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sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Em dia com o Machado 67  (jlo)



Reflexão sobre os impostos, as multas e o corvo, de Edgar Allan Poe


            Amigos, hoje estou triste com a história que conheci. Queres sabê-la? Então vamos aos fatos, pois contra estes não há argumentos, já dizia Nietzsche. (Mentirinha, a frase é de outrem.)
            Certo amigo meu, lutador incansável na arte de transmitir o conhecimento, estava há duas décadas no magistério superior, em geral à noite, e, como acumulava outra fonte de renda, durante o dia, todo ano, ao declarar seus impostos, como legítimo cidadão portador de direitos e deveres, percebia que, enquanto ele trabalhava duro para ganhar uns trocados a mais, seus colegas de profissão só se preocupavam com suas atividades cotidianas e se regalavam no tempo restante.
            Curtiam sua vida sem outra preocupação que não a do trabalho único e, desse modo, viajavam, compravam bens móveis, iam a festas com amigos e familiares, participavam de eventos culturais, vestiam as melhores roupas, comiam, dormiam bem e, ao declarar seus impostos de renda, ainda recebiam um bom troco de restituição.
            Nosso amigo bitributado, ao contrário, deixava metade de seu salário para o leão; o restante era gasto com os médicos. É esse o preço que paga, em nosso país, quem faz do trabalho uma prioridade em sua vida.
            Já citei esse caso aqui, mas vou repeti-lo. Em determinado ano, nosso amigo foi convidado por um órgão do governo a fazer correções de milhares de provas, com a remuneração de centavos para cada redação corrigida. Passou por um treinamento de um mês e outros dois meses fez correções, dia e noite. Ao final, estava exausto, mas satisfeito por ter “colaborado com a educação de seu país”. O retorno financeiro era mínimo, mas servia para a compra dos remédios...
            O resultado foi que ele teve de pagar, naquele ano, ao leão, o dobro do que recebeu em remuneração ao seu trabalho, quando, se não o tivesse prestado, receberia o mesmo valor do serviço em restituição de imposto. Algo assim como: “recebi 2 mil, tinha de restituição quatro mil, mas como recebi 2 mil, tive que pagar 4 mil...”. Engraçado, não?
            Ri-se o leão, mas é por que não foi ele quem trabalhou três meses, como escravo...  
            É como diria um debochado amigo meu: — Quem manda...?
            Como diria meu amigo, o poeta Edgar Allan Poe:

(...)
"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!

            Sim, meu amigo, quem manda ser besta e estudar como um condenado para tentar construir uma sociedade melhor, se o primeiro a ser massacrado é você?
            Quem manda trabalhar que nem um cavalo para ser tratado com capim vulgar, enquanto os cavalos de raça são alimentados com feno importado?
            Quem manda votar em políticos que têm a ficha suja e passam a vida lesando a população para beneficiar seus parentes, amigos, gatos e cachorros? (Que a sociedade protetora dos animais me perdoe, não me refiro a estes.)
            Quem manda trabalhar para uma ave de rapina? (Também não é à que você pensa que me refiro, obviamente.)
            Agora inventaram uma faixa única na W3 e, se você quiser dobrar à direita, na altura da 711 Sul, para ter acesso ao setor hospitalar, ainda que não venha ônibus nenhum, será multado por um pardal oculto nesse trecho. Cuidado!
            Meu amigo estava atrasado para uma consulta médica, passou no lugar e, mais adiante, não pôde prosseguir por estar o trânsito bloqueado; então voltou a passar ali e, como da vez anterior, avançou a faixa para fazer o retorno, vez que não havia qualquer ônibus rodando ali. Resultado, um mês depois recebeu duas notificações de multa, emitidos pelo pardal oculto, que nem ao menos deu um pio de alerta ao infeliz.
            O canto da pardalada veio um mês depois, em forma de duas belas notificações do Detran.
            Se você for sócio de uma determinada instituição representante da lei em seu país e, ainda que pela primeira vez, deixar de votar nos candidatos à situação, meses depois receberá uma multa eleitoral. Abaixo o voto obrigatório!
            Ironicamente, meu amigo, de uma só vez, recebeu as três multas. Esse é pé frio mesmo.
            Mas em compensação, espera há cinco anos pelo pagamento de uns precatoriozinhos que ganhou na justiça. “— Oh, Deus; oh céus; oh, Lua;  oh, mar; ó Terra!”
            Tanto trabalho, tanta preocupação, tanto cuidado em não ser escorchado para, no fim, tudo continuar como dantes... E olha que nem me refiro aqui ao quartel de Abrantes.
            Hoje, como veem vocês, amigos e amigas, meu fígado está obnubilado.
            Chega de falar na Bavária.

         

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