Em dia com o Machado 129 (jlo)
Numa famosa República, em 1889,
conhecida pela corrupção, certo dia, inventaram uma forma de apurar os votos de
candidatos à Câmara dos comuns. A Câmara alta, constituída pela burguesia,
indicava seus representantes ao governo, mas não votava. Como ainda não havia
internet, nem muito menos urna eletrônica, a apuração far-se-ia pela cor da
tinta predominante nas cédulas eleitorais distribuídas à população. Os
inventores do processo, respaldados pelos governantes, garantiam que a máquina
era à prova de fraude, tanto quanto a cédula, que imediatamente somava mais um
à cor escolhida pelo votante. O candidato da cor mais votada seria o vencedor.
No primeiro turno daquele ano
inesquecível, três partidos principais concorriam com seus candidatos ao cargo
de primeiro ministro: o vermelho, da situação, o azul e o verde, da oposição. Houvera
ainda um quarto partido, o amarelo, cujo candidato morrera acidentado no
helicóptero que mergulhou em parafuso com ele e seus correligionários. Assim, os
eleitores do extinto partido amarelo juntaram-se ao verde e este se fortaleceu.
Na campanha eleitoral de primeiro turno
(a votação era em dois turnos), o partido verde fora de tal modo atacado pelo
partido vermelho, que seus eleitores mudaram de opinião e apoiaram maciçamente
o partido azul. Outros votaram em branco ou anularam seus votos. Agiram como
Pilatos, que lavou suas mãos, mas carrega a culpa do Cristo crucificado.
No início da campanha do segundo turno,
os ataques vermelhos se intensificaram contra o partido azul, mas este resistiu
bravamente e preveniu seus eleitores contra o que, segundo se dizia, o partido
vermelho ameaçava o povo, caso votassem no outro candidato.
O candidato azul surpreendia seus
adversários, perplexos com sua capacidade de desfazer as intrigas armadas
contra ele. Havia, entretanto, um acordo, quase secreto, dos membros do partido
vermelho, na situação há 24 anos, que juraram fazer de tudo para se perpetuarem
no governo.
Na reunião rubra que decidiu
definitivamente o que fazer para se manter no poder, acompanhei de perto, sem
ser visto, a conversa e os planos mefistofélicos do partido (Afinal, não se
esqueçam de que estou em outra dimensão, a dos espíritos, que os ingênuos
insistem em chamar de alma do outro mundo. Coitados, somos deste mundo mesmo,
por enquanto...).
— Ao menos setenta anos, dizia um dos
correligionários. Pois então já não estaremos mais vivos e, após nós, que venha
o dilúvio.
— Negativo, contestou outro; se fizermos
a coisa certa, nunca mais haverá alternância de partidos, neste governo. Apenas
nós permaneceremos no poder, sendo reeleitos a cada quatro anos.
— Mas não estamos numa democracia? Disse
linda deputada. É preciso dar oportunidade a outrem de propor novo
representante popular, ainda que utilizemos todos os instrumentos legais para
elegermos nosso primeiro ministro.
— Concordo contigo, falou o senador
presente ao debate. Qual é a maior empresa deste país, cujos órgãos
exportadores se multiplicam aos milhares?
— É a Mineralópolis, respondeu a
deputada.
— Pois bem, nomeemos, legalmente, seu
presidente, seus diretores, seus contadores, enfim, para ocuparem cargos-chave
e abramos contas em bancos do exterior, conhecidos por seu sigilo absoluto.
Como sabemos, em nosso país, têm sido achadas muitas minas de ouro e pedras
preciosas, cujo valor é incalculável. Tudo isso está sob o controle governamental.
Negociemos esses minérios, depositemos esses valores nas contas abertas e
digamos ao povo que só temos encontrado pedras de pouco valor, cuja utilidade
maior é fabricar bijuterias.
— E o que será feito da fortuna
depositada nesses bancos, senador? Perguntou, ingenuamente, outro deputado.
— Será empregada numa causa nobre.
Repartiremos os valores, em cotas iguais para nossos correligionários, sob a
condição de utilizarem parte do dinheiro na reeleição de nosso primeiro
ministro e o restante na distribuição de pães para todas as famílias pobres
deste país.
— Mas, senador, e o investimento em
educação, saúde e segurança, que tanto têm sido prometidos nas campanhas
eleitorais por todos os candidatos?
