PAULO, JESUS E
A LEI
Jorge Leite de Oliveira
Acima
de tudo, cultivai, com todo o ardor, o amor mútuo, porque o amor cobre uma
multidão de pecados
(I Pedro, 4:8).
Rezam
as tradições cristãs que o encontro de Paulo com Jesus, na estrada de Damasco, ocorreu
num dia 25 de janeiro, quando o orgulhoso rabino se converteu
incondicionalmente à Boa-Nova trazida pelo Cristo. Essa data passou a ser
comemorada, pela Igreja, como o Dia de
São Paulo. Também no dia 25 de janeiro de 1554, o jesuíta Manoel da Nóbrega
fundou o Colégio dos Jesuítas, que deu origem à Vila de São Paulo de
Piratininga e, mais tarde, a São Paulo e sua capital.
Pouco tempo após a
crucificação do Cristo, em Corinto, cidade grega, uma família judia era
espoliada de sua pequena propriedade rural. O autor do ilícito foi o desonesto
e tirânico questor do Império Romano, Licínio Minúcio, que prendeu o idoso pai
de Abigail e Jeziel. Este acaba preso e, mais tarde, é escravizado, após ter
sido chicoteado, com seu pai, Jochedeb, que não resiste ao castigo e morre. Só
Abigail escapa ilesa ao ato desumano do questor cruel.
Algum tempo depois, o
jovem rabino chamado Saulo de Tarso, residente em Jerusalém, conhece Abigail e
se apaixona por ela. Seu desejo é desposá-la, mas ela pede-lhe para tentar
descobrir onde estaria Jeziel e libertá-lo. O noivo jura-lhe que faria o
possível para atendê-la.
Nesse meio tempo, Jeziel
fora liberto, a pedido do político romano Sérgio Paulo, a quem curara de grave
enfermidade em viagem marítima. O irmão de Abigail conhecera os discípulos de
Jesus, em Jerusalém, tornara-se um deles, trocara seu nome para Estêvão e passara
a ser um dos mais destacados conhecedores e oradores da Boa-Nova do Cristo.
Foi esse discípulo de
Jesus que teve a coragem de desafiar a autoridade do fariseu Saulo de Tarso na
tosca casa de orações dos então chamados “homens do Caminho”. Defensor
intransigente da tradição judaica antiga, que conhecia como poucos, Saulo
sentiu-se humilhado por aquele jovem que não lhe concedera a palavra para
contestar suas ideias sobre os deserdados da sorte como bem-aventurados. E, de
posse de seus poderes temporais, manda prendê-lo e imolá-lo a pedradas. Jesus,
para Saulo, não passaria de um carpinteiro ignorante e sedicioso das massas
empobrecidas e doentes, que morrera crucificado entre dois ladrões.
Não sabia Saulo,
entretanto, que, ao convidar a noiva querida, Abigail, para assistir à
lapidação, até a morte de Estêvão, estaria destruindo seu sonho de casamento
com a amada. Os irmãos se reconhecem antes que o primeiro mártir do
Cristianismo, agora com nome trocado, desse seu último suspiro. Ainda assim,
mesmo com os ossos quebrados pelas pedradas recebidas dos fariseus, sob o
comando de Saulo, antes de morrer, Estêvão perdoa-o, abençoa a união de seu
assassino com Abigail e diz para a irmã estarrecida: “— [...] Saulo deve ser
bom e generoso; defendeu Moisés até o fim... Quando conhecer Jesus, servi-lo-á
com o mesmo fervor... Sê para ele a companheira amorosa e fiel...” (XAVIER,
2002, cap. 7, p. 173).
Todavia, mesmo com o
perdão dos irmãos, Saulo opta por romper o noivado com Abigail. E passou a
perseguir mais intensamente os cristãos, pois “[...] entrando pelas casas,
arrancava homens e mulheres e metia-os na prisão” (Atos, 8:3). Oito meses depois, quando Saulo procura
Abigail, tentando reconciliação, ela, muito doente, morreria em poucos dias. Não
sem antes perdoá-lo, mais uma vez, e prometer-lhe sua proteção espiritual.
O jovem doutor da lei só
compreendia Deus como “Senhor poderoso e inflexível” (XAVIER, 2002, cap. 9). Suas
leis não contemplavam os fracos, e Moisés era seu representante máximo na Terra.
Em conversa com Zacarias, pai adotivo de Abigail, Saulo diz a ele que precisava
encontrar Ananias, para castigá-lo devidamente.
Ao ouvir do idoso a
pergunta se queria punir o benfeitor de Abigail, Saulo responde-lhe que “[...]
uma coisa é estudar a Lei e outra é defender a Lei”. E completa: “[...] Tenho
de punir os transviados como necessitas podar as árvores da tua chácara”
(XAVIER, 2002, cap. 10, p. 204).
