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sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Em dia com o Machado 70 (jlo)

            Vejam vocês, meus amigos, como as coisas mudam em pouco mais de um século. Em 16 de outubro de 1892, há, portanto, 111 anos, a invenção do bonde elétrico foi o acontecimento daquele século, pois se previa para breve a dispensa dos burros de carga.
            Então, comentei em crônica do jornal A semana, na citada data, uma conversa que ouvi, entre dois burros que transportavam um dos últimos bondes comuns da época. Como eu conhecia um pouco a língua dos houyhnhnms, que aprendi com o renomado Gulliver, não me foi difícil apanhar o diálogo. Bem sabia que cavalo não é burro; mas reconheci ser a mesma língua.
            Inclinei-me, ouvi e, para encurtar a conversa, resumo-a abaixo. Dizia o burro da direita para o da esquerda:
— O bonde elétrico apenas nos fará mudar de senhor.
— De que modo?
— Nós somos bens da companhia. Quando tudo andar por arames, não somos já precisos, vendem-nos. Passamos naturalmente às carroças.
— Pela burra de Balaão! exclamou o burro da esquerda. Nenhuma aposentadoria? Nenhum prêmio? Nenhum sinal de gratificação? Oh! mas onde está a justiça deste mundo?
— Passaremos às carroças — continuou o outro pacificamente —onde a nossa vida será um pouco melhor; não que nos falte pancada, mas o dono de um só burro sabe mais o que ele lhe custou. Um dia, a velhice, a lazeira, qualquer coisa que nos torne incapaz restituir-nos-á a liberdade…
— Enfim!
— Ficaremos soltos, na rua, por pouco tempo, arrancando alguma erva que aí deixem crescer para recreio da vista. Mas que valem duas dentadas de erva, que nem sempre é viçosa? Enfraqueceremos; a idade ou a lazeira ir-nos-á matando, até que, para usar esta metáfora humana — esticaremos a canela [...]. Seguiu-se uma pausa.
— Tu és lúgubre, disse o burro da esquerda. Não conheces a língua da esperança.
— Pode ser, meu colega; mas a esperança é própria das espécies fracas, como o homem e o gafanhoto; o burro distingue-se pela fortaleza sem par. A nossa raça é essencialmente filosófica. Ao homem que anda sobre dois pés, e provavelmente à águia, que voa alto, cabe a ciência da astronomia. Nós nunca seremos astrônomos. Mas a filosofia é nossa. Todas as tentativas humanas a este respeito são perfeitas quimeras. Cada século…
[...]. Tínhamos chegado ao ponto terminal. Desci e fui mirar os dois interlocutores. Não podia crer que fossem eles mesmos. Entretanto, o cocheiro e o condutor cuidaram de desatrelar a parelha para levá-la ao outro lado do carro; aproveitei a ocasião e murmurei baixinho, entre os dois burros:
— Houyhnhnnms!
Foi um choque elétrico. Ambos deram um estremeção, levantaram as patas e perguntaram-me cheios de entusiasmo:
— Que homem és tu, que sabes a nossa língua?
Mas o cocheiro, dando-lhes de rijo na lambada, bradou para mim, que lhe não espantasse os animais. Parece que a lambada devera ser em mim, se era eu que espantava os animais; mas como dizia o burro da esquerda, ainda agora:
— Onde está a justiça deste mundo?

