Páginas

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

 

ANÁLISE COMPARATIVA ESPÍRITA DE SONETOS DE CRUZ E SOUSA – 9

 


Segundo Caldeira (2020, it. 6.3), há 1.500 a.C, ou seja, 3.520 anos atrás, foram publicados livros com a "experiência sensorial do sagrado", na Índia, conhecidos como Os Vedas. Os livros que compõe essa obra são quatro: 1º) Rigveda, com 1028 hinos, é o mais antigo. Compõe-se de hinos ou louvações; 2º) Yajurveda: obra com fórmulas para serem lidas durante os sacrifícios à divindade; 3º) Samaveda: de contos litúrgicos e rituais compõe-se esta obra; e 4º) Atharvaveda: livro sobre magias e encantamentos destinados a curas, longevidade etc.

São livros elaborados em forma de poesia. Neles, verificamos que a poética foi uma das primeiras artes na busca de comunicação entre a humanidade e Deus. Na manifestação lírica, observamos o culto do belo, do som, no anseio de perfeição e, por consequência, de integração com o Eterno, como consolo às dores mundanas e esperança de sobrevivência num mundo metafísico, bem melhor, como vemos nos sonetos simbolistas de Cruz e Sousa, como este:  

 

Clamor supremo

 

Vem comigo por estas cordilheiras!

Põe teu manto e bordão e vem comigo,

Atravessa as montanhas sobranceiras

E nada temas do mortal Perigo!

Sigamos para as guerras condoreiras!

Vem, resoluto, que eu irei contigo.

Dentre as Águias e as chamas feiticeiras,

Só tenho a Natureza por abrigo.

Rasga florestas, bebe o sangue todo

Da Terra e transfigura em astros lodo,

O próprio lodo torna mais fecundo.

Basta trazer um coração perfeito,

Alma de eleito, Sentimento eleito

Para abalar de lado a lado o mundo!

 

 

Cruz e Sousa parece estar plenamente integrado ao sagrado neste poema. Para alcançar a ventura celeste, é preciso lutar contra os inimigos que se ocultam na Natureza, purificar-se e, desse modo, tornar-se eleito. É preciso coragem, nessa empreitada, mas o convidado não seguirá só. Terá a companhia do poeta, nessa viagem por entre "Águias" e "chamas feiticeiras".

Porém, como condores, aves imensas que voam alto, ambos vencerão essa luta do bem contra o mal, este representado pelas águias devoradoras, que são as inteligências perversas, e seu fogo enfeitiçador. Para tanto, há uma condição: é preciso ter o "coração perfeito dos eleitos". Esses são os que já estão na condição de trabalho interior que, pela sua vitória no combate às mazelas físicas, sorveram o sangue terreno e se uniram aos que se doam por uma causa nobre. A transformação do lodo em astros é a superação da matéria pela iluminação do espírito. Eleito só será o ser que souber vencer, com o poeta, essa "guerra". Somente assim, o mundo será abalado, ou seja, pelo incentivo à luta contra tudo e contra todos os seres da Natureza material.

 

Da vida espiritual, o poeta confirma a excelência de seu clamor com o convite intitulado

 

Segue e confia

 

Vive na eterna luz que aperfeiçoa

A compreensão da vida clara e imensa.

Servindo ao mundo, alheio a recompensa,

Cultivando a humildade terna e boa.

 

Seja a esperança a lúcida coroa

Com que brilhes na sombra fria e densa

Da noite da maldade e da descrença

Que perturba, destrói e amaldiçoa.

 

Sob as desilusões, penas e assombros,

Não sepultes teus sonhos nos escombros

Do amargo desalento que te invade!

 

Rota a veste de carne que redime,

Encontrarás a luz pura e sublime

No divino país da Eternidade.

 

 

Aos que estranham a preferência do Espírito liberto da matéria no enfoque temático, agora voltado para a essência espiritual, e não mais para a luta contra as misérias da matéria, cito para reflexão uma questão d'O livro dos espíritos e sua resposta abaixo:

 

— As ideias dos Espíritos se modificam no estado errante?

— Muito, sofrem grandes modificações, à medida que o Espírito se desmaterializa. Às vezes, ele pode permanecer muito tempo com as mesmas ideias, mas, pouco a pouco, a influência da matéria diminui e o Espírito vê as coisas mais claramente. É então que procura os meios de se tornar melhor. (KARDEC, 2017, questão 318)

 

Em relação a Cruz e Sousa, quase nada se modificou nos planos físico e espiritual. Já desde encarnado, o poeta se espiritualizara. Apenas o enfoque, que antes estivera mais centrado nas lutas contra o preconceito racial e as dores causadas pela rejeição da sociedade, a sede, mesmo, de reconhecimento transcendente à mera questão étnica, agora se volta para as compensações reservadas a quem tem fé e esperança. O poeta, do além, promete a quem "segue e confia" um mundo onde são compensados todos os sofrimentos e todas as humilhações, por nivelar os Espíritos consoante sua elevação moral e espiritual e não mais pelas aquisições da matéria e poder temporário.

 

Referências

CALDEIRA, Wesley. Deus: antes e depois de Jesus. Brasília: FEB, 2020 (no prelo), item 6.3 Os Vedas: o fôlego do eterno.

KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. 4. ed. 4. imp. Brasília: FEB, 2017. Livro seg, cap. 6, p. 181.

SOUSA, Cruz e. Cruz e Sousa: poesia. Por Tasso da Silveira. 6. ed. Rio de Janeiro: Agir (Nossos clássicos; 4), 1982, p. 88.

SOUSA, Cruz e. (Espírito). In: ESPÍRITOS Diversos. Relicário de luz. Psicografado por Francisco Cândido Xavier. 7. ed. 2. imp. Brasília: FEB, 2014, p. 53.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

  Propriedade Intelectual (Irmão Jó) Houve época em que produzir Obra de arte legal Era incerto garantir Direito intelectual.   Mas com tant...