Saulo voltou a Jerusalém
ainda mais revoltado com aquele carpinteiro que fora crucificado e
indiretamente lhe causara a infelicidade. Recrudesceu a perseguição aos
seguidores do Cristo, forçou um deles, que prendera, a lhe dizer onde estava
Ananias e, sabendo que este fora para Damasco, obteve do sinédrio autorização
para ir a essa cidade, na companhia de três voluntários, com o objetivo de
prender e condenar o ancião. Entretanto, a caminho de Damasco, tudo mudaria em
sua vida. Jesus aparece-lhe, Saulo cai do cavalo e, diante daquele ser
angelical, mas severo, ajoelha-se e, após ficar sabendo que estava diante do
Cristo, pergunta-lhe, humildemente: “— Senhor, que queres que eu faça?” (op.
cit., p. 214).
Em resposta, Jesus
diz-lhe para levantar-se e entrar na cidade onde saberia o que lhe conviria
fazer. Saulo ficara cego. Em Damasco, é socorrido por aquele mesmo que
perseguia: Ananias, o qual, em nome do Mestre, restitui-lhe a visão e transmite
as primeiras instruções sobre o Evangelho, cujos pergaminhos Saulo copia e
guarda consigo.
A partir dessa cidade,
começa toda uma preparação do ex-rabino intransigente na defesa do Antigo
Testamento. Ele renunciaria ao seu título e riqueza, passaria um tempo no oásis
do deserto, onde conviveria com o casal Áquila e Prisca, seguidores de Jesus, e
trabalharia como tecelão, profissão aprendida com seu pai quando ainda na
infância.
Ficou três anos nos
serviços de tecer tapetes. Nesse período, tomou conhecimento, pelo casal, das
perseguições e mortes provocadas por sua atitude de combate à doutrina do
Cristo. Um dia, Saulo revela, emocionado e emocionando seus amigos, sua
verdadeira identidade como ex-perseguidor dos cristãos. Dias depois, despede-se
dos amigos e empreende várias viagens como humilde servidor de Jesus Cristo.
Acompanhá-lo-ia por
trinta anos o Espírito Estêvão “[...] renovando-lhe constantemente as forças para
a execução das tarefas redentoras do Evangelho” (op. cit., p. 280). Jesus quis
que “a primeira vítima das perseguições de Jerusalém” e seu verdugo ficassem,
agora, irmanados no mesmo ideal da divulgação de sua doutrina libertadora (id.,
ibid).
Inicia-se a via-crúcis do agora ex-doutor da lei. Em Damasco, para não ser preso como traidor do
judaísmo, precisou fugir à noite, “transpondo a muralha em um ponto vulnerável
e sendo descido num cesto” (KREMER, 2011, p. 64).
Após uma semana de
caminhada, enfrentando os desafios da natureza, chega a Jerusalém, procura a
residência da irmã, que já não residia lá, e é expulso pelo atual morador, que
o trata rudemente. Busca a residência do amigo Alexandre, que o recebe surpreso;
mas, quando ouve de Saulo a confirmação de que este vira e conversara com Jesus,
censura-o com rigor e o tem como mentiroso, ao também ouvir de Saulo que seu
mestre, Gamaliel, morrera aceitando a Boa-Nova do Cristo.
Em Jerusalém, é recebido
com desconfiança pelos “homens do caminho” e com ódio pelos judeus. Mas “O
coração bondoso de Simão Pedro rendera-se diante da sinceridade demonstrada por
Saulo, assim como o diácono Prócoro, o primeiro a receber o visitante, que foi
eloquente em testemunhar a seu favor” (KREMER, 2011, p. 66). Por fim, “Saulo
entrou na intimidade da casa do caminho pelas mãos amigas de Barnabé,
avalista da nobreza de suas intenções e da legitimidade de sua conversão” (id.
ibid.).
Saulo, doente e exausto,
pediu a Pedro, humildemente, que este lhe permitisse ocupar o leito que Estêvão,
antes dele, ocupara. O apóstolo, comovido, não somente o atendeu, como também lhe
trouxe “[...] os singelos pergaminhos que o mártir utilizava diariamente no
estudo e meditação da Lei, dos profetas e do Evangelho” (XAVIER, 2002, p. 308).
É aconselhado
espiritualmente por Estêvão (op. cit., p. 315) a deixar Jerusalém. Após entrevistar-se
com Pedro, segue para Cesareia e dali para Tarso, onde residiam seus pais. O
pai, conservador das tradições judaicas, não aceita sua “deserção” e o expulsa
de casa, embora Saulo alegasse cansaço e enfermidade. Entretanto, após a
retirada do filho, manda um servidor entregar-lhe uma bolsa com dinheiro, que Saulo
aceita humildemente.
Afastando-se da cidade,
após “leve refeição”, o ex-rabino resolveu caminhar e buscou um campo nos
arredores de Tauro, onde “descansou junto de uma das inumeráveis cavernas abandonadas”
(op. cit., p. 326). Rememorava com remorsos os últimos acontecimentos de sua
vida, quando se sentiu transportado, em espírito, para uma região florida e deliciosa,
com suaves melodias e paz profunda. De repente, surgiram à sua frente os irmãos
Estêvão e Abigail, que procuraram reanimá-lo para a tarefa que apenas se
iniciava.
