Em dia com o Machado 197 (jlo)
Parafraseando
Cíntia Schwantes, como diria Jack, o estripador, “vamos por partes”. Segundo
meu ordinário (marche!) secretário
Joteli, em seu tempo de militar, ouviu de um colega de farda o seguinte relato:
–
Eu não queria servir ao Exército, mas como minha família era de prole numerosa,
com mãe viúva e sete filhos, incluindo eu, quatro deles ainda crianças e os
dois mais velhos com empregos salários-mínimos, alistei-me... No dia da
seleção, fui logo prevenindo o oficial encarregado das entrevistas sobre minha
situação, além de colocá-lo a par de uma otite crônica nos meus dois ouvidos.
–
E o que ele lhe respondeu? Perguntou Joteli, a quem passo a palavra daqui por
diante.
–
Só te dispenso do serviço militar obrigatório se voltares aqui com um atestado
médico que constate teu problema auditivo. (O cara era gaúcho, tchê.)
–
E em relação à sua condição social, o que ele disse?
–
Disse que, se eu já tinha outros dois irmãos mais velhos ajudando no sustento
da família, isso bastava. O Brasil precisava de mim. Além do mais, no quartel,
eu receberia alojamento, colegas que dormiriam comigo no alojamento, a farda,
comida, toalha de banho, banheiro com água fria e até um soldo de um salário
mínimo para as despesas próprias. Portanto, nada me faltaria.
–
Isso me faz lembrar o salmo 23 de Davi, Joteli: “O senhor é o meu pastor, e
nada me faltará...”
–
Posso continuar, Machado?
–
Em frente, Joteli. O que mais lhe
disse seu colega de farda?
–
Oliveira, este era seu nome de guerra, disse-me que, naquele momento, um
sentimento patriótico assomou seu espírito e ele, antes mesmo de aprender os
movimentos militares, tomou a posição de sentido, prestou continência ao
coronel, deu meia volta e... foi em...
frente! Anos depois, escreveria um poema intitulado “A marcha”, que recebeu
medalha de bronze em concurso nacional de poesia, promovido pela Revista Brasília, que nem sei se ainda
existe no Distrito Federal.
–
Mas, Oliveira, disse-lhe eu, por que você não levou um atestado médico?
–
Porque para quem estava desempregado, Joteli, na minha situação, as condições
oferecidas eram promissoras. Além disso, poderia, ao final do mês, repassar meu
soldo para minha mãe e dar-lhe mais uma ajuda no sustento de sua numerosa
prole.
–
Pelo que vejo, o serviço militar obrigatório lhe foi muito útil, Oliveira. Mais
alguma lembrança inesquecível?
–
Sim, Joteli. Dois anos depois, já engajado e pensando fazer “carreira” no
Exército, fui aprovado em concurso para sargento na área de comunicação. No ano
anterior, já fora aprovado no curso para cabo, em primeiro lugar dentre os
soldados inscritos, sem ter tido o prazer de colocar as divisas nos ombros. Mas
essa é outra história.
–
Muito bem! Concluído o curso, naturalmente, você pôde continuar em sua terra
natal e ajudar um pouco mais sua mãe.
–
Certo, quanto à segunda parte; errado na primeira, porque fui transferido para
Salvador, na Bahia. Como meu problema de otite crônica bilateral nunca havia
sido curado, depois de um ano nesse estado e nesse estado, compreendeu?, voltei ao Rio de Janeiro, de férias, e
busquei tratamento otorrinolaringológico no Hospital Central do Exército.
–
Muito bem! Com certeza, ante a gravidade do seu caso, o médico que o atendeu
recomendou sua transferência para perto da família, a fim de receber os
cuidados médicos e familiares, não é mesmo, Oliveira?
–
Quem me dera, Joteli! Era um coronel otorrino que, ao ouvir minha história,
ficou tão comovido que, antes de ordenar (Militar não pede, ordena.) a uma
enfermeira que fizesse uma lavagem nos meus dois ouvidos, alertou-me com as
seguintes doces palavras:
–
Sargento, não me venha com a tentativa do golpe da saúde para forçar sua
transferência para cá. Você não tem nada! Aproveite e lave a boca, além dos
ouvidos dele, enfermeira.
