Em dia com o Machado 226 (jlo)
Jenecídio
era um grande empresário e morava com a família em condomínio de luxo. Tudo
corria bem em sua vida, até o dia em que sua empresa começou a dar prejuízo. No
início, ele não deu muita importância ao caso. Afinal, em anos anteriores, já
ocorrera o mesmo fenômeno. O El Niño
chegava, o calor aumentava e as pessoas guardavam seus guarda-chuvas.
E
Jenecídio fabricava e vendia guarda-chuvas.
Acontece
que, na cidade baiana de Senhor do Bonfim, quase não chovia, embora, à noite,
costumasse fazer um friozinho. Então, Jenecídio optou por também vender roupas
de frio.
Foi
quando sua mulher foi à igreja local orar pelo sucesso nos negócios da família.
De
volta a casa, inspirada pelo Senhor do Bonfim e pelo sermão do padre, sugeriu
ao esposo a mudança do ramo de negócio. Afinal, suas filhas de sete e oito anos
precisavam manter o padrão elevado de vida e, na cidade, pouco se usavam roupas
de inverno, pois residiam no sertão nordestino onde o clima era quente e seco.
Sugeriu-lhe,
então, Jacina, a esposa, trocar seu negócio para fábrica de chocolates, pois a
produção local de cacau era boa, o que motivou o apelido da cidade de Suíça do
Nordeste.
Em
resposta, o marido disse-lhe que tal comércio já possuía muita concorrência
local, e a venda de roupas de frio dava-lhe um bom retorno financeiro nos meses
em que não havia seca. Ademais, detestava esse negócio de religião.
Nesse
ano, porém, a estiagem já durava dez meses, e nenhuma peça de roupa fora
vendida por Jenecídio nos últimos seis meses. Os dias passavam, as contas
chegavam e, quando a reserva financeira da família acabou, Jenecídio, como
tantas pessoas sem esperança, neste mundo e no outro, tomou uma decisão
radical.
No
dia seguinte, seu corpo foi encontrado dentro do poço seco de dez metros de
profundidade, depois que a esposa ligou para o corpo de bombeiros, suplicando
desesperada a localização do marido sumido
de casa na noite anterior.
Sobre
a cama vazia, um bilhete, escrito por ele, continha as seguintes palavras:
Senhor
do Bonfim, BA, 5 de outubro de 2013.
Querida
Jacina,
Antes
de mais nada, quero lhe dizer que a amo muito, tanto quanto nossas meninas.
Quando
você acordar e ler esta missiva, já não mais estarei neste mundo. Mergulho no
nada, para sempre.
Há
três anos, pensando no seu futuro e no porvir das nossas filhas, fiz um seguro
de vida, no Banco da Bahia, no valor de X, que resolverá todos os problemas
financeiros de nossa loja e ainda permitir-lhe-á mudar o ramo de negócio para a
sua tão sonhada fábrica de chocolates.
Meu
corpo será encontrado no fundo do poço, como ocorre, atualmente, com nossa
economia.
Perdoe-me
e adeus!
Tão
logo o corpo de Jenecídio fora encontrado, caiu uma chuva tão intensa, em
Senhor do Bonfim, que seu poço transbordou. Três meses após o funeral do
esposo, a viúva, morta de saudades, procurou um famoso médium baiano, em
Salvador, que psicografou e lhe entregou a seguinte carta do Além:
Querida
Jacina,
Como
fui estúpido. A vida continua em outra dimensão, e eu desconhecia esta realidade.
Por
que não esperei mais um pouco? Com o retorno das águas, vejo agora que você
vendeu todo o estoque de roupas e guarda-chuvas, pois a nossa loja não tem
concorrência no ramo.
O
grande erro de minha vida foi nunca ter uma crença que me desse a certeza da
sobrevivência da alma após a morte do corpo físico. Quando ignoramos a
realidade do mundo metafísico, e cometemos o suicídio, as consequências são
terríveis.
Não
estamos mais no corpo de carne, porém nossos sentidos são mais apurados.
Comigo
foi assim. A sensação da queda e do impacto do meu corpo, no fundo do poço, foi
terrível e parecia repetir-se eternamente. Sentia-me caindo, no vão escuro, e a
cabeça dividindo-se em mil pedaços... Então, gritava inutilmente por socorro, pois tão logo
chegava ao fim da queda novamente via-me projetando no vazio. E tudo recomeçava
por vezes incontáveis.
Quando
os bombeiros içaram meu corpo sem vida, dez horas após meu tresloucado gesto
suicida, graças ao seu apelo desesperado, parecia-me já estar ali há anos,
sempre com a mesma sensação de queda no vazio e o crânio se estilhaçando ao
tocar o fundo, para depois todo esse horror recomeçar.
Você
fez, então, uma sentida e sofrida prece por mim, e isso foi o que me aliviou.
Entretanto, tão logo cheguei ao solo superior, percebi que seres semelhantes a monstros
terríveis, verdadeiros vampiros, se aproximavam de meu corpo inerte, mas ao
qual eu me sentia prisioneiro.
Eles
então riam, pulavam em cima e em volta de mim e gritavam: — Suicida! Suicida!
Outros
completavam: — Suguemos-lhe o sangue enquanto está quente!
Senti
também suas bocas se fecharem sobre minha garganta e, com suas presas enormes,
sugarem minhas energias. Eu queria gritar, mas não podia. Queria fugir, mas
estava paralisado.
Assim
se passaram os dias. Fui transportado pela malta para um lugar estranho e
tenebroso e ali fiquei à mercê de todos esses Espíritos das trevas, até o dia
de hoje, quando fui trazido aqui por uma corrente luminosa, que me arrebatou
das garras de meus algozes. Eram as energias das preces desse médium extraordinário,
aliadas às suas e às das pessoas bondosas que aqui estão. Obrigado, meu Deus!
Agora,
uma senhora belíssima, com hábito de freira e intensa luz, diz-me que, daqui,
serei transportado para um hospital espiritual, onde ficarei submetido a tratamento
de recomposição do perispírito (corpo espiritual) que eu mesmo afetei, com
minha atitude insana.
Ali
passarei alguns meses em tratamento, quando então deverei fazer parte da equipe
de suicidas em reabilitação e cooperação no socorro de outros Espíritos
criminosos, que violaram a Lei de Deus, nosso Criador, o qual nos destinou à
perfeição da vida eterna, mas com a condição de que “a cada um seja dado
segundo as suas obras”, consoante as palavras de Jesus Cristo, como vim a saber
aqui.
Beije
nossas filhas, Carmecita e Concita, perdoe meu ato insano e ore por mim.
Adeus,
sejam felizes!
Amigo
leitor, quando a Humanidade estiver plenamente ciente das consequências do
suicídio, cena como esta não mais ocorrerá, pois a certeza de que não há morte
e de que nossos mínimos atos nos trazem consequências boas ou más, segundo a
direção que lhes damos, fará com que escolhamos sempre a vida, nunca a morte,
seja ela a nossa ou de outrem.
Abraço
do amigo “Machado de Assis”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário