Obra-prima da mediunidade
A partir de hoje, uma vez por semana, publicarei um texto-mediúnico que seja uma obra-prima da mediunidade. Eis o primeiro. Leia-o, reflita na Lei de Causa e Efeito, mas ria um pouquinho com a conclusão do conto.
13
OURO E BATATAS
I
João Peres, prestimoso amigo
do Plano Espiritual,
estava de volta à esfera dos
homens.
Tudo pronto para o renascimento. E porque desfrutasse merecidos
afetos, era como bênção de luz a festa das despedidas.
— Tornarei, sim, dizia bem-humorado, e espero vencer agora.
Indagou alguém se estava informado quanto ao pretérito, ao que respondeu, generoso:
— Conservo
a memória voltada para
certo período — e modificando
a expressão fisionômica:
— Tinha eu trinta anos de idade, em Taubaté, quando foi promulgada a lei de 18 de abril de 1702,
sob o nome de Regimento dos Superintendentes, Guardas-Mores
e Oficiais Deputados para as Minas de Ouro,
com que o cetro português procurava incentivar a mineração no Brasil. Cada minerador com mais de 12 escravos poderia receber uma data com 900 braças
quadradas, ou seja, 4.356 metros quadrados. Vendi a propriedade que herdara, sozinho, de meus avós, e rumei para Vila Rica. Instalado nas vizinhanças de São João del-Rei, consegui
catorze cativos e comecei meu trabalho. Cobiçoso, não mentalizava senão ouro,
ouro,
ouro... Mas enquanto companheiros
diversos
prosperavam,
felizes,
não
encontrava por mim senão cascalho e desilusão. Mourejando de sol a sol, a pouco e pouco me
desencantei.
Trinta anos vivi ali a loucura do
ouro. Ouvi a fama
das minas de Cuiabá. Entreguei o
pedaço
de terra a meu primo Martinho Dantas e abalei-me, com dois escravos, para a viagem temível. Tudo começou às mil maravilhas, mas fomos desviados da rota e, a tempo breve, achávamo-nos sem caminho, em pleno deserto verde. A seca atacava tudo. E caí doente, fatigado, febril. Na segunda noite de maiores dificuldades, Juvenal e Sertório entraram em fuga,
levando-me
víveres e cavalos. No delírio que me assaltava, sentia fome... Cambaleei por dois dias, como bêbado solitário, procurando comer... Mastigando folhas amargas que me
impunham tremenda salivação, arrastei-me, arrastei-me, até que, ao pé de uma fonte, vejo pequena bolsa, recheada com algo... Tremo de esperança. Alguém teria deixado ali algum
resto de refeição. Abro o saquitel e contemplo uma farinha dourada. Semienlouquecido,
encho a boca, como quem encontra os remanescentes de uma farofa gorda. E bebo água,
muita água, para morrer depois em pavoroso suplício, porque nada mais fizera que comer ouro em pó.
II
Peres interrompeu-se.
Todavia, alguém pede mais. Encerrara então ali a carreira?
—
Não — disse ele, sorrindo — ao pé da própria carcaça, invadida de pó
valioso, demorei-me por
tempo indeterminado. Se dormindo, não sei. Se acordado, ignoro, mas sei que vivi pesadelo incessante em
que via barras de ouro, pepitas de ouro, lâminas de ouro e caixas de ouro...
Quando essa loucura encontrou alívio, pus-me, em
Espírito, no movimento da retaguarda.
Muito tempo havia passado, porque o próprio Martinho não mais achei. Morrera
próspero, deixando larga fortuna aos filhos. A terra que eu lhe emprestara abrira-se, enfim, mostrando o seio aurífero. Reclamei meus direitos e brami contra o mundo, sem que ninguém
me ouvisse, até que, um dia, por bondade de Deus, dormi, tudo esquecendo... Renascera entre
os bisnetos de meu primo e,
desde cedo, ansiando pela posse de
ouro, aprendi a comerciá-lo.
Viajava entre Sabará e São João del-Rei sem medir sacrifícios. Entretanto, aspirando à riqueza fácil, estimulei nos escravos o gosto do furto. Quanto me pudessem oferecer tinha
preço. E aumentei meus negócios. Atravessava de novo
a casa dos sessenta anos, quando a clandestinidade de meus serviços escusos foi revelada. Dispunha, no entanto, de
enorme fortuna em ouro e consegui escapar ao processo, subornando funcionários e consciências. Policiado, no entanto, resolvi retirar-me. Buscaria o território baiano e, por lá,
tomaria medidas novas. Mudaria meu próprio nome. Depois, desceria por mar,
rumo
ao Sul. Na Corte, poderia desfrutar vida farta. Tomei tropas.
Viajei garantido. Servidores
numerosos. Carga volumosa e pesada. Na travessia do S.
Francisco, exigi que as minhas duas grandes
malas de ouro me acompanhassem. “É muito peso” — disse o barqueiro, sensato. Mas exigi. Ele e eu com a carga, ou nada feito. O homem aceitou, mas a pleno rio, surgem correntes mais fortes.
O barco
oscila. Vai-se a primeira mala. Tento retê-la e cai a segunda. Gritando, à
feição de louco, mergulho nas profundas águas,
perdendo de
novo
a vida...
Peres fitou-nos, pensativo,
e ajuntou:
— Desde então,
sofri merecidos
horrores
para aprender...
— E agora,
Peres? — perguntou, intrigado, um amigo que também
se dispunha à reencarnação.
O ex-garimpeiro e comerciante
levantou-se e atendeu:
—
Agora será
diferente.
Volto ao meu torrão antigo em São Paulo e vou plantar batatas.
E, sorrindo, concluiu:
— É muito
melhor.
XAVIER, F. C.; VIEIRA, W. A vida escreve. Pelo Espírito Hilário Silva. 10. ed., 3. reimp. Rio de Janeiro: FEB, 2010. 2. parte, cap. 13.
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