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terça-feira, 25 de setembro de 2012


            Minha cara leitora, conforme já lhe disse, outro dia, há gente que preza mais a vida de um animal do que a de um ser humano. A rigor, se formos tomar ao pé da letra o sexto Mandamento de Deus, toda vida, e não somente a nossa, deve ser respeitada, como, por exemplo, a da formiguinha, a da baratinha...
            Pois não é que resido num apartamento há doze anos e, durante esse tempo, só condenei à morte uma espécie do gênero barata? Já seria uma grande falta, se não se levar em conta o batalhão de formiguinhas que exterminei somente numa ocasião.
            Foi o seguinte: estava em meus quefazeres diários quando, ao cair da noite, ao passar da cozinha para o corredor que vai dar na sala e nos quartos, quedei-me em olhar para riba, na direção do teto e, oh! O que vejo! Uma fileira de formiguinhas que iniciava não se sabe bem aonde e percorria a parte superior das paredes que abrangiam os citados cômodos.
            Parei, estupidificado, e olhei para a imensidão, que desfilava garbosamente pelas alturas das paredes, numa interminável marcha. Então, pensei com meus botões: — Se eu não as exterminar, elas me exterminarão e a todos da casa.
            Olhei para as formigas, elas continuavam sua marcha, ignorando completamente minha existência... Nem ao menos uma minúscula bandeira branca foi estendida por elas, caso em que eu refletiria seriamente na possibilidade de negociar uma saída honrosa para nós: elas fora do apartamento, mas vivas; eu dentro do imóvel, com a consciência ilibada e as mãos purificadas...
            Não sucedendo o que almejara, não tive outra saída senão a de procurar a lata de um produto destinado a enviar para o plano espiritual dos insetos as nossas amigas. Ergui a lata, as formigas lá, apontei o borrifador em sua direção, elas nem se tocaram. Comecei, então, a borrifar o produto do ponto da sala que parecia ser o início da marcha das formigas. Fui caminhando e borrifando, borrifando e caminhando. Após uns sete passos (número cabalístico), encerrei minha operação... As pobrezinhas ali ficaram, presas ao topo das paredes por aquele líquido assassino.
            Não fui eu quem as matou, nem fui eu que violei o mandamento do “Não matarás”, foi o produto... Ou melhor, foi quem fabricou o ironicamente chamado “remédio”... Melhor ainda, foi quem inventou a fórmula de extermínio dos insetos, pobres seres de Deus que nada mais querem do que o direito de ir e vir, comer, beber, procriar e dormir.
            Agora, algum tempo depois, posso dizer, sem qualquer escrúpulo consciencial: cometi outros três crimes.
            Antes que a amiga leitora proteste, dê um gritinho e chame a polícia, explico-me. Não matei nenhum dos meus assemelhados do gênero humano. Como meu antigo apartamento entrou em obras, mudei-me para o apartamento vizinho. Após o sétimo dia em que ali estávamos, eu e minha família, à noite, depois de um longo tempo de estio, na Capital Federal, sem que caísse uma só gota de chuva, choveu a cântaros naquela noite...
            Lá pelas tantas horas, após meu banho noturno, abri a porta do armário que fica frontal à suíte do casal. Eis que, atrás da porta, uma barata daquelas cabeludas me aparece correndo em minha direção. Mais que depressa, fechei a porta, com a intenção de dar-lhe um merecido corretivo, por invadir propriedade e leito conjugal alheios. Feito isso, gritei do quarto para minha querida mulher, que tem ojeriza a baratas:
             — Lourdes, TEM UMA BARATA EM NOSSO QUARTO, traz o inseticida!    O amor de minha vida não titubeou, foi ao depósito dos fundos, pegou o veneno e deu-mo, para as providências cabíveis...
            — No entanto, nesse meio tempo, cadê a barata? Imaginei que ela havia se escondido por debaixo do batente da porta, parcialmente solto, e despejei ali ao menos metade do produto da lata. Feito isso, fiquei atento, chinelo na mão, aguardando que ela saísse, para concluir meu trabalho exterminador.
            De repente, ao dar um passo e entrar no banheiro da suíte, que não tem porta, vejo, no meio do piso, um baratão olhando perplexo para mim. Não tive dúvida, mandei-lhe o inseticida na cara. Ele corria para debaixo do armário, voltava em minha direção e tomava nova borrifada, tentava subir pela parede, não tinha forças, descia pesaroso, tornava a vir ao meu encontro e, nova esguichada... Até que, penalizado, peguei o chinelo e completei o serviço.
            Feito isso, clamei: — Amor, traga a pá e a vassoura, MATEI O BARATÃO!
            Algo me dizia, entretanto, que aquela não era a barata anterior. Era maior. Minhas suspeitas se confirmaram quando ouvi um tleck e o grito da Lourdes: — Tinha outra barata aqui e eu matei ela com o chinelo. Traz a pá. E lá se foi a pá para a barata e a barata para o vazo sanitário, como ocorreu com sua irmã.
            — Agora sim, pensei, esta deve ser a que vi antes. Provavelmente não aguentou o cheiro e os efeitos do “remédio” e se desentocou... Então, quem a matou fui eu...
            Lourdes foi dormir e eu fui para a sala ler, tranquilamente, mas já pensando que, enquanto no meu apartamento do lado deste só vira uma barata em doze anos, agora, em poucos minutos tivemos que matar duas filhas de Deus, como nós e todos os seres vivos.
            Pensas que aqui termina a história, prezada leitora? Estás enganada... Esqueci não sei o que no quarto em que minha mulher jazia estendida na cama, tentando dormir, ainda com a luz acesa, o que não é normal no comportamento dela. Nem bem entrei no quarto e, enquanto trovejava e chovia lá fora, nova barata resolveu mudar-se para o meu apartamento, mais precisamente, para o meio do dormitório...
            Sem pena de despertar minha amada, lancei mão do chinelo, atirei-o de uma vez na barata. E... PLAFT!
            Mas não é que ela, mesmo atingida parcialmente ainda teve forças para correr para a lateral da cama, esconder-se na dobra superior do colchão e ali ficar, imóvel?
            Mais uma chinelada e lá se foi outra criaturinha de Deus fazer companhia a suas irmãs sob a descarga monstruosa do vaso sanitário.
            Naquela noite, tive de dar plantão por um longo tempo, com a luz acesa, pois Lourdes solicitou-me, gentilmente, que dali só saísse quando tivesse certeza de que outra barata não mais apareceria...
            Foram somente aquelas, felizmente... Pelo menos, as que vimos.
            Depois disso, ou as outras aprenderam com a lição de suas coleguinhas e resolveram entrar pela janela de algum vizinho incauto, ou ficam de tocaia, esperando que durmamos, apaguemos as luzes, para, altas madrugadas, fazerem a festa!
            Talvez seja isso que explique a criatividade de alguns compositores de músicas populares. Provavelmente, ouviram o som de uma festa de baratas que cantavam, alegremente: — Hoy tiene fiesta, Allá em mio apê...
            Ao que todas, a um só tempo, dizem: — Pero que cucaracha!
            Buenas noches!






2 comentários:

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