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segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Machado por ele mesmo...

            Leitor amigo, agora vamos combinar uma coisa: eu posto minha crônica e meu secretário faz sua análise.  Em dia com o Machado continua, mas agora haverá, não uma, porém duas crônicas semanais 1) Machado por ele mesmo; e 2) Em dia com o Machado.

Vamos à primeira da nova série:

          Dizem os alemães que duas metades de cavalo não fazem um cavalo. Por maioria de razão se pode dizer que metade de um cavalo e metade de um camelo não fazem nem um cavalo nem um camelo. Isto, que parecerá axiomático aos leitores, é nada menos que um absurdo aos olhos dos partidos de uma das paróquias do Norte, a paróquia de São Vicente; um absurdo, um paradoxo, uma monstruosidade.
          Com efeito, os dois partidos daquela freguesia dividiram-se e trocaram as metades; feito o que, organizaram duas mesas, duas atas, duas eleições. Sendo por enquanto, mui sumária a notícia, ignoro o modo pelo qual as duas metades dos dois programas foram coladas às metades alheias, e mais ignoro se fizerem sentido os períodos truncados. Há de ter sido muito difícil: talvez se reproduza o caso das duas notícias que apareceram ligadas, há anos, numa folha de New York.                 
          Tratava-se da prédica de um sacerdote e da investida de um boi:
O Rev. Simpson falou piedosamente dos deveres do cristão e das boas práticas a que está sujeito o pai de família; o auditório ouvia comovido as palavras do Rev. Simpson, o qual, investindo de repente contra todos, varreu a rua, derrubou mulheres e crianças, lançou enfim o terror em todo o bairro, até ser fortemente agarrado e reconduzido ao matadouro.
       Verdade é que uma errata pode restituir o genuíno sentido dos dois programas, e estes aparecerão, reintegrados, na edição próxima. Se há uma arte para restaurar a primitiva escritura do palimpsesto, há outra para recompor devidamente os programas: questão de cola. O ponto mais obscuro deste negócio é a atitude moral dos dois novos partidos, a linguagem recíproca, as mútuas recriminações. Cada um deles vê no adversário metade de si próprio. O nariz de Aquiles campeia na cara de Heitor. Bruto é o próprio filho de César. Em vão busco adivinhar por que modo esses dois partidos singulares cruzaram armas no grande pleito; não encontro explicações satisfatórias. Nenhum deles podia acusar o outro de se haver ligado a adversários, porque esse mal ou essa virtude estava em ambos, não podia um duvidar da boa fé, da lealdade, da lisura do outro, porque o outro era ele mesmo, os seus homens, os seus meios, os seus fins. Nunca vi mais claramente reproduzida a situação de Ximena, quando o amante lhe mata o pai; o partido que vencesse podia clamar como a namorada de Cid:
La moitié de mon âme a mis l'autre au tombeau.
                                                                          1º set. 1878.

Análise (jlo)

            O cavalo, para a psicanálise, é o símbolo do psiquismo inconsciente, ou da alma não humana (CHEVALIER; GHEERBRANT, Dicionário de símbolos). Já o camelo simboliza a sobriedade e também o caráter difícil (idem). No entanto, quando se propõe dividir algo que pode parecer comum a todos, em política, o que se está tentando é ludibriar o povo, em vista de interesses escusos. Daí a revolta do boi, que simboliza a bondade e a calma do povo, vítima dos políticos inescrupulosos. Nem o boi, aclamado por seu trabalho pacífico de colaboração com o homem, suporta sua opressão, como se comprova nas arenas das touradas.
      
            Hasta la vista!




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