Em dia com o Machado 52 (jlo)
Amigos leitores, boa-noide!
Vamos começar a falar hoje sobre um
assunto que interessa a toda a humanidade: a publicação, na França, em 1864, da
obra O Evangelho Segundo o Espiritismo.
Faremos também um paralelo entre o que ocorreu antes e a partir dessa data, em
nossa vida de mulatinho pobre, nascido no morro do Livramento, no Rio de
Janeiro. Na época do lançamento do livro citado, estávamos com 25 anos e já
ensaiávamos voos, rasteiros embora, pela literatura brasileira.
Não foi a primeira obra espírita de
que se tem conhecimento. Antes dela, publicou Hippolyte-Léon-Denizard Rivail,
mais conhecido como Allan Kardec, O Livro
dos Espíritos e O Livro dos Médiuns.
O
Evangelho Segundo o Espiritismo veio coroar as duas primeiras obras. Daqui
do além, minha preferência de leitura é a desse livro, complemento natural do Evangelho de Jesus, do qual extraiu sua
parte principal: a lei moral. Eis o que diz
Kardec:
Podem
dividir-se em cinco partes as matérias contidas nos Evangelhos: os atos comuns da vida do Cristo; os milagres; as
predições; as palavras que foram tomadas pela
Igreja para fundamento de seus dogmas; e o
ensino moral. As quatro primeiras têm sido objeto de controvérsias; a
última, porém, conservou-se constantemente inatacável. Diante desse código
divino, a própria incredulidade se curva. É terreno onde todos os cultos podem
reunir-se, estandarte sob o qual podem todos colocar-se, quaisquer que sejam
suas crenças, porquanto jamais ele constituiu matéria das disputas religiosas,
que sempre e por toda a parte se originaram das questões dogmáticas. Aliás, se
o discutissem, nele teriam as seitas encontrado sua própria condenação, visto
que, na maioria, elas se agarram mais à parte mística do que à parte moral, que
exige de cada um a reforma de si mesmo.
Falemos um pouco sobre os atos comuns de nossa vida machadiana, figurados,
literariamente, em parte, no texto de “Contos de escola”. Dizia ali que, embora
me custasse dizer, era um dos alunos mais sabidos da escola e não quis afirmar
ser também o mais inteligente, por escrúpulo consciencial. Afinal, a sabedoria
começa pela humildade. Concluamos com Memorial
de Aires, romance final de nossa vida que expressa muito do nosso
temperamento e convívio social.
Quanto tempo estive na escola? Agora
posso dizê-lo, pois não mais estou preso aos liames materiais: o tempo
suficiente para aprender as quatro operações da aritmética, ler e escrever
razoavelmente.
A partir de então, percebi que, se
continuasse ali, acabaria expulso do colégio, pois tudo o que a professora
ensinava era muito pouco em relação ao que aprendia por mim mesmo. Assim, com
minha impaciência, acabei por criar-lhe algum constrangimento, vez que meus
coleguinhas mais inteligentes tinham imensa dificuldade para entender o que por
mim já era lido, tido e sabido. Conclusão: saí da escola e tornei-me
autodidata.
Passei então a fazer o seguinte: todo
dia acordava bem cedo, fazia minha higiene, tomava café com pão, punha minha
melhor roupa, presente de minha madrinha e anjo da guarda, e partia para a
Biblioteca Municipal, onde devorava os periódicos e livros de literatura da
incipiente poesia e prosa nacionais, assim como, mais tarde, também obras
lusitanas, francesas e inglesas.
— Você não brincava, como as outras
crianças?
— Minha brincadeira preferida passou a
ser a de professor de uma escolinha que criei, frequentada por meus amigos da
quinta onde éramos agregados e os vizinhos das redondezas. A matéria preferida
era o português, com ênfase na leitura de clássicos da literatura e na produção
de textos literários. De início, a poesia.
Mas desde cedo, precisei trabalhar para
ajudar meu pai e madrasta, Maria Inês, no sustento de casa. Então, fui
caixeiro, mas não me saí bem nessa profissão e, três dias depois, demiti-me;
algum tempo depois, fui vendedor de doces, fabricados por Maria Inês, numa
escola pública em S. Cristóvão, local para o qual nos mudamos após o
falecimento paterno.
Em S. Cristóvão, o forneiro da padaria
de madame Gallot era francês, e com ele iniciei meus conhecimentos práticos
dessa língua. Após ter feito amizade com algumas pessoas cultas e ser
presenteado por minha madrinha com uma bíblia, da qual me tornei voraz leitor,
passei um tempo como coroinha do padre da igreja da Lampadosa. Com ele,
aprofundei meus conhecimentos do idioma francês.
