Páginas

segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Machado por ele mesmo 3



            Machado por ele mesmo (3)


            Grito do Ipiranga? Isso era bom antes de um nobre amigo, que veio reclamar pela Gazeta de Notícias contra essa lenda de meio século.
            Segundo o ilustrado paulista, não houve nem grito nem Ipiranga.
            Houve algumas palavras, entre elas a Independência ou Morte, - as quais todas foram proferidas em lugar diferente das margens do Ipiranga.
            Pondera o meu amigo que não convém, a tão curta distância, desnaturar a verdade dos fatos.
            Ninguém ignora a que estado reduziram a história romana alguns autores alemães, cuja pena, semelhante a uma picareta, desbastou os inventos de dezoito séculos, não nos deixando mais que uma certa porção de sucessos exatos.
            Vá feito! O tempo decorrido era longo e a tradição estava arraigada como uma idéia fixa.
            Demais, que Numa Pompílio houvesse ou não existido é coisa que não altera sensivelmente a moderna civilização.
            Certamente é belo que Lucrécia haja dado um exemplo de castidade às senhoras de todos os tempos; mas se os escavadores modernos me provarem que Lucrécia é uma ficção e Tarquínio uma hipótese, nem por isso deixa de haver castidade... e pretendentes.
            Mas isso é história antiga.
            O caso do Ipiranga data de ontem. Durante cinquenta a quatro anos temos vindo a repetir uma coisa que o dito meu amigo declara não ter existido.
            Houve resolução do príncipe D. Pedro, independência e o mais; mas não foi positivamente um grito, nem ele se deu nas margens do célebre ribeiro.
            Lá se vão as páginas dos historiadores; e isso é o menos. Emendam-se as futuras edições. Mas os versos? Os versos emendam-se com muito menos facilidade.
            Minha opinião é que a lenda é melhor do que a história autêntica. A lenda resumia todo o fato da independência nacional, ao passo que a versão exata o reduz a uma coisa vaga e anônima. Tenha paciência o meu ilustrado amigo. Eu prefiro o grito do Ipiranga; é mais sumário, mais bonito e mais genérico.                                                                   
                                                                                                                  15 set. 1876.

            Análise (jlo)
           
            O espaço é o das margens do rio Ipiranga. O gradiente espacial utilizado pelo narrador é o da audição. Ouve-se o grito às margens do citado rio. Entretanto, diz o narrador que, para um seu amigo, esse grito não existiu no Ipiranga e, sim, em outro lugar.
            Então, o cronista lembra a história romana de Lucrécia, que, violentada sexualmente, cometeu o suicídio para resguardar sua honra. O espaço foi outro, o tempo também, é da história antiga. A data do grito do Ipiranga, diz o autor, é recente. Em sua época, distava de apenas 54 anos e, em todo esse tempo, sempre se repetiu que o fato ocorreu naquele local.
            Com base na informação do amigo paulista, teria havido a resolução de D. Pedro I em declarar a independência, mas não daquela forma, o que contrariava os historiadores.
            Por fim, propõe-se emendar as futuras edições da história. Fica, contudo, algo que não é fácil de se corrigir: os versos. Por que os versos? O que esse elemento tem a ver com a história?
            Nada, diria o apresentador da Globo, Tadeu Schimidt...
            Muita coisa, diríamos nós. As más línguas diziam que D. Pedro I era um conquistador (mas não necessariamente de um país...) incorrigível, que se dirigia à casa de sua amante, quando, surpreendido pela tropa brasileira, às margens do famoso rio, e perguntado se desejaria voltar a Portugal para assumir o trono vago, imediatamente rejeitou a proposta.
            Em outro local, porém, ou seja, na casa da amante, ao ser indagado por esta, ciente do fato, se a deixaria sozinha, proferiu, aí sim, o brado:
            “— Independência ou morte!” 
            Ou seja: "- Minha mãe quer que eu continue em sua dependência e acha que eu vou deixar este paraíso para assumir o trono de Portugal, mas ela está enganada. Ou ela deixa-me neste país maravilhoso, com belas praias e belas moças, ou a morte de quem se interpuser em meu caminho e tentar me deportar. Minha pátria, agora, é aqui: Independência ou morte!".
             Em seguida, teria composto para a amada uns versos em que lhe jurava fidelidade, o que não ocorreu porque aí a aventura romântica e a política já não podiam mais se misturar.
            Mas isso são histórias, como a de Lucrécia, em que a ficção e a realidade se confundem.
            A preferência do cronista pelo grito do Ipiranga é, pois, mais uma de suas ironias. Para tal, trabalha com espaços e épocas distanciadas, além de narrativas controversas.
 



Nenhum comentário:

Postar um comentário

  A Ética (Irmão Jó)   Data marcante da época É um dia dois de maio Quando o sábio e o papagaio Manifestam sua ética.   O sá...