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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014


Em dia com o Machado 92 (jlo)

 
            Aquela família de gatos tivera oito filhotes, um morrera ainda muito jovem, com poucos meses de idade. Falecera de um surto de varíola ocorrido na cidade de Pirapiranga- BA.
            A mãe era católica apostólico-espírita e o pai somente espírita, o que não os impediu de batizar e crismar todos os seus gatinhos na Igreja Católica, sob as bênçãos da água benta e do gato padre, que com eles e demais fiéis repartia pães e peixes...         
            Como moravam no interior, a vida era dura ali. O pai chamava-se Jean e a mãe, Sessi. Os filhotes foram batizados, por ordem da maior à menor idade como Tekinha, Raelte, Dinis, Charles, Pablo, Jau e Jack.
            Todos eram bons filhos, mas um, em especial, dava muito trabalho ao gato Jean: dom Dinis, como o pai costumava chamá-lo, em virtude de seu porte altivo e valente.
            Certo dia, quando dom Dinis ainda tinha quatro meses, seus irmãos mais velhos, Tekinha e Raelte, oito e seis meses, respectivamente, chegaram a casa miando desesperados.
            Da porta de sua casa, assustada, dona Sessi perguntou-lhes:
            — Mas o que está acontecendo aqui?
            — Dom Dinis está ali na esquina enfrentando sozinho três cachorrinhos vira-latas bem maiores que ele.
            — Chamem seus irmãos e vamos ajudá-lo, pois seu pai foi caçar ratos e ainda não voltou do trabalho até agora.
            Reunida a família, encontraram Dinis todo arrepiado, cercado de cães pelos três costados, mas com as garras de fora, pronto para arranhar o primeiro que se metesse com ele.    Contudo, ao verem outros seis gatos aproximarem-se em posição de ataque a eles, os três cãezinhos não pensaram duas vezes, ganindo de medo, saíram correndo.
            A família felina voltou para casa sã e salva, mas a partir desse dia Dinis ficou com a fama de valentão, embora nem ele se lembrasse do que acontecera naquela tarde ensolarada.
            Papai Jean, ao voltar a casa com o alimento da família, sabedor do acontecimento do dia, recomendou a Dinis:
            — Meu gatinho, papai o ama muito e não quer vê-lo brincando com gatos vadios da rua, muito menos brigando com cães, que são muito perigosos. Se você for pego desprevenido por um cão grande e feroz, suba na primeira árvore que encontrar, pois cachorros não sobem em árvore.
            — É claro, papai, que farei isso, não nasci ontem e não sou bobo.
            — Dom Dinis! Isso é modo de falar com seu pai? Não repita essa palavra; diga, está bem, papai... Vamos, fale!
            Como era tímido, mas tido como teimoso, Dinis ficou mudo, enquanto o pai insistia:
            — Fale, Dinis, o que lhe pedi, vamos...
            — Claro...
            — Claro, nãããooo, agora ficou escuro... Diga, apenas: “Está bem, papai...”
            Nada respondia o filhote, até que o pai, cansado de insistir, disse-lhe, amigavelmente, não sem antes ouvi-lo murmurar, quase inaudível: — Está bem... É claro...
            — Muito bem, não vou castigá-lo por uma bobagem dessas, mas comporte-se, seja educado, respeite seus pais, trate bem seus irmãos e não brinque com gatos moleques na rua, pois você já tem uma irmã e cinco irmãos para brincar. Não quero que as más influências estraguem a educação que lhes estou dando.
            Assim passou-se o tempo, com Dinis amando cada vez mais seu pai, mas observando que o velho gato já não tinha forças para alimentar a família e adoecera gravemente.
            Nem por isso, todavia, Jean deixava de conversar muito com alguns vizinhos de sua confiança, residentes poucas casas abaixo da sua. Em especial com um deles, pastor evangélico a quem muito admirava e era o chefe da única família de gatos de sua confiança, que também tivera sete gatos. Aliás, gatas, pois contrariamente à família de Jean e Sessi, a família do pastor era composta por seis gatinhas e apenas um gatinho.
            Com esses felinos, Jean deixava seus filhotes brincar livremente.