O tempo passou, até mesmo os burros do bonde elétrico foram substituídos pelo motor à explosão e as ruas de cascalho começavam a ser cascalhadas. Aparece, então, o biciclo, depois substituído pela bicicleta.
Com o surgimento desse veículo, movido à propulsão humana, os acidentes de trânsito multiplicam-se muito, mas, como dizia Tamus Ferradus, em nossa crônica 66: “Se você pensa que as coisas vão melhorar, é por que algo lhe passou despercebido”. Era um tal de burro atropelando ciclista, ciclista atropelando burro e bonde elétrico atropelando aqueles, que os gênios das invenções precisaram pensar numa alternativa para a humanidade.
Eis que surge o automóvel.
Em 1908, quando eu ingressava na cidade dos pés juntos, é lançado o Ford Model T, maior sucesso da época, com milhares de unidades comercializadas, inclusive em nossa terra.
Resultado, cem anos depois, principalmente em São Paulo, a quantidade de automóveis é tão grande que foi preciso publicar uma lei que regula qual tipo de carro  poderia sair às ruas. No dia X, somente podem trafegar os carros de placas pares; no dia Y, rodam somente os de placa ímpares.
E, no Distrito Federal, a quantidade de carros alcançou nível tal que se tornou comum ouvirmos nosso automóvel implorar:  — Vai de bike!
Outro dia, estava num rolé com o Gol 1.0, do meu secretário, que estacionou o carro para uma corridinha no parque da cidade, quando ouvi com meus próprios olhos um atleta correndo com um estranho fio na orelha e falando sozinho. O fato foi tão inusitado que já não sabia se o via ou se o ouvia.
Apressei o passo e acompanhei-o, disfarçadamente, para escutar o que ele dizia consigo mesmo. A conversa foi a seguinte: — Bromélia, o trânsito em Brasília está tão engarrafado que se você entrar numa garrafa e sair rolando chega mais cedo do que de automóvel.
Ao que uma voz de mulher, saída do ouvido do atleta, respondeu-lhe: — É verdade, Cornélio. Outro dia, precisei ir à farmácia da minha quadra e peguei um engarrafamento tão grande que antes tivesse ido a pé.
— Mas você não mora em frente à farmácia, mulher?
— Sim, mas é mais prático descer de elevador até a garagem, entrar no carro, dar a volta na quadra e estacionar na frente da farmácia.
— E quanto tempo você gastou para chegar lá?
— Meia hora.
— E a pé? Quanto tempo levaria?
— Cinco minutos, mas ia chegar mooorta de cansada, pois malho durante uma hora na academia, antes de ir à farmácia.
— Então você vai à academia a pé, não é mesmo?
— Eeeeeu?! “Cê” quer que eu vá malhar “cansadérrima”?
— E onde fica a academia?
— Ao lado da farmácia, mas não vou a mais nenhum lugar antes de tomar um bom banho, depois de malhar. Por isso, pego o carro, vou à academia, volto de carro para a casa, tomo banho, torno a pegar o carro e vou à farmácia.
E eu fiquei pensando comigo mesmo: — Mas ele não já está levando a orelha?
Outro dia, ouvi o filho do meu secretário, desacompanhado, que portava um aparelho quadrado, do tamanho de um livro, falar para seu pai, que saía nu do banheiro: — Pai, vai para seu quarto, pois estou aqui conversando com minha namorada do Japão.
Só entendi o que ele queria dizer quando ele virou a tela do aparelho na minha direção e me apareceu a imagem viva de um rosto lindo de menina, de olhos oblíquos, que me deu uma piscadela.
É assim que está o mundo do século XXI.
Em síntese, no século XX, que sucedeu o meu, o bonde do burro foi substituído pelo bonde elétrico, que também era puxado por burro; depois apareceu o biciclo, logo substituído pela bicicleta e, com a multiplicação dos carros movidos a motor, o transporte ficou insuportável até hoje.
Mesmo assim, ainda há quem deixe de caminhar cem metros, porque acha mais cansativo ir a pé, embora não pense o mesmo de ter de malhar uma hora na academia, para a qual também percorre cem metros de carro em meia hora, quando, correndo, gastaria três minutos.
Estou agora conversando com Henry Ford, Thomas Edson, Júlio Verne e outros gênios da humanidade. A ideia é sugerir-lhes que inspirem, não mais ao homem, mas à mulher, a invenção de um motor a ser acoplado às costas da cidadã, a fim de que ela possa se transportar pelo ar sem precisar descer à garagem...
— Só tem um detalhe, Machado, os engenheiros terão de construir janelas à prova de invasão por ladrões em todos os prédios da humanidade.
— Então, esquece o que eu disse, meu amigo Walt Disney...

—  Keep moving forward, meu caro Machado.

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