Machado por ele mesmo
(4) – Balas de estalo - 30 novembro 1865.
Achei agora mesmo na rua um pedacinho de jornal, coisa de
três dedos de altura e pouco mais de largura. A minha regra, em tais
casos, é deixar o papel onde está: é a do meu vizinho, e provavelmente a do
gênero humano. Mas, não sei por que, deu-me cócegas de apanhar este; lembrei-me
de certa máxima que ouvi proferir em um drama, que aqui se representou
há muitos anos, quando as galinhas ainda tinham dentes: "não se deve
deixar rolar papel nenhum''. E vai então inclinei-me, apanhei-o e li este
anúncio:
Contratam-se
coristas de ambos os sexos no Teatro Politeama; preferem-se moços que saibam
música.
Antes
de mais nada, agradeci à Providência Divina este imenso favor de haver-me
deparado alguma coisa que, exprimindo um resto de superstição antiga, dá-me
ocasião de pedir a meus contemporâneos que hasteemos audazmente a
bandeira da liberdade.
A
razão da superstição é clara. Sociedades políticas que ainda tresandam à Idade
Média, em que tudo se dividia em classes, não podem conceber que a liberdade
das funções seja um corolário da liberdade das opiniões. Daí a exigência, ainda
vulgar, de que os melhores sapatos são os dos sapateiros: erro funesto e
odioso, direi até ridículo, que é preciso acabar de uma vez para sempre.
Quando, por exemplo, certa folha dizia há alguns dias que
convinha pôr de lado os políticos de profissão, e votar nos que o não eram,
essa folha escrevia uma grande verdade, daquelas que devemos trazer gravadas na
alma em letras perpétuas. E não digo isto, nem o disse ela, porque os políticos
de profissão não possam exercê-la algumas vezes com vantagem, como Bismark,
Pitt, Richelieu e alguns outros; mas porque o monopólio, sendo inimigo nato da
liberdade (segundo elegantemente afirma o brigadeiro Calino), faz perdurar o
vício medieval que apontei, e impede que outros cidadãos levem ao governo do
Estado uma parte das qualidades que lhes são próprias. Além disso, restringindo
Bismark à política, impede talvez que haja neste mundo mais um bom escrivão de
órfãos e ausentes. O mesmo direi do Sr. Maia.
Nada de ódios às preferências. Por causa delas, vimos o que
aconteceu no matadouro. Mandemos governar o Estado pessoas que não entendam de
política; encomendemos as calças aos ourives, e os relógios aos boticários. Só
assim chegaremos à perfeita liberdade universal. Tudo que não for isto, é
voltar ao regímen das corporações de ofícios; é fazer da sociedade um vasto
tabuleiro de xadrez, ou ainda pior; pois neste jogo, se o tabuleiro se divide
em quadrados, é certo que as peças vão de um a outro. Na sociedade, como a
criaram, as peças têm de ficar onde estão, bispo é bispo, cavalo é cavalo.
Não, ilustres contemporâneos meus; é evidente que este
regímen já deu o seu cacho. A sociedade não pode ser isto. A própria História
oferece exemplos salutares. Camões, que se gaba de ter tido em uma das mãos a
pena, e na outra a espada, esqueceu dizer se era ele próprio que consertava os
seus calções rotos, mas provavelmente era, e ninguém lhe levou a mal. De São
Paulo, sabe-se que ora apostolava, ora trabalhava de correeiro, e não lhe saíam
mal feitas, nem as correias, nem as epístolas. Reduzamos esses casos raros a um
princípio fixo e eterno; tudo para todos; não se preferem moços que saibam música.
O papel trazia um anúncio sobre a
contratação de coristas de ambos os sexos, com preferência para moços que
soubessem música. Quem contrataria seria o Teatro Politeama. Daí, surgem os
comentários irônicos do cronista de que seria bobagem julgar que os melhores
sapatos são feitos pelo sapateiro e de que os melhores políticos são os de
carreira. Então critica o monopólio, inimigo da liberdade, ainda que tenha
citado grandes políticos europeus de destaque, como Bismark e Richelieu. “Mandemos
governar o Estado pessoas que não entendam de política; encomendemos as calças
aos ourives, e os relógios aos boticários. Só assim chegaremos à perfeita liberdade
universal”.
Para finalizar, contesta as peças da
sociedade, comparando-as com as do jogo de xadrez, no qual bispo é bispo,
cavalo é cavalo. Cita então Camões, que acredita ter feito mais do que ser
poeta, mas provavelmente pregava os próprios botões e S. Paulo, que ora pregava
o Evangelho, ora trabalhava no ofício de fabricação de correias, o que não lhe
saía mal. Então, conclui que, com base nesse princípio, não se deve preferir
moços que saibam música.
O sarcasmo é evidente. O cronista
critica o critério óbvio do Teatro Politeama de contratar moços que saibam
música. Fica claro que, para ser bom músico, como para ser bom escritor, orador
ou bom político, o dom principal de cada um é o de sobressair-se no que faz.
Então, analisando-se os aspectos espaciais desta crônica, observamos o trabalho
com os gradientes da visão (escrita,
produção artesanal), do tato (fabricação de correias e de sapatos) e da audição
(discursos políticos e música). Cada um com sua função específica, mas dando-se
“a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”, como propôs Jesus (Marcos:
12, 17).
Por fim, é interessante observar o espaço do papel em analogia com o papel a ser exigido pelo corista de ambos os sexos, mas com preferência para moços. A máxima lembrada pelo narrador é a de que "não se deve deixar rolar papel nenhum". E, nesse sentido, ele enriqueceu a crônica com todo o tipo de papel ao falar do sapateiro, do ourives, do cantor, do político e do apóstolo. Todos têm seu papel, mas a máxima do cronista é que todos devem ter as mesmas oportunidades, além de que ninguém deve se prender a um único papel.
Referências
ALMEIDA,
João Ferreira. A Bíblia Sagrada. Evangelho
de Marcos. Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969.
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