Páginas

segunda-feira, 13 de março de 2017



Em dia com o Machado 254 (jlo)

Dia destes, conversando com meu mestre Machado, que agora se recusa tratar-me como seu secretário, e sim como amigo, ouvi dele a explicação de que, muitas vezes, foi considerado injustamente, pela crítica, como absenteísta. Repeli veementemente aquela imerecida consideração, mas tal foi sua insistência que, muito constrangido, disse-lhe o seguinte:
— Machado, sinto-me ainda anos-luz de tão relevante distinção... Segundo o Espírito Emmanuel, precisamos de duas asas para irmos a Deus:

Uma chama-se amor; a outra, sabedoria. Pelo amor, que, acima de tudo, é serviço ao semelhante, a criatura se ilumina e aformoseia por dentro, emitindo em favor dos outros o reflexo de suas virtudes; e pela sabedoria, que começa na aquisição do conhecimento, recolhe a influência dos vanguardeiros do progresso, que lhes comunicam os reflexos da própria grandeza, impelindo-a ao Alto (XAVIER, 2016, cap. 4).

Em resposta, ouvi do Bruxo a seguinte reflexão:
— Podemos também simbolizar modernamente,  no avião, o corpo e, no Espírito, o piloto. Essa “ave metálica”, assim como necessita das asas do amor e da sabedoria, também requer o motor da vontade e o combustível da humildade para elevar-se acima dos píncaros. Continue simples, e jamais me afastarei de você.
— É verdade, concluí. Vontade e humildade impulsionam o amor e a sabedoria. Somente assim, o Espírito terá forças suficientes para superar a horizontalidade da matéria pela verticalidade do anjo, quando então estará em condição de “ver Deus”. Mas, responda-me agora: onde podemos identificar, em sua obra, provas incontestes do seu empenho em favor da causa abolicionista?
— Cito apenas dois exemplos: em meus trabalhos nos Ministérios sempre que esteve em pauta o direito de qualquer negro e sua família, manifestei-me favoravelmente a estes; e, dias após a chamada Lei Áurea, ironizei em crônica a hipocrisia do homem branco em relação ao negro alforriado. Releia minha crônica de 19 de maio de 1988, publicada no jornal Gazeta de Notícias. É, principalmente, nas minhas crônicas que você encontrará a “fina ironia” deste neto de escravos sobre o tratamento desumano e humilhante sofrido por minha etnia no Brasil.
 — E na política, onde você se fez presente?
— Não somente nos romances, como em diversas crônicas e em alguns  contos... Leia, amigo, leia muito! Afinal, para que lhe servem mil obras em suas estantes?
Antes de despedir-se com um afetuoso piparote em minha orelha esquerda, arrematou:
— O amor precisa transcender o apelo das paixões e fraquezas materiais; a sabedoria precisa exercitar a caridade sob o impulso do motor da vontade; mas o sublime combustível que nos permitirá a subida é a humildade, sem a qual podemos despencar das alturas.
Agradeci-lhe as sábias palavras e prometi-lhe meu esforço em continuar sendo-lhe fiel servidor.
Ao afastar-se, ele sorriu-me, generoso como sempre, e lembrou-me, ainda, estes versos do poeta Cruz e Sousa: “[...] as almas irmãs, almas perfeitas,/ Hão de trocar, nas Regiões eleitas,/ Largos profundos, imortais abraços!”
E eu ali estupefato e mudo:
Ainda plano longe desses laços!
Perto das estrelas. Longe de tudo!

Referências

XAVIER, Francisco Cândido. Pensamento e vida. Pelo Espírito Emmanuel. 19. ed. 4. imp. Brasília: FEB, 2016, cap. 4, p. 19.
SOUZA, Cruz e. Poema intitulado Longe de tudo.


Obs.: as referências a Machado de Assis, em todas as nossas crônicas, são puramente fictícias, salvo quando se tratam de fatos notórios.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

  Os trabalhos domésticos (Irmão Jó)   Nos domésticos trabalhos Temos de valorizar, Seja homem ou mulher, Quem nos serve em nosso lar.   Fel...