— Minha bela deputada, enquanto houver
pão na mesa do pobre, não precisamos nos preocupar com a saúde, pois uma pessoa
bem alimentada não adoece. Se todos receberem a mesma cota de pão, para que
pensarmos em segurança? Ladrão só rouba de quem tem...
— E a educação? E os burgueses da Câmara
alta?
— Ora, minha ingênua companheira, se
instruirmos nosso povo, adeus plano de poder ad aeternum. Não queremos reforçar a concorrência e, sim, governar
com todos os poderes materiais e espirituais
sob nosso controle. Quanto aos burgueses de outros partidos, ficarão tão
enfraquecidos que, de resto, só restaremos nós, os burgueses vermelhos. Gostou
do trocadilho? E gargalhou...
— O povo, porém, pode se cansar de viver
de auxílio, sem perspectiva de progresso econômico e intelectual. Não se
esqueça, senador, que ainda temos na Câmara alta as elites não vermelhas, que
se sentirão ameaçadas e procurarão perverter, principalmente as mentes jovens e
sonhadoras.
— Podemos fazer um julgamento semelhante
ao de Sócrates e condenar os que se atreverem a isso a tomar cicuta, curare ou
enfrentar o pelotão de fuzilamento. Propôs um douto parlamentar, que até então
estivera calado.
— Ora, meu amigo, disse o líder do
debate, há uma forma mais prática de resolver tudo isso, sem colocar a
população contra nós, caso apelemos para a força. Usemos a inteligência.
—
Como assim? Perguntaram todos a uma só voz.
— Não estamos no controle da situação?
Pois bem, façamos cédulas nas cores azul e vermelha, com códigos específicos
para ninguém desconfiar de fraudes; porém, contratemos um especialista da mais
alta confiança, não por ser meu filho, mas por ser filiado ao partido vermelho,
para criar um mecanismo oculto nas máquinas de votação, a fim de que as células
vermelhas sejam computadas em dobro.
Meu garoto é um gênio da mecânica e já me propôs fazer o trabalho pela bagatela
de um bilhão de dólares. E o que é isso em vista dos trilhões?...
— Como assim computadas se ainda não temos computadores? Perguntou um corvo que
tudo ouvia, atento, pousado no ombro de um dos deputados.
— É modo de falar, mané. - Grunhiu um
gato preto, dono da linda deputada, confortavelmente
deitado em bela almofada de veludo trazida por ela. - Atualmente, computar é o
mesmo que adicionar, somar, contar, entendeu?
— Ah, sim, responderam todos os
presentes... Mas isso será o suficiente para ganharmos as eleições? E se houver
unanimidade contra o poder em nossas mãos?
— Façamos o seguinte, utilizemos todos os
correligionários de confiança do partido para que supervisionem a votação e
orientem os camaradas para só liberarem seu resultado após minuciosa apuração
de todas as urnas. Entenderam?
— Sim, sim, camarada senador. Com a
rapidez desse nosso sistema de captação de votos, em apenas uma hora a mais,
decorrente de fuso horário, poderemos substituir milhões de cédulas "defeituosas",
desde que não sejam as vermelhas...
— Todos aplaudiram-no entusiasticamente
com crepitante gargalhada.
— Ainda assim, senhores, pode haver o
caso do outro partido pedir auditoria para apuração rigorosa dos votos. Disse o
candidato, que estivera presente e calado até então.
— Nosso relator já está instruído a ser
contrário ao procedimento, alegando que tal conduta poderá prejudicar a
confiança do povo em nosso sistema único na Terra, infalível e absolutamente
confiável de apuração de votos. E, como os nossos adversários são completamente
leigos em matéria mecânica, mesmo que haja auditoria, ninguém, a não ser fulano,
eu e nosso próprio candidato, descobrirá o segredo da máquina.
— Por que somente vocês? Atreveu-se a
perguntar o gato.
— Você parece que não tem religião –
respondeu-lhe o corvo -. Nunca ouviu falar da trindade universal?
— Isso mesmo! - gritou um cachorro vira-latas
que passava por ali - executivo, legislativo e judiciário. Tudo pela
democracia.
Todos aplaudiram-no de pé; e o país das
falcatruas continuou fingindo ser a mais inteligente democracia do mundo...
Nenhum comentário:
Postar um comentário