–
Gente boa, esse coronel, não é mesmo?
–
Com certeza! Décadas depois, soube que em meus ouvidos não poderia entrar uma
só gota d’água. Mas, como diz a música de Chico Buarque, transformada em peça
teatral: “Pode ser a gota d’água”... Prometi a mim mesmo que um dia eu voltaria
para agradecer ao nobre oficial por seus cuidados médicos.
–
E você voltou?
–
Estou voltando agora, quarenta anos
depois, nas asas dos devaneios literários. Ele lerá isto, tenho certeza, como
também foi certo o reencontro do seu amigo Machado com sua amada Carolina, após
transpostas as águas do rio Lete.
Ainda
em Salvador, após passar dias tratando soldados com febre alta, no quartel, fui
acometido de uma labirintite tão forte que perdi os sentidos e, quando
despertei, estava internado no Hospital Geral de Salvador, com um soro correndo
em minha veia do braço. Ao meu lado, o médico do quartel, quase chorando,
pediu-me perdão por não me ter dado atenção quando eu, dois dias antes, o procurei
para lhe dizer que, embora fosse dia de sol
a pino, via tudo às escuras...
Duas
semanas depois, tive alta e voltei às atividades normais do quartel. A otite
continuava... Firme! como um soldado
que recebesse ordens de seu superior, após o primeiro comando: Cobrir! No primeiro dia de alta,
retornando ao quartel, ao participar de uma marcha matutina, sob o comando do
tenente Cláudion, este percebeu
que eu marchava que nem um bêbado e gritou, para eu e a tropa ouvirmos:
–
Sargento Oliveira, acerte o passo!
Não
perdi tempo e lhe respondi:
–
O senhor não está vendo que estou com problema de equilíbrio, tenente?
Ao
que ele retrucou, ainda durante a marcha:
–
Sargento Oliveira, ao final do desfile, procure-me no meu posto de comando (PC).
Não
lhe dei resposta, nem também obedeci a sua ordem, mas, dias depois, soube do Raulindo, um velho sargento que me
tratava quase como um filho, que o tenente Cláudion
o procurara e lhe perguntara:
–
O que está acontecendo com o sargento Oliveira e por que ele não obedeceu à
minha ordem de ir falar comigo no meu PC?
Resposta
do Raulindo:
–
O Oliveira é um bom rapaz, mas não pisa
no calo dele não, pois ele vira uma fera.
Nunca
mais fiquei sabendo o que o tenente Cláudion
desejava falar comigo em seu PC, embora, por muito tempo, eu tivesse a
impressão de que, ao final do expediente, ao ser lida a ordem do dia, o sargenteante dissesse: “Quarta parte,
justiça e disciplina: fica detido no quartel, por trinta dias, o sargento
Oliveira por desacato ao comandante da companhia X”. Tal, porém, não ocorreu...
Por que será?
–
Oliveira, sentido! Como você se atreve a tanto?
–
Agora, quem entra na conversa sou eu, Joteli. Por que você fica remoendo essas
remotas histórias do Oliveira?
–
Então você não sabe que “água parada não move moinho”, Machado?
Vamos
em frente, Oliveira, faça de conta que sou seu analista do Rio, assim como
houve um “analista de Bagé”. Põe tudo para fora.
–
Sim, meu camarada! Da capital, fui transferido para o interior da Bahia, sem
que meu problema crônico de otite bilateral fosse descoberto. Até o dia em que,
recém-casado, fui encaminhado ao Hospital Geral do Exército em São Paulo, com
indicação cirúrgica, após ter sido descoberto, no Hospital das Forças Armadas,
em Brasília, que minha otite era proveniente de colesteatomas bilaterais
gigantes (sic).
–
Sei... lá em São Paulo você foi internado e, dias depois, operado de ambos os ouvidos,
já estava em casa, recuperado e nos braços da amada recém-casada...
