Em dia com o Machado 85 (jlo)
Eram da mesma família felina. O
primeiro chamava-se Abdul; a segunda, Aimee. Desencarnados, ambos conversavam
sobre a influência dos pensamentos em nossas vidas. Dizia a gata Aimee
para o filho:
— Cria minha, o pensamento é quase
tudo em nossas vidas. Ele nos permite criações maravilhosas, mas também
tenebrosas. As mentes que se alimentam de ideias nefastas, ligadas ao sexo
deseducado, ao ódio, aos crimes hediondos e vícios torpes, ao desencarnarem vão
direto para as zonas trevosas. Lugar triste e ermo.
— O que é feito de meu felino pai,
mamãe? Ele faleceu há vinte anos e, como estou aqui há apenas dez, nunca tive
notícias dele.
— Amore mio... Como você sabe, seu
pai foi um engenheiro renomado, no mundo físico, que construiu belos
arranha-céus na Terra, mas arranhou também duas gatas, ligadas às zonas
trevosas de nossa dimensão, embora aparentasse ser um pai de família exemplar e
frequentasse a missa aos domingos. Quando desencarnou, as gatas também já
libertas do corpo físico o esperavam para continuar enredando-o nas malhas da
paixão inconsequente. Atormentam-se os três até hoje. Now they are lost in the threshold
umbral.
— E como se chamam essas gatas
assanhadas, mamma?
— A loira chama-se Zypp; a morena,
Cher.
— Não tem como livrá-lo de tais
influências nocivas, mother?
— O problema é de vibração, meu
gatinho, eu o visito muitas vezes, mas ele não identifica minha presença. Zypp
e Cher sempre o retiram das minhas influências e o arrastam para as zonas
sombrias, onde se enroscam, há anos, num novelo de lã negra, do qual não se
conseguem soltar.
— Miau! E como faremos para
libertá-lo dessa escatológica fascinação, maman?
— Somente quando Juan aderir
mentalmente, pelo remorso e desejo sincero de se libertar dos fluidos mentais funestos,
poderei exercer influência sobre ele e
libertá-lo das garras dessas gatas sensuais.
— Então, mamãe, vamos miar por ele,
mas não nos esqueçamos também delas.
— É verdade, meu filho, miaremos igualmente
por nossas inimigas, a fim de que sejam iluminados, pois, segundo Augusto dos
Anjos,
Se devassássemos os
labirintos
Dos eternos
princípios embrionários,
A cadeia de impulsos
e de instintos,
Rudimentos dos seres
planetários;
[...]
No profundo silêncio
dos inermes,
Inferiores e
rudimentares,
Nos rochedos, nas
plantas e nos vermes,
A mesma luz dos
corpos estelares!
É que, dos invisíveis
microcosmos,
Ao monólito enorme
das idades,
Tudo é clarão da
evolução do cosmos,
Imensidade das
imensidades!
Nós já fomos os
germes doutras eras,
Enjaulados no cárcere
das lutas,
Viemos do princípio
das moneras,
Buscando as
perfeições absolutas[1].
— Mas então, Augusto, você quer dizer que nós, os gatos, ainda seremos
humanos?
— Exatamente, Abdul, mas não como
imagina. Precisarão, antes, passar por um processo depuratório, no princípio
inteligente universal, para, só então, com o acréscimo do pensamento contínuo, virarem
humanos.
— Se é assim, agradeço, mas prefiro
continuar felino.
— Assim dizem os brutos, mas não se
esqueça de que mesmo os ignorantes, ainda que involuntários, terão de responder
pelas marcas dos seus gatos. Continue, então, miando pelo seu pai... Quem sabe
um dia...
— E quem são os brutos, nós, ou
vocês, que fazem churrasquinho de gato, assistem rinhas de galos e de cães, aos
gritos ferozes que mais parecem urros de feras que de humanos, enquanto nos
dilaceramos para seu gáudio?
— É verdade, sob esse prisma, ainda
somos mais animais que vocês... Mie por nós, gatinho!
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