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quarta-feira, 16 de janeiro de 2013


            Machado por ele mesmo (4) – Balas de estalo - 30 novembro 1865.


         Achei agora mesmo na rua um pedacinho de jornal, coisa de três dedos de altura e pouco mais de largura. A minha regra, em tais casos, é deixar o papel onde está: é a do meu vizinho, e provavelmente a do gênero humano. Mas, não sei por que, deu-me cócegas de apanhar este; lembrei-me de certa máxima que ouvi proferir em um drama, que aqui se representou há muitos anos, quando as galinhas ainda tinham dentes: "não se deve deixar rolar papel nenhum''. E vai então inclinei-me, apanhei-o e li este anúncio:

Contratam-se coristas de ambos os sexos no Teatro Politeama; preferem-se moços que saibam música.

       Antes de mais nada, agradeci à Providência Divina este imenso favor de haver-me deparado alguma coisa que, exprimindo um resto de superstição antiga, dá-me ocasião de pedir a meus contemporâneos que hasteemos audazmente a bandeira da liberdade.

       A razão da superstição é clara. Sociedades políticas que ainda tresandam à Idade Média, em que tudo se dividia em classes, não podem conceber que a liberdade das funções seja um corolário da liberdade das opiniões. Daí a exigência, ainda vulgar, de que os melhores sapatos são os dos sapateiros: erro funesto e odioso, direi até ridículo, que é preciso acabar de uma vez para sempre.

         Quando, por exemplo, certa folha dizia há alguns dias que convinha pôr de lado os políticos de profissão, e votar nos que o não eram, essa folha escrevia uma grande verdade, daquelas que devemos trazer gravadas na alma em letras perpétuas. E não digo isto, nem o disse ela, porque os políticos de profissão não possam exercê-la algumas vezes com vantagem, como Bismark, Pitt, Richelieu e alguns outros; mas porque o monopólio, sendo inimigo nato da liberdade (segundo elegantemente afirma o brigadeiro Calino), faz perdurar o vício medieval que apontei, e impede que outros cidadãos levem ao governo do Estado uma parte das qualidades que lhes são próprias. Além disso, restringindo Bismark à política, impede talvez que haja neste mundo mais um bom escrivão de órfãos e ausentes. O mesmo direi do Sr. Maia.

         Nada de ódios às preferências. Por causa delas, vimos o que aconteceu no matadouro. Mandemos governar o Estado pessoas que não entendam de política; encomendemos as calças aos ourives, e os relógios aos boticários. Só assim chegaremos à perfeita liberdade universal. Tudo que não for isto, é voltar ao regímen das corporações de ofícios; é fazer da sociedade um vasto tabuleiro de xadrez, ou ainda pior; pois neste jogo, se o tabuleiro se divide em quadrados, é certo que as peças vão de um a outro. Na sociedade, como a criaram, as peças têm de ficar onde estão, bispo é bispo, cavalo é cavalo.

         Não, ilustres contemporâneos meus; é evidente que este regímen já deu o seu cacho. A sociedade não pode ser isto. A própria História oferece exemplos salutares. Camões, que se gaba de ter tido em uma das mãos a pena, e na outra a espada, esqueceu dizer se era ele próprio que consertava os seus calções rotos, mas provavelmente era, e ninguém lhe levou a mal. De São Paulo, sabe-se que ora apostolava, ora trabalhava de correeiro, e não lhe saíam mal feitas, nem as correias, nem as epístolas. Reduzamos esses casos raros a um princípio fixo e eterno; tudo para todos; não se preferem moços que saibam música.

            Análise topológica (jlo)

             Como se vê, tudo começa com um simples pedaço de papel, que simboliza a escrita. Nesse sentido, a imaginação do escritor é fértil. Em seguida, faz uma breve descrição do papel achado: “coisa de três dedos de altura e pouco mais de largura”, o que significa que, na horizontalidade, as notícias seriam mais relevantes do que na verticalidade, embora, sendo um pedaço de papel, ambas as dimensões pouco diferenciavam. Sua regra é deixar o papel onde está, e esta regra é a do papel desempenhado pelo gênero humano, ou seja, deixar tudo como está e privilegiar mais a vida na Terra (horizontalidade) que a vida espiritual (verticalidade).

            O papel trazia um anúncio sobre a contratação de coristas de ambos os sexos, com preferência para moços que soubessem música. Quem contrataria seria o Teatro Politeama. Daí, surgem os comentários irônicos do cronista de que seria bobagem julgar que os melhores sapatos são feitos pelo sapateiro e de que os melhores políticos são os de carreira. Então critica o monopólio, inimigo da liberdade, ainda que tenha citado grandes políticos europeus de destaque, como Bismark e Richelieu. “Mandemos governar o Estado pessoas que não entendam de política; encomendemos as calças aos ourives, e os relógios aos boticários. Só assim chegaremos à perfeita liberdade universal”.

            Para finalizar, contesta as peças da sociedade, comparando-as com as do jogo de xadrez, no qual bispo é bispo, cavalo é cavalo. Cita então Camões, que acredita ter feito mais do que ser poeta, mas provavelmente pregava os próprios botões e S. Paulo, que ora pregava o Evangelho, ora trabalhava no ofício de fabricação de correias, o que não lhe saía mal. Então, conclui que, com base nesse princípio, não se deve preferir moços que saibam música.

            O sarcasmo é evidente. O cronista critica o critério óbvio do Teatro Politeama de contratar moços que saibam música. Fica claro que, para ser bom músico, como para ser bom escritor, orador ou bom político, o dom principal de cada um é o de sobressair-se no que faz. Então, analisando-se os aspectos espaciais desta crônica, observamos o trabalho com os gradientes da visão (escrita, produção artesanal), do tato (fabricação de correias e de sapatos) e da audição (discursos políticos e música). Cada um com sua função específica, mas dando-se “a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”, como propôs Jesus (Marcos: 12, 17).
              Por fim, é interessante observar o espaço do papel em analogia com o papel a ser exigido pelo corista de ambos os sexos, mas com preferência para moços. A máxima lembrada pelo narrador é a de que "não se deve deixar rolar papel nenhum". E, nesse sentido, ele enriqueceu a crônica com todo o tipo de papel ao falar do sapateiro, do ourives, do cantor, do político e do apóstolo. Todos têm seu papel, mas a máxima do cronista é que todos devem ter as mesmas oportunidades, além de que ninguém deve se prender a um único papel.

Referências

ALMEIDA, João Ferreira. A Bíblia Sagrada. Evangelho de Marcos. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969.

 CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.

 BORGES FILHO, Ozíris. Espaço & literatura: introdução à topoanálise. Franca, SP: Ribeirão Gráfica e Editora, 2007.

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