Em dia com o Machado
122 (jlo)
Amiga
leitora e camarada leitor, revelar-lhes-ei um segredo que, até hoje, guardei
comigo a sete chaves sobre minha polêmica obra Dom Casmurro. É uma verdadeira bomba o que lhes direi: afinal,
Capitu traiu ou não traiu Bentinho? Coragem, prossigam lendo até o fim, e vocês
saberão a verdade.
Vamos
aos fatos: Bentinho, ao sair do seminário, após conhecer ali seu amigo Escobar,
com a ajuda deste, conseguiu convencer d. Glória, mãe daquele, a adotar um
jovem e interná-lo no seminário para pagar sua dívida, com Deus e a Igreja, de
lhes dedicar um filho sacerdote. Resolvido o imbróglio, Bento Santiago foi estudar
direito em São Paulo, e Escobar ficou no Rio de Janeiro, onde se dedicou ao
comércio de café e prosperava visivelmente com a ajuda da mãe de Bentinho...
Alguns anos depois, Escobar
casou-se com Sancha e Bentinho desposou Capitu, a namorada de infância. Escobar
e Sancha tiveram uma linda menina, mas Bento e Capitu não conseguiam engravidar...
Eis
que, pouco tempo após, nasceu o filho único de Capitu e Bento Santiago: Ezequiel.
Mas também Escobar e Sancha só tiveram uma filha, que virou companheira de
brinquedos do menino, o qual amava e era amado por seus pais.
Ezequiel,
aos seis anos de idade, tinha a mania de imitar todo o mundo e, certo dia,
Bentinho observou-lhe, além da mania de imitar prima Justina e José Dias,
"até um jeito dos pés de Escobar e dos olhos..." (cap. CXII). Mas
eram gestos... Ezequiel era muito amigo de Capituzinha (filha de Sancha e
Escobar que recebera o mesmo nome de Capitu).
Certo
dia, José Dias brincou com Ezequiel, pedindo-lhe para imitar seu modo de andar
na rua, o que foi reprimido pela mãe da criança. O agregado então lhe afirmou que
o menino imitava muito bem, e até d. Glória o beijara como paga por sua mimese
perfeita.
Foi
quando Bentinho comentou que os gestos do filho iam ficando cada vez "mais
repetidos, como os das mãos e pés de Escobar; ultimamente, até apanhara o modo
de voltar a cabeça deste, quando falava e o de deixá-la cair, quando ria"
(cap. CXVI). No entanto, enquanto Escobar vivera, nada empanava a amizade entre
suas famílias.
Como
suas "mulheres viviam na casa uma da outra" e "os dois pequenos
passavam dias, ora no Flamengo, ora na Glória", Bento comentou que eles
também poderiam se apaixonar e casar, futuramente, como ocorrera entre ele e
Capitu...
Sancha
acrescentou que os meninos até se pareciam; entretanto, Bentinho respondeu-lhe
que não era isso e, sim, porque Ezequiel imitava os gestos alheios. Escobar
concordou com ele e "insinuou que alguma vez as crianças que se frequentam
muito acabam parecendo-se umas com as outras". Pura verdade, não é mesmo,
amiga leitora?
Um
dia, após os casais fazerem plano para viajarem à Europa, dentro de dois anos, dia
de ressaca marítima, Escobar morreu afogado. Momentos antes de saber a notícia,
Bento contemplava o retrato que o amigo lhe dera com a seguinte dedicatória:
"Ao meu querido Bentinho o seu querido Escobar 20-4-70".
Bentinho
era tão ciumento que, no dia do enterro do amigo, ficou reparando os gestos de
saudades por parte de Capitu àquele, como se esta não tivesse o direito de
sofrer a perda de amigo tão querido do casal. Lembrou-se da expressão
"olhos de ressaca", atribuída por ele à esposa, na adolescência
desta, após José Dias ter-lhe dito que os olhos de Capitu pareciam os de
"cigana oblíqua e dissimulada" (cap. XXXII).
Desse
dia em diante, a partir de uma observação de Capitu sobre a semelhança dos
olhos de Ezequiel com os de Escobar, Bentinho, que de início vira graça na
observação da mulher, passou a observar estranha transformação no filho, que, a
seu ver, se parecia cada vez mais com o amigo morto. Começava ali a obsessão...
Houvesse,
à época, exame de DNA e tudo ficaria esclarecido.
—
Mas então, Machado, qual é a "bomba" a que você se refere?
—
Sim, em verdade, Bentinho sentia um ciúme doentio por Capitu, a quem amava e
nisso era correspondido por ela. Até aqui, nenhuma novidade. Entretanto, como
explicar o ciúme dirigido a um morto tido, até então, por irmão muitíssimo
querido?
Como
explicar a desconfiança da traição da mulher idolatrada, apenas por ela chamar
a atenção do marido para o olhar do filho semelhante ao do amigo; se, capítulos
atrás, fora explicado que Ezequiel imitava com perfeição as pessoas?
Como
explicar o esquecimento por Bentinho de que Escobar era quem mais influenciava
Ezequiel, que passava o dia brincando com Capituzinha, enquanto seus pais
jogavam, conversavam e riam felizes, por serem tão amigos?
Agora
a bomba, mui caros leitores e leitoras: Bento foi vítima de obsessão espiritual.
Ele
renegara o cumprimento da promessa materna de torná-lo sacerdote, e, em consequência,
atraíra para si terrível obsessor, que o fez se sentir traído por Capitu. Ele
fora tão vítima quanto ela... Vítima dos ciúmes próprios e da inveja alheia.
O
culpado de toda a tragédia familiar fora este obsessor: o leproso que morrera
quando Bentinho ainda era seminarista.
Afastado
da Igreja, Bentinho, influenciado,
tomou como provas de traição da esposa as mimeses perfeitas do filho Ezequiel e
a identificação psicológica do menino com o amigo, em vista da convivência
íntima diária de suas famílias...
Senão
assim, como se explica alguém amar tanto um amigo e, somente após a morte
deste, passar a odiá-lo e ao próprio filho, devido a simples reflexos miméticos
e de semelhança puramente psicológica entre este e aquele?
Como
justificar Bento Santiago se deixar levar por um ciúme doentio exatamente
quando o melhor amigo, Escobar, jazia morto, sem poder se defender?
É
que, por trás de tudo isso, havia um gênio mau, um espírito das trevas que
passara despercebido a todos os críticos e leitores de meu romance. Esse
espírito fora Manduca, o leproso pobre, que falecera magoado com Bentinho, por
este não ter ido ao seu enterro (cap. LXXXIV- XC). Sete capítulos... E eis que
Manduca mandou mal...
Este
é o grande segredo, amigo leitor; este é o grande enigma, bondosa leitora, que lhes
desvendo com prioridade e privilégio, pois ninguém, senão eu, havia antes pensado
nisso. Mistério que o mundo ainda não compreende, por estar sobejamente
envolvido com as teorias literárias niilistas, ateias, materialistas e desprezar
outras teorias, muito mais profundas, mais intensas e verdadeiras que a dos
mitos olímpicos.
Esta
é a bomba fatal que infelicitou Capitolina e Bento Santiago, por não entenderem
os processos espirituais que lhes devastaram a vida, lhes destruíram a
felicidade conjugal e transformaram Bentinho em Casmurro.
Houvera
este ido à missa com Capitolina e Ezequiel... E o mistério continua...
Oh!
dúvida cruel...
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