Em
dia com o Machado 160 (jlo)
(Outro
caso da vara)[1]
“De todas as
coisas humanas, a única que tem o fim em si mesma é a arte.” Machado de Assis.
Estive
ontem em Jardim Novo Mundo, Goiás, presente ao velório de Lara.
À
tarde, antes de seu sepultamento, faziam-se presentes dezenas de pessoas e
alguns pastores, que proferiram belo e tocante discurso sobre a vida da “morta”.
Fiquei ali a observar as manifestações pesarosas sobre ela, cujo espírito
repousa na casa de Abraão, na cidade dos pés juntos.
Há
uma frase, de autor desconhecido, que diz assim: “A vida é como um livro.
Alguns capítulos são curtos, outros tristes. Mas se não virarmos sua página
nunca vamos saber o que o próximo capítulo guarda”. Na vida da velada Lara,
ocorreu de tudo: o filho primogênito morreu ao nascer, disse-lhe o obstetra,
quando tentou retirar-lhe, a fórceps, a criança do ventre; mas ela ouvira
perfeitamente o barulho de um osso vertebral do bebê partindo ao ser forçado
pelo fórceps imperito. Capítulo abortado, portanto. Outro filho, ao descer uma
rua de bicicleta, após se desviar de um ônibus que invadiu sua pista, foi de
encontro a um poste, bateu com a cabeça nele e morreu aos vinte e poucos anos.
Capítulo curto. A filha Adélia casou-se, teve também uma filha no primeiro ano
de consórcio e, ano depois, ao tentar parir outro bebê, morreu com este na
maternidade. Lara, então, viu-se obrigada a criar, junto com os três filhos
restantes, a neta abandonada à própria sorte pelo genro. Capítulos tristes...
Agora,
Lara virou esta página de sua vida e foi recebida por ninguém menos do que o
Senhor, que lhe recomendou descansar um pouco, antes de se deslumbrar com as
belezas do céu. Em sua homenagem, adapto velha frase: “Para as rosas, o
jardineiro é o Eterno”.
Um
amiguinho da casa, percebeu espantado minha presença contrita no local do
velório e saiu anunciando-me a todos em altos brados, sem que ninguém
entendesse nada. Era Boy Friend, que
me fez rir à socapa.
Em
seguida, ouvi de outrem o relato sobre o exemplo de vida de um dos nove irmãos,
sobrinho da falecida, chamado José. Ainda bebê, José fora morar longe dos pais
e criado pelos avós. Cresceu, tornou-se gerente de uma grande firma, casou-se
bem, foi pai de três filhos, mas jamais desprezou a família de sua mãe, cunhada
da falecida, à qual sempre que pode visita, embora morando em outro estado.
Mais
adiante, ouvi nova história. Dos três filhos restantes de Lara, o líder é o primogênito Charles. Seu relato foi
comovente. Quando completara dezesseis anos de idade, seu pai empregou-o no bar
de um seu compadre, que pagava ao rapaz dois salários mínimos para administrar
seu boteco e atender aos clientes, de segunda a sábado, das oito às 21h. Do
outro lado da rua, funcionava um escritório de contabilidade, e seu proprietário
era cliente assíduo do bar administrado por Charles.
Certo
dia, esse cliente, percebendo a inteligência do rapaz, propôs-lhe ir trabalhar
com ele pela metade do salário que Charles recebia no bar. Sem pensar duas
vezes, o jovem aceitou a proposta.
Ao
chegar a casa, pedira conselhos à mãe, agora cadaverizada, que, na época, lhe
dissera para fazer o que julgasse melhor para seu futuro.
Mais
tarde, ao tomar conhecimento da decisão do filho em trocar de emprego, o pai
ameaçou-o com uma surra de vara, caso ele deixasse o trabalho no bar do seu
compadre.
Charles
não se intimidou... no dia seguinte, disse ao pai que já não mais trabalhava no
bar e acabara de ser contratado como auxiliar de contabilidade no escritório do
seu novo patrão.
O
pai não pensou duas vezes, pegou uma vara de marmelo e aplicou-lhe uma surra
homérica. O adolescente aguentou firme a coça e prometeu-se provar ao pai, no
futuro, o erro que este cometera.
Dito
e feito, dez anos após esse acontecimento, Charles já era o mais destacado
contador da cidade. Atualmente, é representante da Associação de Contabilidade do Estado,
presidente do sindicato de contabilidade de sua cidade e chefe de onze
funcionários. O melhor deles é seu filho Raul. O outro filho, Rúben, com suas
bênçãos, conclui, atualmente, o curso de engenharia elétrica e já foi
contratado por uma grande firma particular, que presta serviços para a cidade.
Ao
longo desses anos, Charles tornou-se, também, admirado benfeitor de sua
família, a quem jamais deixou de apoiar socioeconomicamente.
Pois
bem, dias antes da passagem de Lara para o lado de cá, Jacó chamou o filho a um
canto de um quarto da casa e, aos prantos, pediu-lhe perdão pela surra que lhe
dera 21 anos atrás.
Como
demonstração de sua grande alma, o rapaz abraçou seu pai e disse-lhe que não
somente o perdoava, como também lhe agradecia, pois fora a surra tomada que o
ensinara a enfrentar com galhardia outras “surras” da vida, a tudo vencer e
realizar seu grande sonho de não somente ajudar sua família como também
proporcionar uma vida melhor a outras pessoas.
Certa
vez, recomendei: “Não levante a espada sobre a cabeça de quem lhe pedir
perdão”. Charles fez melhor, reconheceu a importância do ato irrefletido do pai em
sua vida e, não somente o perdoou pela surra de vara, mas o auxilia, até hoje,
sem jamais deixar de honrá-lo, como recomenda o Senhor.
Aproveito
para prometer a Boy Friend que, em
minha próxima visita a sua casa, trarei Miss
Dólar para lhe fazer coro aos latidos caninos.
Ouvindo
esta história, um verme gaiato e irônico apressou-se a dizer-me:
—
E eis que o viajante já não está mais imóvel.
[1] O caso da vara é um dos mais famosos
contos machadianos, publicado na Gazeta
de notícias, em 1891, e republicado no livro Páginas recolhidas.
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