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quarta-feira, 16 de outubro de 2013



Em dia com o Machado 71 (jlo)

A PEC das empregadas e a Lei Áurea

Amiga leitora, você deve lembrar-se da crônica que escrevi sobre meu escravo Pancrácio, alforriado dias antes da abolição da escravidão no Brasil, certo?
Afinal, não tem muito tempo; foi em 19 de maio de 1888, ou seja, seis dias após a chamada Lei Áurea, assinada pela bondosa princesa Isabel, que falei sobre o caso.
Na época, reconheci os direitos dos negros bem antes dos abolicionistas. Tanto foi assim que, sem saber que a ilustre regente iria libertá-los, não somente decretei livre meu fiel e velho Pancrácio, de dezoito anos de idade, como também lhe instituí um salário. Ínfimo, é bem certo, mas não se deve desestimular a ambição de evoluir, gradativamente, na profissão, um bom empregado. 
Por isso, expliquei-lhe que, com o tempo e seu exemplar esforço profissional, Pancrácio teria sua remuneração majorada. Quem sabe, uns dois por cento ao ano, o que lhe daria, em dez anos, vinte por cento de aumento, ou, talvez, dez... Quem pode prever os rumos da economia em nosso país? 
Então, falei-lhe: “— Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que...”.
Pancrácio tudo ouviu em silêncio e, humilde e agradecidamente, prostrou-se a meus pés em reconhecida reverência à minha extrema bondade, ao tempo que me dizia: “— Oh! meu sinhô! fico”.
Arrematei, então, minha generosa proposta, com base na remuneração da época, conforme lhes disse acima; aquele era um tempo em que nem existia a regulamentação do salário mínimo:
"— Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho deste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos..."
"— Artura num qué dizê nada, não sinhô..."
"— Pequeno ordenado, repito [...], mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha. [...] 
Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.
Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí para cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamo filho do diabo; cousas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre".
Em seus dias, amiga leitora, um outro tipo de Pancrácio existe, no Brasil; ou melhor, em geral, uma Pancrácia: é a trabalhadora doméstica, que muitos gostam de tratar como secretária do lar e outros eufemismos, na tentativa de dignificar sua profissão. Mas... 
Durante muito tempo, a lei olvidou o trabalhador doméstico. Os direitos assegurados pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) aos demais trabalhadores eram omitidos aos servidores domésticos, que não tinham direito a férias, horas extras, assistência à saúde e fundo de garantia. 
No atual Governo, porém, isso está sendo corrigido com a aprovação da chamada PEC d@s empregad@s doméstic@s, que ainda carece de regulamentação; mas a promessa é de que, até o fim deste ano (2013), todos os seus benefícios, deveres e obrigações serão regulamentados.
Um nosso amigo, chamado pelo estranho nome de Odacham, teve a mesma ideia que eu tive em 1888: chamou sua empregada Benedita, de 64 anos, antes mesmo que todos os artigos da PEC sejam viabilizados na prática e propôs-lhe:
— Minha querida Benê — modo carinhoso pelo qual a tratava na intimidade —, a partir de hoje, sua carteira de trabalho está assinada e aqui está um contrato com todos os direitos que lhe cabem: 13º salário, férias remuneradas, horas extras, etc., etc. etc. 
O salário é o mínimo, mas, com o tempo e sua dedicação, você terá um por cento de aumento anual. Para comemorar, convidei vinte e uma pessoas amigas para jantar conosco. Com sua dedicação, nem é preciso pedir-lhe para manter nossa mansão um brinco, não é mesmo? Afinal, são somente quinhentos metros quadrados de puro apuro dos seus relevantes serviços... Capricha na comida!
E tem mais, de ora em diante, você será chamada secretária... do lar, é bem verdade, mas secretária é secretária, não é mesmo?
— Mas patrão — respondeu-lhe, altiva, Benedita, senhora de 1,40m, que pesava uns trinta quilos — precisava despedir a copeira, o jardineiro e a cozinheira?
— Minha cara, você é como aquele sabonete da marca “vale quanto pesa”. Sua competência é tão alta que seus serviços valem por quatro. Mas não se preocupe, suas horas extras serão pagas em dia e, se desejar negociar as férias, você as receberá em dobro. 
— E se eu adoecer? 
— Ora, Benedita, para que servem as diaristas?


Um comentário:

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