Em dia com o
Machado 84 (jlo)
Desculpem,
se lhes não estendo a mão; estou muito constipado. Observem; mal posso falar.
Gripe dos infernos. Passo as noites respirando pela boca. Imagino até que estou
magro e pálido.
Não?
Estou sim; vejam como fungo; fungo sem o mínimo sinal de poder; mas não fungo à
toa como já funguei junto a você, amiga leitora, quando estive no corpo físico.
Minha
preocupação agora não é mais a saúde, como dantes ocorria. Entretanto, tenho
ainda algumas razões para lhe falar de minha fungação. E não são por razões
políticas. Citarei duas ou três:
A
primeira foi quando soube por André do caso do grande comerciante que sempre
proporcionou uma vida folgada para seus filhos e, após a morte física, passou a
ter ódio de um deles, que era médico. Sua família tinha dois filhos, duas filhas
vivas e uma filha morta.
— Quatro
vivos e uma morta, Machado?
—
Uma viva, dois mortos e duas mortas.
— Dois
vivos, duas vivas e uma morta, Bruxo...
—
Dois mortos, duas mortas e uma viva, amigo leitor.
—
Não seriam quatro vivos e uma morta?
—
Quem é vivo não enterra mortos, entendeu, amiga leitora?
—
Nadinha!
—
Então, pergunte ao Senhor.
— “Deixa
aos mortos o cuidado de enterrar os seus mortos” (Lucas, 19: 60).
—
Exatamente...
—
Pois não é?
—
Perfeitíssimo.
Dados
esses esclarecimentos claros como água turva, pediria ao Dr. André que me
explicasse o que ocorreu para que o comerciante falecido odiasse tanto seu
filho doutor. Eis a resposta:
—
O genitor passara a vida trabalhando e ajuntara grande patrimônio. Entretanto,
já idoso, adoecera gravemente e Agenor, o filho médico, resolvera antecipar o
retorno do pai à pátria espiritual. Agora, enquanto os quatro filhos vivos
disputavam, a tapas, a herança familiar e a mãe enlouquecera, o espírito
paterno remoía-se de ódio pelo filho que cometera a eutanásia daquele antes que
o pai pudesse deliberar sobre quem ficaria com o quê de seus imensos bens
materiais.
Bem
dizia Jesus: “Não ajunteis tesouros na Terra, onde o verme rói, a ferrugem
corrói e o ladrão rouba. Ajuntai-os no céu, onde nem a traça nem a ferrugem
consomem e onde os ladrões não os podem roubar” (Mateus, 6: 19).
—
Machado, você está muito conselheiral, o que houve? Você não era disso...
—
Ah, meu amigo, nada melhor do que atravessar o rio Aqueronte, para nos
convencermos de que as almas valem a pena, ainda que sua lama não seja
pequena, parodiando meu amigo Fernando Pessoa. Vamos à segunda razão:
Quando
criança você se assustou quando viu na TV ou leu uma revista em quadrinhos
sobre história de vampiros? Pois a TVS mostrou, no último domingo, uma
pegadinha em que uma pessoa vestia uma roupa que lhe encobria a cabeça e, com
um machado na mão, saía correndo atrás de outras pessoas, à noite, se fazendo
passar por um fantasma sem cabeça. O susto era tão grande que vários
perseguidos tropeçavam e caíam. Numa dessas, o suposto fantasma tropeçou, caiu sobre
uma dessas pessoas e, descoberto, apanhou de todos os fugitivos que viram a
cena e voltaram correndo para agredir o engraçadinho.
Onde
já se viu fantasma tropeçar e cair como qualquer de nós?
Pois
então, talvez você não saiba que, nas cidades espirituais de fluidos
energéticos densos, como Nosso Lar, e nas zonas umbralinas que o
antecedem somos surpreendidos por mais intensas sensações do que as dos corpos de
matéria bruta. Por mais estranho lhe pareça, nossa existência terrena é cópia
grosseira do que há ali. A Física e a Biologia Quânticas já têm explicações
para tais fenômenos. Então, continue acompanhando nossa narrativa e você se
surpreenderá.
O
jovem Francisco não queria nem saber de pensar na morte física. Muito apegado
ao corpo, após um desastre, foi parar em Nosso Lar, depois de um período
de transição pelo Umbral, onde ficou prisioneiro do próprio cadáver, quando
sentiu os vermes roerem-lhe as carnes no túmulo, do qual se afastou correndo,
apavorado e demente.
Foi
socorrido nas Câmaras de Retificação de Nosso Lar, enlouquecido, por se julgar
perseguido por um monstro, que nada mais era senão a visão do próprio corpo
cadavérico. Tempo depois, recebeu a visita do espírito paterno, ser evoluído,
que orou por ele e lhe deu um passe. Depois disso, o jovem melhorou bastante,
mas continuou sob os cuidados dos médicos e enfermeiros espirituais.
Perguntei
a André, penalizado, como era possível que alguém fosse assombrado pela imagem
do próprio cadáver. Eis sua resposta:
—
Meu amigo, também tive essa dúvida e fiz a mesma pergunta ao espírito Narcisa,
uma enfermeira bondosa do Ministério da Regeneração. Eis sua resposta:
A visão de Francisco [...] é o
pesadelo de muitos Espíritos depois da morte carnal. Apegam-se demasiadamente
ao corpo, não enxergam outra coisa, e nem vivem senão dele e para ele,
votando-lhe verdadeiro culto, e, vindo o sopro renovador, não o abandonam.
Repelem quaisquer ideias de espiritualidade e lutam desesperadamente pelo
conservar. Surgem, no entanto, os vermes vorazes e os expulsam. A essa altura,
horrorizam-se do corpo e adotam nova atitude extremista. A visão do cadáver,
porém, como forte criação mental deles mesmos, atormenta-os no imo da alma.
Sobrevêm perturbações e crises, mais ou menos longas, e muito sofrem até a
eliminação integral do seu fantasma (XAVIER, F. C. Nosso Lar. Pelo
Espírito André Luiz. Cap. 29: A visão de Francisco).
— Caramba,
Machado! Depois dessa, fiquei morrendo de medo de morrer.
— Deixa de ser
bobo, rapaz; a morte não existe, disso nunca duvidei. Basta que leia minhas
obras, a começar pelos poemas; raros são aqueles que não se refiram ao aspecto sacrossanto
da vida, como este, que dedico a todos os vivos, estejam no corpo físico ou no
espiritual, intitulado:
OS SEMEADORES (Século XVI)
... Eis aí saiu o que semeia a semear...
Mat., XIII, 3.
Vós os que HOJE colheis, por
esses campos largos
O doce fruto e a flor,
Acaso esquecereis os ásperos e
amargos
Tempos do semeador?
Rude era o chão; agreste e
longo aquele dia;
Contudo, esses heróis
Souberam resistir na afanosa
porfia
Aos temporais e aos sóis.
POUCOS; mas a vontade os poucos
multiplica,
E a fé e as orações
Fizeram transformar a terra
pobre em rica
E os centos em milhões.
Nem somente o labor, mas o
perigo, a fome,
O frio, a descalcez,
O morrer cada dia, uma morte
sem nome,
O morrê-la, talvez.
Entre bárbaras mãos, como se
fora crime,
Como se fora réu
Quem lhe ensinara aquela ação
pura e sublime
De as levantar ao céu!
Ó Paulos do sertão! Que dia e
que batalha!
Venceste-la; e podeis
Entre as dobras dormir da
secular mortalha;
Vivereis, vivereis!
(ASSIS, M. Machado de Assis:
obra completa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1973, p. 134.)
Au revoir, cher ami!
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