Em dia com o Machado 392:
A Comunidade dos Bichos (Jó)
Eu
estava dormindo ontem à noite, quando fui acordado por uma voz bem conhecida.
Era Machado, que foi logo me cumprimentando:
— Boa noite,
Jó, deixei-te à vontade, por algum tempo, mas hoje, passando por aqui, resolvi
contar-te uma fábula, que Esopo não teve tempo de narrar ainda em vida, mas
que, consultando os arquivos do Mundo Espiritual, percebi a beleza da história.
Quer ouvi-la?
— Bom
dia, amigo Bruxo, será um prazer escutar-te.
— Bem no
centro do lado setentrional da linha do Equador, da Floresta Amazônica, existe
uma comunidade de bichos jamais descoberta, que remonta à era em que Eva foi
enganada pela cobra. Lá, como ainda hoje, em todo o mundo, cada animal
possui sua língua: o porco grunhe, o
cavalo relincha, o cão ladra, o pássaro pia etc. Percebendo que a dificuldade
de comunicação ali era grande, devido à Babel, um papagaio, famoso por
sua verve, propôs à comunidade florestal dos bichos, muito antes de Zamenhof,
uma língua universal, que denominou bichoranto.
Essa
foi, desde então, a língua oficial de todos os animais daquela imensa
comunidade. Tão grande, que eles imaginavam ser um continente. Afinal, não
havia ao menos bicicleta lá, e o animal mais veloz era, em terra, a onça
pintada; na água, o pirarucu; e no ar a
harpia. E esta nunca se aventurava a voar mais do que algumas dezenas de
quilômetros, pois suas presas eram fartas, as árvores gigantescas e as águas
abundantes.
A
língua oficial passou a ter três normas: popular, coloquial e culta. A primeira
é falada pelo povaréu animal. A segunda é utilizada nos pergaminhos literários.
A terceira, porém, é a que detém mais influência sobre tudo e sobre todos.
Vivia-se
ali em plena liberdade, mas imperava também a pena de talião: "olho por olho,
dente por dente", aplicada a quem cometesse qualquer crime contra os seres de
sua espécie. Impunha-se lá a lei de murici: “cada um cuide de si”. Com o
tempo, as diversas sociedades animais perceberam que tal sistema era
contraproducente, tendo em vista que,
quase sempre, favorecia os mais fortes e astutos. Reuniu-se a bicharada e
combinou-se que, a partir de então, os animais teriam seus representantes entre
os bichos mais votados.
Também ficou acertada a criação de três poderes: 1.º - o Executivo, administrador da coisa pública e da regulamentação das covas a serem criadas, dos ninhos de cobras e passarinhos, limitação de filhotes etc.; 2.º o Legislativo, a quem cabe a criação das leis e a fiscalização dos demais poderes; 3.º - o Judiciário, que executa as leis, sob demanda pessoal, de coletividades ou dos demais poderes.
Também ficou acertada a criação de três poderes: 1.º - o Executivo, administrador da coisa pública e da regulamentação das covas a serem criadas, dos ninhos de cobras e passarinhos, limitação de filhotes etc.; 2.º o Legislativo, a quem cabe a criação das leis e a fiscalização dos demais poderes; 3.º - o Judiciário, que executa as leis, sob demanda pessoal, de coletividades ou dos demais poderes.
Todos
têm seus representantes... No Executivo, reina soberana a sucuri, com a qual
ninguém se mete impunemente. No Legislativo, impera a voz da ariranha, lontra
feroz e venenosa, muito perigosa.
O
Judiciário é formado pelos tribunais de primeira, segunda e terceira instância.
Decidiu-se, também, que todas as instâncias desse poder só atuam se provocadas.
Fora disso, não possuem autonomia.
Criadas
as leis e, sobretudo, uma Suprema Lei ou Constituição, esta rege todas as
demais. A terceira e última instância de julgamento é a do Tribunal de Justiça
Supremo (TJS), a quem se pode recorrer, se inconformado com a condenação nas
instâncias inferiores. Como nas demais instâncias, o TJS só atua se provocado,
salvo se este for atacado. Nesse caso, o presidente pode agir de ofício em
defesa própria e dos membros do colegiado. Prerrogativa do TJS...
Os crimes simples são reprimidos pelos agentes
policiais, e a investigação das infrações penais cabe aos delegados. Nesse
caso, a subordinação é ao Executivo, mas ninguém permanecerá preso por mais de
trinta dias sem autorização judicial.
Não
entrarei em detalhes sobre os juízos de primeiro e segundo grau. Apenas direi
algo sobre o TJS, cuja última composição é:
um presidente: a onça pintada,
carnívoro mais ágil, capaz de devorar qualquer animal menor que ele, da água,
do solo ou do ar;
um vice-presidente: a arara azul,
conhecida por sua beleza, tamanho e comportamento. Casais dessa espécie são
fiéis e dividem as tarefas de criar seus filhotes;
cinco membros:
1.º o mico-leão dourado, símbolo da
floresta, animal antiquíssimo, em extinção;
2.º a jacaretinga, impiedoso e velho
caçador de répteis, anfíbios, aves e pequenos mamíferos; nunca ataca animais de
grande porte;
3.º o boto cor-de-rosa, brincalhão que,
à noite, se transforma em macaco, seduz as macacas e, na manhã seguinte, volta
a ser boto;
4.º o camaleão, que se camufla nas
cores verde, amarela, vermelha, para enganar suas presas e predadores; come
moscas e mariposas com sua língua comprida, que gruda nas presas;
5.º a harpia, que é a ave de rapina
mais perigosa do planeta; alimenta-se de outros animais, até mesmo de
carneiros; chega a alcançar dois metros de comprimento da ponta de uma asa à
outra.
Pois
bem, Jó, esses bichos, coerentes com sua elevada moral, já haviam proferido
três decisões favoráveis sobre a prisão em segunda instância de animais
condenados, em que defenderam brilhantemente a culpabilidade dos crimes
imputados a esses seres de pequena monta. Utilizando a hermenêutica mais de
acordo com a norma culta do bichoranto, concluíram que a Constituição dava
amplo respaldo à prisão em segunda instância dos réus, com direito, inclusive,
de continuar recorrendo do xilindró, que poderia ser uma gaiola, um aquário ou
uma jaula, conforme o caso.
Acontece
que, ultimamente, fora descoberta uma empresa de lavagem de animais sujos, que
incomodara aos altos representantes da bicharada. Alguns deles eram clientes
poderosos, mas, coitados, sem saberem que cometiam graves crimes de corrupção
por nonadas como a sujeira, apelaram à Suprema Corte...
Agora,
com licença. Vou correndo ao TJS ver como está o novo julgamento da bicharada
da floresta, pois acabo de saber que a hermenêutica estava confusa. A coerência
animal, por certo, há de prevalecer...
Até
outro dia, amigo. Cuida-te.
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