–
Quisera, Joteli, quisera. Deixei minha mulher na casa de minha mãe, no Rio, e
fiquei aguardando atendimento médico, pacientemente, em enfermaria do hospital,
na companhia de outros colegas de farda. Após cerca de quinze dias, no último
final de semana em que, às sextas-feiras, ao término do expediente, todos
recebíamos uma dispensa para ficar com a família, vi que a enfermeira entregou
a autorização para saída a todos, menos a mim. Questionada, ela respondeu-me,
agressivamente, que eu não precisava de dispensa, pois passava o dia todo na
boa vida, só comendo, dormindo e lendo.
Revoltado,
disse-lhe poucas e boas, mas, hora depois, recebi a dispensa de uma raivosa
enfermeira. Meu pecado era simplesmente ser paciente por fora e doente por
dentro...
A
briga fora promissora. Na semana seguinte, fui levado ao centro cirúrgico para
o primeiro procedimento operatório.
Antes
de ser operado, seu namorado (sic), que era o coronel anestesista, indagou-me
sobre os motivos da briga com a enfermeira. Após minha breve explicação, sem eu
saber, até então, do seu relacionamento com a profissional da enfermagem,
contei-lhe minha versão rapidamente e chorei como criança, imaginando-me em
muito boas mãos, como de fato estava. Nada senti, nem antes, nem após o ato cirúrgico.
É
bem verdade que a cirurgia não resolveu
meu problema, mas que fui muito bem tratado ali, lá isso é certo. Tão certo
que, após a operação, ao se saber que eu não possuía recursos para levar minha
esposa do Rio de Janeiro para o hospital onde me encontrava internado,
reservaram-nos um quarto particular e pude ficar em sua companhia até o dia de
minha alta hospitalar.
–
Mas como você conseguiu sobreviver no estado em que estava?
–
Mistérios de Deus, Joteli, mistérios divinos... Transferido para Brasília, a
meu pedido, um ano depois, ali descobriram os tumores que me levaram a tanta
guerra, ainda que em tempo de paz. Meses após, fui internado mais duas vezes
para cirurgia nos ouvidos. Na primeira, operado por uma cirurgiã famosa, no
Hospital das Forças Armadas, despertei da anestesia geral em pleno procedimento
cirúrgico e, enquanto sentia uma serra cortar o colesteatoma, ouvia a conversa
da cirurgiã com o oficial anestesista. Em dado momento, a médica lhe disse:
–
Ele está acordado, pois está se mexendo muito...
Nada
mais ouvi. Quando despertei, antes que me fosse perguntado algo, relatei,
chorando, que havia sentido tudo o que ocorrera no ato cirúrgico. Então, tornei
a “dormir”. Até hoje, lembro-me, emocionado, do carinho recebido dos militares
responsáveis por minha cirurgia naquele dia inesquecível. Nem uma palavra de
justificativa ou pedido de desculpa!
–
Sei... mas o importante é que você ficou curado.
–
Com certeza. Nunca mais tive nada no ouvido esquerdo, nem mesmo a audição.
–
E o outro ouvido?
–
O ouvido direito foi operado, cerca de três anos depois, por um famoso
cirurgião, no mesmo hospital.
–
E correu tudo bem com a anestesia e cirurgia?
–
Sim, pois antes de ser operado, o novo anestesista conversou comigo e eu lhe
pedi que tivesse um pouco mais de cuidado com o procedimento anestésico, após
lhe contar, rapidamente, o que ocorrera na cirurgia anterior.
–
E a audição?
–
Nem o cirurgião entende o que aconteceu, pois, embora minha “oficina auditiva”
tenha sido removida, preservei cerca de 70% da audição desse ouvido, se é que pode
dizer isso quem usa aparelho auditivo há muito tempo na orelha direita.
É
por isso que detesto a esquerda!
Nada
mais disse Oliveira e nada mais lhe perguntei, ó Machado.
–
É o que eu sempre digo, Joteli, enquanto elementos
estúpidos como você e esse seu colega não se calarem, a democracia estará
salva.
–
Mas ainda acho, Bruxo, que uma intervenção militar como a ocorrida em sua época
e narrada em sua crônica, na Argentina, quando os militares afastaram os
governantes corruptos e entregaram o governo aos civis, é o ideal para o
Brasil. O que você fala agora sobre isso?
–
Os mortos não falam, meu caro Joteli...
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