundo propõe Borges Filho (2007), estão presentes aqui: 1º - o da visão: o Diabo é visto sobre o monte Corcovado que, conforme dito acima, representa o Rio de Janeiro e todas as suas mazelas; 2º - o gradiente da audição: o Diabo fala aos seus discípulos do alto do Corcovado, e estes o ouvem atentamente, prontos para executar seus planos do mal; por fim, 3º - o gradiente da visão e do tato, quando o narrador cruza os dedos e o demo, ao ver o sinal da cruz, desaparece. Predominam os dois primeiros, ou seja a visão do Diabo e a sensação de audição de sua fala, que, no texto, se expressa pelos caracteres gráficos, explorando igualmente a visão.
         O espaço do texto merece também ser comentado. Quando surge um novo personagem, no final do relato, o narrador comenta sobre a frase do Barão Luís. Mas esse senhor é o próprio Barão defunto que, ao ser lembrado de sua frase proferida em vida, propõe o seguinte:
— Em vez de: “dai-me boa política e eu vos darei boas finanças”, arranjei esta outra forma: “Dai-me boas finanças e eu vos darei boa política”. Promete-me?
         — Pois não!
         — Não esqueça: “Dai-me boas finanças e eu vos darei boa política”.
         Ah, sim, está explicada a paródia. O sermão do Diabo nada mais é do que o do político espertalhão, que ludibria seu eleitor da cidade do Rio de Janeiro, pois o que lhe interessa não é o bem público e sim os “bens do público”.

 REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. 1. ed., 5. tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
 
BORGES FILHO, Ozíris. Espaço & literatura: introdução à topoanálise. Franca, SP: Ribeirão Gráfica e Editora, 2007. p. 68- 100.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 20. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.








 

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