Em dia com o
Machado 254 (jlo)
Dia destes, conversando com meu mestre Machado, que
agora se recusa tratar-me como seu secretário, e sim como amigo, ouvi dele a
explicação de que, muitas vezes, foi considerado injustamente, pela crítica, como
absenteísta. Repeli veementemente aquela imerecida consideração, mas tal foi
sua insistência que, muito constrangido, disse-lhe o seguinte:
— Machado, sinto-me ainda anos-luz de tão relevante distinção... Segundo o Espírito Emmanuel,
precisamos de duas asas para irmos a Deus:
Uma chama-se
amor; a outra, sabedoria. Pelo amor, que, acima de tudo, é serviço ao
semelhante, a criatura se ilumina e aformoseia por dentro, emitindo em favor
dos outros o reflexo de suas virtudes; e pela sabedoria, que começa na
aquisição do conhecimento, recolhe a influência dos vanguardeiros do progresso,
que lhes comunicam os reflexos da própria grandeza, impelindo-a ao Alto (XAVIER,
2016, cap. 4).
Em resposta, ouvi do Bruxo a seguinte reflexão:
— Podemos também simbolizar modernamente, no avião, o corpo e, no Espírito, o piloto. Essa
“ave metálica”, assim como necessita das asas
do amor e da sabedoria, também requer o motor
da vontade e o combustível da
humildade para elevar-se acima dos píncaros. Continue simples, e jamais me
afastarei de você.
— É verdade, concluí. Vontade e humildade impulsionam
o amor e a sabedoria. Somente assim, o Espírito
terá forças suficientes para superar a horizontalidade da matéria pela
verticalidade do anjo, quando então
estará em condição de “ver Deus”. Mas, responda-me agora: onde podemos
identificar, em sua obra, provas incontestes do seu empenho em favor da causa
abolicionista?
— Cito apenas dois exemplos: em meus trabalhos nos
Ministérios sempre que esteve em pauta o direito de qualquer negro e sua
família, manifestei-me favoravelmente a estes; e, dias após a chamada Lei Áurea, ironizei em crônica a
hipocrisia do homem branco em relação ao negro alforriado. Releia minha crônica
de 19 de maio de 1988, publicada no jornal Gazeta
de Notícias. É, principalmente, nas minhas crônicas que você encontrará a
“fina ironia” deste neto de escravos sobre o tratamento desumano e humilhante
sofrido por minha etnia no Brasil.
— E na
política, onde você se fez presente?
— Não somente nos romances, como em diversas crônicas
e em alguns contos... Leia, amigo, leia
muito! Afinal, para que lhe servem mil obras em suas estantes?
Antes de despedir-se com um afetuoso piparote em minha
orelha esquerda, arrematou:
— O amor precisa
transcender o apelo das paixões e fraquezas materiais; a sabedoria precisa exercitar a caridade sob o impulso do motor da vontade; mas o sublime combustível que
nos permitirá a subida é a humildade, sem a qual podemos despencar
das alturas.
Agradeci-lhe as sábias palavras e prometi-lhe meu
esforço em continuar sendo-lhe fiel servidor.
Ao afastar-se, ele sorriu-me, generoso como sempre, e lembrou-me,
ainda, estes versos do poeta Cruz e Sousa: “[...] as almas irmãs, almas perfeitas,/
Hão de trocar, nas Regiões eleitas,/ Largos profundos, imortais abraços!”
E eu ali estupefato e mudo:
— Ainda plano
longe desses laços!
Perto das
estrelas. Longe de tudo!
Referências
XAVIER, Francisco Cândido. Pensamento e vida. Pelo Espírito
Emmanuel. 19. ed. 4. imp. Brasília: FEB, 2016, cap. 4, p. 19.
SOUZA, Cruz e. Poema
intitulado Longe de tudo.
Obs.: as
referências a Machado de Assis, em todas as nossas crônicas, são puramente
fictícias, salvo quando se tratam de fatos notórios.
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