Em dia com o Machado 80 (jlo)
Dizíamos, alhures,
que se porventura os escritores estivessem, por aquelas horas, pesquisando
documentos sobre a história do Rio de Janeiro, seriam candidatos ao fabuloso
prêmio de cinquenta mil réis, alta soma à época. O prazo seria de cinco anos e
o historiador deveria produzir um trabalho completo sobre a história do então
Distrito Federal, desde os tempos coloniais até aqueles dias.
O preço da
obra vencedora do concurso, a ser julgado por gente competente do prefeito, era
alto, o prazo também. Questionei a necessidade de tanto tempo para escrever
sobre tão pouco. Afinal, o que teria de história para contar, então, a cidade
maravilhosa? Quase nada. As memórias do padre Perereca e outras mais seriam
trocadas pela pesquisa séria e exaustiva dos eventos memoráveis da cidade de
São Sebastião.
Mas que
eventos? Como memoráveis?
Pois bem, discordei
do regulamento daquele concurso. Não somente pelo prazo dilatado dado à
conclusão da pesquisa, como também sobre a competência dos julgadores, haja
vista que estes seriam escolhidos por novo prefeito, que poderia ou não
entender de competência literária dos críticos indicados para avaliação do
melhor trabalho.
Aqui e
agora, em Brasília, cronotopicamente falando, nosso prêmio vai para A bailarina
empoeirada, obra de 1500 páginas, escrita por Noemia Barbosa Boianovsky e
Luiz Humberto de Faria Del’Isola.
O conteúdo
dessa obra remete-nos ao poeta e dramaturgo Bertolt Brecht, que publicou o
seguinte texto, intitulado Perguntas de um operário que lê:
Quem construiu Tebas, a das sete portas? Nos livros vem o
nome dos reis, mas foram os reis que transportaram as pedras? Babilônia, tantas
vezes destruída, quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas da Lima Dourada
moravam seus obreiros? No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde
foram os seus pedreiros? A grande Roma está cheia de arcos de triunfo. Quem os
ergueu? Sobre quem triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio só tinha
palácios para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida, na noite em que o
mar a engoliu, viu afogados gritar por seus escravos. O jovem Alexandre
conquistou as Índias sozinho? César venceu os gauleses. Nem sequer tinha um
cozinheiro ao seu serviço? Quando a sua armada se afundou, Filipe de Espanha chorou.
E ninguém mais? Frederico II ganhou a guerra dos sete anos. Quem mais a ganhou?
Em cada página uma vitória. Quem cozinhava os festins?
Em cada década um grande homem. Quem pagava as despesas?
Tantas histórias, quantas perguntas.
(Disponível em:<
www.cecac.org.br>. Acesso em 4 abr. 2010.)
Os
autores de A bailarina empoeirada, ao pesquisarem sobre a construção de
Brasília, não pretenderam destacar a obra de Juscelino Kubitschek e de toda uma
vasta equipe política e técnica que o rodeavam e elevavam seus nomes ao
panteão da pátria. Esses já estão por demais enaltecidos pela história.
Noemia e Luiz Humberto resolveram
fazer justiça aos que, nos anos iniciais do surgimento da nova capital
brasileira, deixaram suas cidades e vieram para aqui comer o pó da edificação
da nova capital brasileira, ao qual juntavam seu suor e lágrimas. Em vista
disso, esclarece Humberto, em entrevista concedida a um canal de TV da OAB, que
“o maior monumento da história de Brasília chama-se povo”.
A obra A bailarina empoeirada
destaca os operários da construção do Distrito Federal, que teve início na
primeira cidade satélite da capital brasileira, o Núcleo dos Bandeirantes. Faz
menção às condições inóspitas dos locais de vida e morte de seus cidadãos iniciais, como a chamada “excrescência urbana”, que lembrava a insalubridade vivida
pelos primitivos cariocas e seus sucessores desde o início da colonização do
Brasil.
Narra os casos inéditos de quem
lutou para construir a nova capital e de quem tentou inutilmente levar de volta
a capital para o Rio de Janeiro. Relata fatos pitorescos dos primeiros
moradores, construtores, comerciantes, empresários e servidores públicos que
para cá vieram e nunca mais retornaram aos seus estados de origem.
É sobre essa massa de construtores e
novos habitantes esquecidos, como as quase cem prostitutas, chamadas
educadamente de bailarinas, deixadas no cerrado, a cerca de 40 km de Brasília, que os autores de A bailarina empoeirada chamam a atenção
de historiadores e escritores que queiram narrar a saga da construção da
nova capital brasileira e seus casos pitorescos.
Então, não me falem agora sobre Juscelino,
o iluminado presidente que trouxe para cá a Capital Federal, ou Oscar Niemeyer,
genial arquiteto, que projetou Brasília e viveu até os 104 anos. Não me lembrem
que Burle Marx foi o extraordinário paisagista que realizou notáveis obras em
nossa capital. Olvidemos, por ora, o estupendo trabalho de urbanização
promovido por Lúcio Costa. Desnecessário recordar Marcos Paulo Rabello,
engenheiro e empreiteiro, que morreu esquecido, aos 92 anos, e deixou
construídas centenas de edificações aqui. Inútil mencionar as belas obras
artísticas de Athos Bulcão, Bruno Giorgi, Alfredo Ceshiatti, entre outros.
Lembremos o humilde operário da
construção do Distrito Federal e da capital do Brasil. Esse, sim, o verdadeiro
herói, sem o qual o cerrado do Planalto Central não se teria tornado patrimônio
cultural da humanidade. Isso porque cada um dos grandes nomes sempre lembrados
acima levava consigo a força de trabalho de milhares de cidadãos anônimos e as
esperanças de suas famílias na concretização de um sonho que também foi deles:
o de materializar o devaneio de D. Bosco em ver surgir, em pleno cerrado do
Planalto Central do Brasil, a nova Capital da República.
Concluamos, então, com um trecho do
belo poema de Vinícius de Morais: Operário em construção:
Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão. […]
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão. […]
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