Aos dezesseis anos, publiquei, na
revista Marmota, de Paula Brito, o poema “Ela”. Contratado por esse mulato
solidário, passei a colaborar com sua revista e a ter contato com os jovens
escritores da época: Teixeira e Sousa, Manuel Antônio de Almeida, que me
contrataria para trabalhar, como tipógrafo, na Imprensa Nacional. Por fim
também conheci José de Alencar, entre outros moços talentosos da literatura
brasileira.
Agora, os
milagres: o primeiro deles foi ter sobrevivido à época de epidemias que
levou para o além todos os meus familiares; o segundo foi o de, aos 25 anos,
época de surgimento de O Evangelho
Segundo o Espiritismo, eu publicar Crisálidas,
livro de poesia medíocre, que, entretanto, junto a outras publicações de igual quilate, tornaram-me,
como poeta, anos depois, um grande prosador e romancista.
Como diria o poeta Tomaz Antônio
Gonzaga: “Graças, Marília bela, graças à minha estrela”.
As predições estão
em algumas de minhas crônicas que, segundo Gustavo Corção, têm o espírito de
eternidade, por submeterem os fatos históricos do século XIX ao aspecto de
atemporalidade. Querem exemplos? Numa de minhas crônicas, previ que o carnaval
iria acabar (História de Quinze Dias, 15 fev. 1877). Hoje, essa festa pagã, no
Brasil, não só continua cada vez melhor, como é sinônimo de cultura que atrai
as atenções do mundo inteiro. Mas que o nosso carnaval de rua já não é o mesmo,
lá isso é verdade...
Noutra crônica, anunciei o Espiritismo
como uma doutrina de loucos (Bons Dias!, 7 jun. 1889). A Doutrina de Kardec,
para minha vergonha, está renovando a concepção de religião no Brasil e no
mundo, sem pretender substituir nenhuma crença, sem imposição, com humildade,
amor e os mais eloquentes testemunhos de devotamento ao próximo e abnegação.
Esse é o verdadeiro sentido da caridade. Esse foi, talvez, o meu maior vexame,
como já lhes disse daqui do além.
Mas também previ acontecimentos futuros
que vêm se concretizando de fato. Vejam minhas crônicas sobre a educação falida
no Brasil (História de 15 Dias: Analfabetismo, 15 ago. 1876); sobre o progresso,
o desaparecimento do bonde e de alguns costumes cariocas (crônica de 1º de jan.
1877 em História de Quinze Dias); sobre a inconstitucionalidade dos impostos (Balas
de Estalo, 16 maio 1885); sobre o conceito de política (Balas de Estalo, 8 jul.
1885); e sobre o vegetarianismo (A Semana, 5 mar. 1893).
Com relação às palavras
que foram utilizadas nos fundamentos dogmáticos, só tenho a lamentar a
confusão que meus biógrafos fizeram, ao me atribuírem, no fim de minha vida
física na Terra, uma profunda descrença na existência de Deus e da vida
espiritual. Confundiram o escritor com o autor. Afastei-me sim, da Igreja
Católica, em virtude de não aceitar seus dogmas e rituais pagãos, contrários à
mensagem de Jesus Cristo. Cheguei mesmo a recusar a extrema unção de um padre
no leito da morte. Entretanto, com leitor assíduo da Bíblia, nunca deixei de
ser cristão.
Por fim, o
ensino moral. Para não cansar o leitor, remeto-o à “Carta ao Sr. Bispo
do Rio de Janeiro”, de 18 abr. 1862, e “A Paixão de Jesus”, de 1 abr. 1904,
publicados em Miscelânia, vol III de Machado
de Assis, obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1973.
Em complemento ao ensino moral, relato
meu grande amor à Carolina, expresso neste soneto, que também exprime minha fé
e esperança na vida post mortem:
Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas desta longa vida,Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.
Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs o mundo inteiro.
Trago-te flores – restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidosE ora mortos nos deixa e separados.
Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,São pensamentos idos e vividos.
(ASSIS, Machado de. À Carolina. 1906)
Lembro,
por fim que, em carta a Joaquim Nabuco, datada de 20 de novembro de 1904, ano
em que desencarnou minha querida Carola, expresso ao amigo minha fé na vida
espiritual com estas frases finais: “Tudo me lembra a minha meiga Carolina.
Como estou à beira do eterno aposento, não gastarei muito tempo em recordá-la.
Irei vê-la, ela me esperará [...]”.
Até a
próxima, amigas!
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