Em
dia com o Machado 155 (jlo)
E
tu, ó caridade, ó virgem do Senhor,
No
amoroso seio as crianças tomaste,
E
entre beijos — só teus — o pranto lhes secaste
Dando-lhes
pão, guarida, amparo, leito e amor.
(Machado
de Assis. A caridade. Última estrofe.)
Quem
pensa que me aproveitei do Espiritismo para fazer literatura está completamente
certo. Aproveitei-me, sim, tanto é verdade que encarreguei este meu secretário
de fazer um levantamento de todas as minhas crônicas nas quais a nova Doutrina
é citada direta ou indiretamente. Sem contar a presença dos personagens e fatos
espíritas em meus duzentos contos e dez romances (incluo aqui Casa velha).
Agora volto do além,
Após ter estado aquém.
No peito trazendo um dó
Em redondilha maior.
É
o dó de ter criado fama literária com base no rico veio espírita, que nem
sempre vi com bons olhos...
Já
em crônica datada de 2 de dezembro de 1894, quando rasguei de minhas retinas o
véu de Ísis, comentei: “A consciência é o mais cru dos chicotes” (In: A
semana).
Nada
mais certo do que nossa constatação sobre a vantagem dos velhos sobre os jovens
em relação à maturidade. A experiência permite-nos corrigir aqueles passos
dados mais largos do que as calças comportam na juventude.
Daí
eu retornar para ratificar o que comprovei na experiência pós-existência
física: é verdade, a mente controla a matéria. A de Deus, mentezona, controla, igualmente, a matéria e o espírito; a nossa, mentezinha, controla, em parte mais ou
menos ampla, a matéria, até que consigamos espiritualizá-la.
Dito
isso, procuraremos demostrar ao curioso leitor, pelo método da linha do tempo, de que modo partimos de
uma intransigência radical a uma dúvida, a um respeito e, por fim, a uma
completa certeza sobre as verdades pregadas pela crença espírita. O corpus analisado é o das nossas doze
crônicas com abordagem do Espiritismo, 2% de todas as 600 crônicas escritas por
nós. Vamos à linha do tempo:
16
de junho de 1878, V (Notas semanais):
confundo adivinhação e Espiritismo, que demonizo e critico;
05
de outubro de 1885 (Balas de estalo):
informo ao leitor sobre conferência assistida na Federação Espírita Brasileira,
RJ, que ironizo;
11
de outubro de 1885 (Balas de estalo):
minha suposta iniciação na nova “igreja”, impedida pela proibição de fingimento
de inspiração “por potências invisíveis” e de “predizer coisas tristes ou
alegres”;
19
de julho de 1888 (Bons dias!): fina
ironia à constatação, pela própria Federação Espírita Brasileira, de fraudes
cometidas pelo médium inglês Dr. Slade, que esteve no Rio de Janeiro;
7
de junho de 1889 (Bons dias!):
critico veementemente o “Espiritismo” como coisa de alienados mentais,
mentecaptos e de idiotas; chego a forjar “estatísticas” que comprovam ser o Espiritismo
coisa de “doido varrido”; mas na verdade, apenas analisei um dos postulados
espíritas, que é a mediunidade, sem necessariamente uma coisa ser o mesmo que a
outra, pois esse fenômeno não é privilégio dos espíritas; em minha época, era
comum a confusão entre cultos afros, curandeirismo, adivinhações, profecias e
mediunismo com o Espiritismo;
29
de agosto de 1889 (Bons dias!):
comparo curandeirismo com Espiritismo, ao qual ataco injustificadamente e digo
que ambos são a mesma coisa, agravada pelo fato de o segundo criar “idiotas e
alienados”;
03
de julho de 1892 (A semana): abordo a
desencarnação e a reencarnação e cito frase semelhante à do túmulo de Allan
Kardec: “Nascer, morrer, tornar a nascer e renascer ainda, progredir sempre”. Cito
igreja e sacerdotes espíritas, o que jamais existiu no Brasil. Demonstro, nessa
crônica, boa vontade para com os espíritas, mas, em meio a verdades, cometo
equívocos como os citados;
2
de setembro de 1894 (A semana):
refiro-me ao Espiritismo e sua lei da reencarnação como possibilidades reais:
“Ou o Espiritismo é nada, ou Miller foi condutor de bonde em alguma existência
anterior [...]”, e já não critico o Espiritismo;
23
de setembro de 1894 (A semana):
informo que o Espiritismo “é uma verdade”, e brinco com a fingida suposição
minha de que o “espírito de um homem pode reencarnar-se num animal”,
contrariamente ao que prega o Espiritismo, o qual só admite a reencarnação do
espírito humano em corpo também humano;
27
de outubro de 1895 (A semana): reconheço
que “o Espiritismo é uma religião, não sei se falsa ou verdadeira”;
29
de dezembro de 1985 (A semana):
confirmo que “o Espiritismo se ocupa de altos problemas” e defendo a liberdade
religiosa;
13
de setembro de 1896 (A semana): saio-me
com esta afirmação: “Há muito que os espíritas afirmam que os mortos escrevem
pelos dedos dos vivos. Tudo é possível neste mundo e neste final de um grande
século”. Nessa última crônica, já não confundo pseudos médiuns ou profetas com o
Espiritismo, como se vê nesta afirmação: “Quanto à doutrina em si mesma, não
diz o telegrama qual seja; limita-se a lembrar outro profeta por nome Antônio
Conselheiro”.
Refiro-me
ao “profeta baiano Benta Hora”, que foi preso, mas cuja liberdade de se
expressar também defendo: “Ora, pergunto eu: a liberdade de protestar não é
igual à de escrever, imprimir, orar, gravar?”.
Do
respeito à convicção total, bastou o período de algumas horas após minha
desencarnação, em 1908, quando observei in
loco a vida espiritual e não, como cheguei a supor, já na idade madura, ser
o espírita um louco.
Entristecido,
por ter agido, durante tantos anos, como um verdadeiro alienado que, do lado de
fora, colocara os sãos do lado de dentro do hospício; tratei de soltá-los, como
o fez meu personagem d’O Alienista, e
meti-me lá, eu mesmo. Ali, chorei como criança...
Foi
quando minha doce Carola, cercada de bons espíritos, entrou, aproximou-se de
mim e libertou-me do cárcere das trevas em que estava.
Em
suas mãos, ela trazia uma faixa com a bela máxima espírita, que não distingue
nenhum filho de Deus, seja crente ou ateu, e contradiz minhas antigas acusações
de pretender ser o Espiritismo a única religião verdadeira. Ela intitula o
capítulo 15 d’O evangelho segundo o
espiritismo:
Fora da caridade não há
salvação.
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