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sábado, 1 de junho de 2013


Em dia com o Machado 52 (jlo)

 
            Amigos leitores, boa-noide!

            Vamos começar a falar hoje sobre um assunto que interessa a toda a humanidade: a publicação, na França, em 1864, da obra O Evangelho Segundo o Espiritismo. Faremos também um paralelo entre o que ocorreu antes e a partir dessa data, em nossa vida de mulatinho pobre, nascido no morro do Livramento, no Rio de Janeiro. Na época do lançamento do livro citado, estávamos com 25 anos e já ensaiávamos voos, rasteiros embora, pela literatura brasileira.

            Não foi a primeira obra espírita de que se tem conhecimento. Antes dela, publicou Hippolyte-Léon-Denizard Rivail, mais conhecido como Allan Kardec, O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns.

            O Evangelho Segundo o Espiritismo veio coroar as duas primeiras obras. Daqui do além, minha preferência de leitura é a desse livro, complemento natural do Evangelho de Jesus, do qual extraiu sua parte principal: a lei moral. Eis o que diz Kardec:

Podem dividir-se em cinco partes as matérias contidas nos Evangelhos: os atos comuns da vida do Cristo; os milagres; as predições; as palavras que foram tomadas pela Igreja para fundamento de seus dogmas; e o ensino moral. As quatro primeiras têm sido objeto de controvérsias; a última, porém, conservou-se constantemente inatacável. Diante desse código divino, a própria incredulidade se curva. É terreno onde todos os cultos podem reunir-se, estandarte sob o qual podem todos colocar-se, quaisquer que sejam suas crenças, porquanto jamais ele constituiu matéria das disputas religiosas, que sempre e por toda a parte se originaram das questões dogmáticas. Aliás, se o discutissem, nele teriam as seitas encontrado sua própria condenação, visto que, na maioria, elas se agarram mais à parte mística do que à parte moral, que exige de cada um a reforma de si mesmo.

Falemos um pouco sobre os atos comuns de nossa vida machadiana, figurados, literariamente, em parte, no texto de “Contos de escola”. Dizia ali que, embora me custasse dizer, era um dos alunos mais sabidos da escola e não quis afirmar ser também o mais inteligente, por escrúpulo consciencial. Afinal, a sabedoria começa pela humildade. Concluamos com Memorial de Aires, romance final de nossa vida que expressa muito do nosso temperamento e convívio social.

Quanto tempo estive na escola? Agora posso dizê-lo, pois não mais estou preso aos liames materiais: o tempo suficiente para aprender as quatro operações da aritmética, ler e escrever razoavelmente.

A partir de então, percebi que, se continuasse ali, acabaria expulso do colégio, pois tudo o que a professora ensinava era muito pouco em relação ao que aprendia por mim mesmo. Assim, com minha impaciência, acabei por criar-lhe algum constrangimento, vez que meus coleguinhas mais inteligentes tinham imensa dificuldade para entender o que por mim já era lido, tido e sabido. Conclusão: saí da escola e tornei-me autodidata.

Passei então a fazer o seguinte: todo dia acordava bem cedo, fazia minha higiene, tomava café com pão, punha minha melhor roupa, presente de minha madrinha e anjo da guarda, e partia para a Biblioteca Municipal, onde devorava os periódicos e livros de literatura da incipiente poesia e prosa nacionais, assim como, mais tarde, também obras lusitanas, francesas e inglesas.

— Você não brincava, como as outras crianças?

— Minha brincadeira preferida passou a ser a de professor de uma escolinha que criei, frequentada por meus amigos da quinta onde éramos agregados e os vizinhos das redondezas. A matéria preferida era o português, com ênfase na leitura de clássicos da literatura e na produção de textos literários. De início, a poesia.

Mas desde cedo, precisei trabalhar para ajudar meu pai e madrasta, Maria Inês, no sustento de casa. Então, fui caixeiro, mas não me saí bem nessa profissão e, três dias depois, demiti-me; algum tempo depois, fui vendedor de doces, fabricados por Maria Inês, numa escola pública em S. Cristóvão, local para o qual nos mudamos após o falecimento paterno.

Em S. Cristóvão, o forneiro da padaria de madame Gallot era francês, e com ele iniciei meus conhecimentos práticos dessa língua. Após ter feito amizade com algumas pessoas cultas e ser presenteado por minha madrinha com uma bíblia, da qual me tornei voraz leitor, passei um tempo como coroinha do padre da igreja da Lampadosa. Com ele, aprofundei meus conhecimentos do idioma francês.