            Em especial quando ficaram mais velhos, à noite, as gatas e os gatos amiguinhos tinham o hábito de subir nos telhados das casas. Então miavam tanto que acordavam a vizinhança toda. Isso, porém, só aconteceria anos depois, quando Jean desencarnara após uma crise asmática e de pneumonia que o fizeram tossir e gemer dia e noite, durante vários meses.
            Os diálogos de Jean com Josias, o gato pastor, eram bem interessantes, pois cada um respeitava a crença do outro. Ambos, contudo, não se davam conta de que Dinis, alheio aparentemente às suas conversas, registrava e apoiava o que seu pai dizia:
            — Josias, admiro muito você e a educação que dá a sua família, mas, com todo o respeito, se Deus é bom e justo, como explicar que, numa vida tão curta como a nossa, haja no mundo tantas desigualdades? Como explicar a situação dos gatos de madame, que têm veterinários a sua disposição, as melhores comidas, nunca precisaram caçar ratos para se alimentar, vivem em casas confortáveis, cercados de carinhos e mimos, têm almofadas macias para arranhar e dormir, enquanto nós vivemos aqui, nessa dificuldade imensa, tendo que caçar rato todo dia para nos alimentar e à nossa família?
            — E ainda tendo que fugir dos cães das vizinhanças, que não são poucos, adoram nos perseguir e se divertem latindo quando nos veem em cima das árvores, sob os gritos e o riso das crianças e a indiferença dos adultos humanos... Dizia Josias.
            — É, meu amigo, como explicar que haja gatos que são adestrados pelos melhores profissionais, são alimentados com leite, além de peixe de primeira qualidade, ao passo que só nos resta caçar e comer ratos?
            — Há gatos que assistem, na TV, dos colos de seus donos, aos melhores programas, enquanto nós somos enxotados de casa, o tempo todo, por nossos patrões. Concordou Josias.
            — Há aqueles que passam o dia dormindo, comendo do bom e do melhor, têm as melhores companhias e todo o cuidado e amor a suas crias... Quanto a nós, nossos patrões nem nos agradecem quando os livramos dos ratos que infestam seus quintais e residências. Dizia Jean.     
            — Como se justifica isso? Refletia Josias.   
            — Ó dura escravidão! Só mesmo a reencarnação explica tantas diferenças. Concluía Jean.
            — E ainda há gatos que ou são mortos pelos próprios donos, que fazem churrasquinho deles, ou são devorados por cães, sem que seus proprietários liguem a mínima para isso... Confirmava Josias. Mas tudo isso está na vontade do Senhor, que temos de temer e obedecer. Louvado seja Deus! arrematava o pastor.
            Até que, um dia, Jean veio a falecer, após ouvir, em silencioso respeito, as preces que Josias fazia em seu benefício. Desencarnou aos nove anos, deixando Sessi viúva, com sete anos e sete filhotes ainda jovens para alimentar.
            Sessi, então, passou a trabalhar duro e contou com a ajuda de seus gatinhos e gatinha para continuarem a saga de sua última existência.
            Dom Dinis, porém, ao crescer, precisou ir para outras terras, onde se casou com uma gata profeta, teve treze filhotes e vários netos.
            Seus irmãos e irmã casaram-se e também tiveram filhotes e netos. Dinis, entretanto, nunca esquecera seu pai e jamais olvidara o esforço do velho para proporcionar à sua felina família uma educação primorosa.
            Aconteceu que, durante anos, Lulu, esposa de Dinis, que era médium, passara a receber mensagens espirituais do espírito do sogro Jean, as quais muito confortavam Dinis e o orientavam a bem educar seus filhos.
            Após anos de contato mediúnico, quando alguns gatos da família já estavam casados e tiverem filhotes, Dinis informou a sua nora que iria reencarnar, sem que dissesse em qual família iria renascer.
            Depois disso, nunca mais deu qualquer notícia do Além.
            Desde então, dom Dinis, entre uma e outra caça ao rato, passa dias e noites à sua procura, miando no claro ou no escuro, sem saber que o gato amado está tão perto...

 
            Nota machadiana: Essa é uma crônica de ficção. Qualquer semelhança com a realidade de seu leitor ou leitora e respectiva família é mera coincidência. Mas, como murmurou Galileu Galilei, ao ser obrigado a renegar, diante da Inquisição, sua crença de que a Terra se move em torno do Sol: E pur si muove.

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