Em dia com
o Machado 109 (jlo)
Não
adianta, o povo não aceita a linguagem do povo. Ele quer é falar bonito, quando
não, difícil, ainda que não entenda e nem seja entendido, ainda que desconheça
o significado de todas as palavras que o dotô
diga. Mas em geral há comunicação...
—
Dotô eu tô cuma dô de cabeça, o sinhô tem
navagina pra mim dá? Disse uma paciente do interior que recebia a visita do
médico em atendimento pelo Funrural (fundo de saúde que atende esporadicamente
as regiões pobres do interior brasileiro).
Em
seguida, outra disse ao dentista:
—
Meu dente dói muito dotô. O sinhô pode
distraí ele?
Ao
final dos atendimentos: dúzias de ovos e de bananas, sacos de laranja, galinhas
caipiras, cocos eram ofertados com gratidão a enfermeiros, médicos e dentistas,
seus benfeitores, por aquelas pessoas do interiorrrr.
Não
faz muito tempo (apenas 141 anos), quando me referi à língua, no final de meu
artigo conhecido como “Instinto de nacionalidade”, critiquei a falta da pureza
da linguagem dos nossos livros.
Alguns
defeitos graves relacionados por este articulista àquela época: “solecismos da
linguagem comum” e o galicismo excessivo. O primeiro caracteriza-se pelos erros
de concordância, de regência, de colocação pronominal, etc. O segundo é fruto
do espírito acomodatício de alguns falantes do francês que, por preguiça, ou mesmo
por exagero de princípio mantêm a palavra no original francófono. Exemplo: o
uso da palavra francesa desencarne,
em vez de desencarnação. Para muitos, pura bobagem, o que importa é a
comunicação. (Primeira rima.)
E
como o Brasil, parodiando a frase do meu prezado amigo Humberto de Campos, é o
coração do mundo, a pátria da pureza de todas as línguas, menos da pureza da
sua, o brasileirismo do meu tempo não é o do seu, meu caro leitor. Atualmente,
com a influência dos estudos linguísticos, tenta-se igualar, em termos de fala
ou escrita, a língua do povo com a dos doutos. Irrisão pura. Os cursinhos,
concursos, livros técnicos, periódicos, escolas e academias continuam aceitando
como padrão unicamente a chamada norma culta, para desespero dos linguistas,
que não convencem nem mesmo os simples de que a sua é uma linguagem correta.
Posso
na prática exemplificar, se o leitor exigente o desejar. (Segunda rima em dois
decassílabos.)
Nem
tudo, porém, está perdido. Eis que a literatura vem, contemporaneamente,
resgatar o uso da linguagem do povo, coadjuvada pelas composições musicais
populares. E isso é um espanto, para os puristas da linguagem. Inaceitável,
gritam do alto do seu soberbo saber sacripanta. (Alta aliteração.)
Veja,
nobre leitor, por exemplo, esta estrofe de “Garota na chuva”, cantada por Ednéia
Macedo, que primor:
Garota na chuva
ou no verão,Garota na chuva são as quatro “estação”,
Garota na chuva ou no verão,
Garota na chuva,
A maior sensação.
A Ednéia canta e encanta... Mas vai você escrever assim no vestibular de qualquer universidade para ver se não receberá um rotundo zero em sua redação.
Com
a intolerância ou não dos conservadores, porém, eis que a literatura da
pós-modernidade coloca de ponta cabeça tudo o que de antanho era considerado
irretocável. E novo cânone literário surge no horizonte para ficar eternamente
conosco, como também nos prometera o Profeta sobre o Espírito de Verdade (S.
João, 14:16, 17).
Meu
caro, se a voz do povo fosse a voz de Deus, o Cristo não seria crucificado.
Repito
o que disse antes sobre a inexistência de dúvida em relação ao aumento e
alteração da língua, com o uso consuetudinário e os costumes da nação. Riqueza
de dizer, novas locuções entram no domínio estilístico e adquirem direito de
cidadania.
Só
não é aceitável que se olvidem as normas sintáticas e se descumpra o VOLP*, da
ABL*, fundada e presidida por mim, tão zelosa da pureza idiomática. Afinal de
contas, repito pela última vez:
A influência popular tem um limite; e o escritor não
está obrigado a receber e dar curso a tudo o que o abuso, o capricho e a moda
inventam e fazem correr. Pelo contrário, ele exerce também uma grande parte de
influência a este respeito, depurando a linguagem do povo e aperfeiçoando-lhe a
razão.
A não ser que esteja tratando da literatura brasileira
contemporânea. Nesse caso, o buraco é mais embaixo, respeitável leitor.
Vem-me à mente os versos do heteronímico Fernando Pessoa
em Mar Português: “Valeu a pena? Tudo
vale a pena/ Se a alma não é pequena”.
Quanto ao que disse alhures sobre a pouca leitura dos
clássicos, continua da mesma forma: pouca leitura, muita besteira na internet.
Outrora, afirmara que “cada tempo tem o seu estilo”.
Hoje, porém, que evoluí, participo da opinião daqueles
que pensam o contrário. No mundo atual, todos os estilos têm seu lugar no
espaço.
O que permanece inalterável, em minha fala, é a
questão da precipitação na elaboração de textos, pelos nossos escritores
contemporâneos. Por que dizer em dez páginas o que pode ser dito em dez linhas?
E, se há intenção de igualarem-se as criações do
espírito com as da matéria, atualmente, com toda a autoridade de espírito
liberto da matéria, afianço-lhes que isso é inconciliável. Podemos até dar a
volta ao mundo em oito horas, mas para se produzir algo original e de alto
interesse literário é necessário um pouco mais de tempo.
Vivo o espírito, suavidade e sublimidade sentimental,
estilo gracioso aliado aos dotes de observação e crítica, gosto por vezes
duvidoso, pouca reflexão e staccato,
impureza eventual do idioma, intensa cor local...
Enfim, nada
disso importa mais em nossa produção literária, que desde os anos setenta do
século XIX, salvo raras exceções, ingressou nesta bosta política que vemos na
atualidade: o instinto de nacionalidade mistura a lei de gérson com a mediocridade,
a corrupção, a ausência de autoridade, o nepotismo e o apadrinhamento. (Últimas
rimas.)
Enfim, tudo pode ser objeto da literatura, a política,
principalmente.
Em “O passado, o presente e o futuro da literatura” (A Marmota, 9 e 23 abr. 1858), eu disse
que “Uma revolução literária e política fazia-se necessária”.
Alguma novidade política em relação ao que era antes,
leitor?
E eis que o futuro se faz presente.
Qual!
VOLP*
- Vocabulário Ortográfico da Língua
Portuguesa.
ABL*
– Academia Brasileira de Letras.
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