Em dia com o Machado 151 (jlo)
A
vida não está fácil, amiga leitora. O sapo barbudo e seus cúmplices foram
presos e estão sob estrita vigilância do serviço de informação do Exército.
Dizem que Vladimir Herzog acaba de se suicidar após o 31 de março de 1964...
51
anos depois...
Vamos
fazer uma regressão de memória a um ex-soldado e fazê-lo lembrar-se da primeira
entrevista que deu, em sua vida, sem ter a mínima noção do que estava
acontecendo no país.
O
ano é o de 1971...
— Soldado, qual é o seu nome, de onde você veio e o que faz aqui?
—
Meu nome de guerra é Etiel, venho do morro das quatro bicas, na Penha, Rio de
Janeiro, e não sei o que faço aqui...
—
Como não sabe? Então não lhe ensinaram as perguntas básicas que um soldado
encarregado de uma missão tem que ter na ponta da língua?
—
Ah, sim... Pra aonde vou?
—
Vai para o Batalhão da Polícia do Exército.
—
Por que vou?
—
Porque seu cinto está com a fivela suja e você tirou o boné quando passou pela
equipe da Polícia do Exército (PE) encarregada de fazer a guarda nas ruas de
seu bairro.
—
Limpei meu cinto com Kaol, antes de sair de casa, e foi você quem retirou meu
boné ao me abordar.
—
O quê? Soldado, sentido! Está me chamando de mentiroso? Mais uma falta grave. E
dobre a língua; como meu subordinado, deve chamar-me sempre de senhor. Senhor
cabo Massinissa. Mas continue...
—
Quando vou, Sr. cabo Massinissa?
—
Agora mesmo.
—
Como vou?
—
Vai sentado ali, no camburão da gloriosa PE, junto com outros vinte soldados da
Pátria.
Assim
foi um dos primeiros dias em que Job Etiel saía de casa fardado para dirigir-se
ao quartel em que incorporara, em São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Transportado com seus vizinhos para o
Batalhão da Polícia do Exército (BPE) por esse pelotão militar, desde que fora
abordado pelo cabo que comandava o pelotão, observou, ali, que seus 1,77m de
altura eram nada ante aqueles guardiães da ordem e da disciplina de 1,90m, no
mínimo.
Dias
antes, fora alertado pelo tenente Raminho, também de quase dois metros e
catarinense, subcomandante de sua unidade militar, para não reagir às
abordagens dos soldados da PE, pois estes eram recrutados entre os brasileiros
mais altos e fortes, além de serem treinados nas lutas marciais, etc. etc.
No
pátio do Batalhão, Etiel fora mandado ficar na posição de sentido e em forma
com outras dezenas de cidadãos que foram obrigados a servir à Pátria. Ao ser
lida uma relação com os nomes de cada um deles, tinham de gritar, bem alto, seu
nome de guerra.
Horas
depois seriam levados ao seu quartel de origem, onde deveriam aguardar,
trabalhando, as informações sobre seu “comportamento sujo e desrespeitoso”.
Tudo
isso lhe acontecia sem que Etiel tivesse a mínima noção do porquê estar sendo
humilhado e punido. Inflado de orgulho por ter sido preso sem ter feito nada
que justificasse isso, mas também por seu “batismo de fogo”, o jovem soldado se
lembrava de como fora recrutado...
Ao
se alistar, dissera ao oficial encarregado que era órfão de pai, tinha sete irmãos menores, precisava ajudar sua mãe financeiramente, pois esta não recebia
pensão alimentícia e era muito pobre. Ela precisava cuidar da casa, costurar a
troco de míseros trocados e alimentar seus sete filhos. Etiel era seu arrimo. Além
disso, disse-lhe timidamente Etiel que tinha uns pequenos problemas de
audição...
Em
resposta, o oficial carrancudo informou-lhe que somente com atestado de pobreza
e laudo médico poderia dispensá-lo do Serviço Militar.
Nesse
momento, o jovem refletiu nas vantagens de ter um salário mínimo e uma carreira
promissora no Exército para ajudar financeiramente sua família e desistiu de
pedir dispensa do serviço militar. Muitos dos que estavam em sua situação
bendiziam, também, a oportunidade...
No
quartel, Etiel era estafeta e, certo dia, deixou de entregar ao destinatário um
documento cujo prazo se encerraria dias depois. Outro soldado o substituíra,
pois o sargento chefe da seção de Etiel mandou este apresentar-se ao rancho, para
lavar panelas, ajudar o cozinheiro, arrumar o cassino dos sargentos, servir as refeições etc. etc.
etc.
Desse
modo, o jovem terminava o dia exausto, mas feliz por ver o tempo passar rápido e receber seu salário mínimo, que ele repassava à sua valorosa e querida mãezinha todo o fim de mês.
Tempo
bom era aquele, deixou saudades... Quer ver? Continue lendo...
Um
dia, o tenente Raminho mandou o nosso soldado comparecer ao seu Posto de
Comando (PC). E o saldo da conversa foi que, após breve interrogatório sobre o
tal documento que acabara por não ser entregue, resolveu puni-lo com uma semana
de detenção no quartel.
A
conclusão do oficial fora curiosa: ele e o sargento também eram culpados pelo
atraso na entrega documental, pois não deram a Etiel o tempo necessário e nem a autorização para informar ao novo estafeta a situação dos documentos; mas a
falta de Etiel, a seu ver, não se justificava, ainda que o jovem cometesse
outra, se abandonasse os trabalhos do rancho sem autorização...
Faltara-lhe
iniciativa e por isso seu soldado deveria ser punido. Não o outro, Etiel.
—
Mas não se preocupe, concluiu bondosamente o ten. Raminho, essa punição não vai
constar em seus assentamentos militares...
—
É justo, respondeu-lhe o soldado Etiel. E, prestando-lhe continência, solicitou
permissão para retirar-se altivo e quase feliz por tão grande lição de moral recebida naquele dia.
Naquela
semana, Etiel faria aniversário no quartel sem que ninguém, nem mesmo ele, se
lembrasse disso, a não ser na hora de responder ao pernoite num desses dias de
detenção... Ao ouvir a data do boletim do dia, quase chorou, mas continuou
calado...
Nos
demais dias, antes de entrar em forma para o pernoite, às 22h, um ten. chamado
Matusalém, que estava sempre de plantão, como oficial do dia, ficava até altas
horas jogando damas com Etiel. Uma
noite, o jogo estava tão disputado entre ambos que o soldado lhe disse:
—
Chefe, passamos da hora do pernoite...
Ao
que este, bonachão, lhe respondeu:
—
Deixa pra lá, Etiel, o sargento da guarda me substitui e eu justifico sua falta...
Vamos continuar o jogo, pois aqui está mais quente que lá fora... (Jogavam na
cozinha e o pernoite era no frio pátio do quartel em época de inverno).
E
foi assim que tudo começou...
Vinte
e dois anos depois, sem ter feito nenhum curso militar que lhe aproveitasse os
conhecimentos na vida militar e civil, profissionalmente, Etiel deu baixa do Exército...
Trouxe
de lá, entretanto, boas recordações e bons amigos, mas suas melhores lembranças
são as de que a disciplina, a honestidade, a verdade e a honra são valores
inegociáveis.
Outra
coisa importante é que Etiel não somente foi identificado, no Exército, como também ali foi imunizado com as vacinas antiamarílica, antitetânica e
antitifoide...
Já
este governo civil de agora, não brinca com ele, senão ele...