Aos dezesseis anos, publiquei, na revista Marmota, de Paula Brito, o poema “Ela”. Contratado por esse mulato solidário, passei a colaborar com sua revista e a ter contato com os jovens escritores da época: Teixeira e Sousa, Manuel Antônio de Almeida, que me contrataria para trabalhar, como tipógrafo, na Imprensa Nacional. Por fim também conheci José de Alencar, entre outros moços talentosos da literatura brasileira.

Agora, os milagres: o primeiro deles foi ter sobrevivido à época de epidemias que levou para o além todos os meus familiares; o segundo foi o de, aos 25 anos, época de surgimento de O Evangelho Segundo o Espiritismo, eu publicar Crisálidas, livro de poesia medíocre, que, entretanto,  junto a outras publicações de igual quilate, tornaram-me, como poeta, anos depois, um grande prosador e romancista.

Como diria o poeta Tomaz Antônio Gonzaga: “Graças, Marília bela, graças à minha estrela”.

As predições estão em algumas de minhas crônicas que, segundo Gustavo Corção, têm o espírito de eternidade, por submeterem os fatos históricos do século XIX ao aspecto de atemporalidade. Querem exemplos? Numa de minhas crônicas, previ que o carnaval iria acabar (História de Quinze Dias, 15 fev. 1877). Hoje, essa festa pagã, no Brasil, não só continua cada vez melhor, como é sinônimo de cultura que atrai as atenções do mundo inteiro. Mas que o nosso carnaval de rua já não é o mesmo, lá isso é verdade...

Noutra crônica, anunciei o Espiritismo como uma doutrina de loucos (Bons Dias!, 7 jun. 1889). A Doutrina de Kardec, para minha vergonha, está renovando a concepção de religião no Brasil e no mundo, sem pretender substituir nenhuma crença, sem imposição, com humildade, amor e os mais eloquentes testemunhos de devotamento ao próximo e abnegação. Esse é o verdadeiro sentido da caridade. Esse foi, talvez, o meu maior vexame, como já lhes disse daqui do além.

Mas também previ acontecimentos futuros que vêm se concretizando de fato. Vejam minhas crônicas sobre a educação falida no Brasil (História de 15 Dias: Analfabetismo, 15 ago. 1876); sobre o progresso, o desaparecimento do bonde e de alguns costumes cariocas (crônica de 1º de jan. 1877 em História de Quinze Dias); sobre a inconstitucionalidade dos impostos (Balas de Estalo, 16 maio 1885); sobre o conceito de política (Balas de Estalo, 8 jul. 1885); e sobre o vegetarianismo (A Semana, 5 mar. 1893).

Com relação às palavras que foram utilizadas nos fundamentos dogmáticos, só tenho a lamentar a confusão que meus biógrafos fizeram, ao me atribuírem, no fim de minha vida física na Terra, uma profunda descrença na existência de Deus e da vida espiritual. Confundiram o escritor com o autor. Afastei-me sim, da Igreja Católica, em virtude de não aceitar seus dogmas e rituais pagãos, contrários à mensagem de Jesus Cristo. Cheguei mesmo a recusar a extrema unção de um padre no leito da morte. Entretanto, com leitor assíduo da Bíblia, nunca deixei de ser cristão.

Por fim, o ensino moral. Para não cansar o leitor, remeto-o à “Carta ao Sr. Bispo do Rio de Janeiro”, de 18 abr. 1862, e “A Paixão de Jesus”, de 1 abr. 1904, publicados em Miscelânia, vol III de Machado de Assis, obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1973.

Em complemento ao ensino moral, relato meu grande amor à Carolina, expresso neste soneto, que também exprime minha fé e esperança na vida post mortem:

 

Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas desta longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

 
Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs o mundo inteiro.

 
Trago-te flores – restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.

 
Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.

 
(ASSIS, Machado de. À Carolina. 1906)

 
            Lembro, por fim que, em carta a Joaquim Nabuco, datada de 20 de novembro de 1904, ano em que desencarnou minha querida Carola, expresso ao amigo minha fé na vida espiritual com estas frases finais: “Tudo me lembra a minha meiga Carolina. Como estou à beira do eterno aposento, não gastarei muito tempo em recordá-la. Irei vê-la, ela me esperará [...]”.

            Até a próxima, amigas!

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