Após esse encontro
espiritual, Saulo resolve adquirir um tear e recomeçar sua luta transformadora
em Tarso, sua cidade natal. Isso provocou o descontentamento do seu pai, que o
deserdou e mudou-se para as margens do Eufrates. Completa o Espírito Emmanuel
que “Assim, durante outros três anos, o solitário tecelão das vizinhanças do
Tauro exemplificou a humildade e o trabalho, esperando devotadamente que Jesus
o convocasse ao testemunho” (XAVIER, 2002, p. 336). Até que, na primavera do
ano 42, Barnabé o procurou e levou a Antioquia, a pedido de Pedro, para novas
tarefas missionárias.
Foram seis anos,
aproximadamente, de preparação para seu apostolado sublime, que iria revigorar
e expandir o Cristianismo. Somente agora começaria, de fato, sua extraordinária
missão. De Antioquia, Saulo e Barnabé voltaram a Jerusalém, atendendo a apelo
de socorro que lhes endereçara Pedro, em vista do recrudescer das perseguições
sofridas pelos cristãos. Quando chegaram, foram recebidos por Prócoro, que lhes
informou sobre a prisão de Pedro, sua libertação por um “anjo” e fuga
provisória para a cidade de Jope, até que a situação se acalmasse em Jerusalém,
conforme relato do Espírito Emmanuel (XAVIER, 2002, cap. 4, p. 346).
Saulo propõe a Barnabé
“buscar os gentios”, pois, em seu conceito, embora fosse justo não esquecer os
esforços da igreja de Jerusalém no auxílio dos “pobres e necessitados”, seria
também imprescindível iluminar os espíritos, para que, em poucas décadas, os
ensinamentos de Jesus, anotados por Mateus, não fossem deturpados. Era
importante espalhar, mundo afora, as mensagens e a obra do Cristo, para que
este não viesse a ser considerado “um criminoso comum, a expiar na cruz os
desvios da vida” (op. cit., p. 353).
Aprovada a proposta de
Saulo pela igreja de Jerusalém, este e Barnabé, acompanhados por João Marcos,
dirigiram-se a Selêucia. Dali, foram para a ilha de Chipre, onde Saulo assistiu
um pouco desconfortado às palestras de Barnabé, que mencionava com excessivo
cuidado as tradições judaicas, enquanto o ex-rabino desejava destacar a
superioridade da missão de Jesus.
Posteriormente, foram
para Amatonte, onde estiveram durante mais de uma semana, sempre com a palavra
contemporizadora de Barnabé. Em seguida, dirigiram-se a Nea-Pafos, onde
Barnabé, mesmo muito cansado, fez brilhante palestra, comovendo a todos,
inclusive a Saulo. Também ali, as curas pela imposição de mãos dos apóstolos chegaram
ao conhecimento do procônsul Sérgio Paulo, que havia sido curado por Estêvão, cerca
de dez anos antes.
De novo, gravemente
enfermo, Sérgio Paulo foi curado pela dupla e, tendo observado alguns fenômenos
mediúnicos produzidos por Saulo, converte-se ao Cristianismo. Então propõe a
esses missionários a fundação da primeira igreja em Nea-Pafos, fruto direto do
trabalho dos missionários cristãos.
Mais tarde, perplexo com
o que chamou de pentecostes de Saulo,
Barnabé sugere-lhe a mudança do nome. Ele, então, adota o nome à romana (op.
cit., p. 370). A partir daqui, “Os Atos já não colocam o nome de Barnabé
em primeiro lugar, e sim o de Paulo” (KREMER, 2011, p. 91).
O trabalho sublime de
Paulo é narrado nas epístolas que ele escreveu aos povos que não podia visitar,
em virtude de suas muitas atribuições e das distâncias enormes, para a época,
que, algumas vezes, eram percorridas até mesmo a pé. Daí surgiram suas famosas cartas...
A obra Paulo e Estêvão, psicografada por Chico
Xavier e ditada pelo Espírito Emmanuel, emociona-nos pela riqueza de
informações e detalhes sobre as lutas, perseguições e flagelos sofridos pelo
ex-rabino. Verdadeira obra-prima da historiografia mediúnica, vale a pena lê-la
pois, no nosso entendimento, não há outro livro sobre o assunto que se lhe
compare em realismo e beleza.
Diz Emmanuel que, já
velho e marcado pelos diversos maus-tratos que lhe infligiram, Paulo foi preso
e levado à presença do Imperador Nero, o César, em Roma, para defender-se das
acusações que lhe faziam os judeus sobre a violação de suas leis. Foi libertado
temporariamente, sob condição de não se afastar da cidade...
Alguns dias depois,
conduzido por seis soldados a um dos cemitérios da cidade, ali, foi
barbaramente assassinado por um golpe de espada na garganta. Antes de morrer,
corajosamente, Paulo diz ao militar encarregado de sua execução:
“[...] Os discípulos de Jesus não temem os
algozes que só lhes podem aniquilar o corpo. Não julgueis que vossa espada
possa eliminar-me a vida, de vez que, vivendo estes fugazes minutos em corpo
carnal, isso significa que vou penetrar, sem mais demora, nos tabernáculos da
vida eterna, com o meu Senhor Jesus Cristo, o mesmo que vos tomará contas,
tanto quanto a Nero e Tigelino!... (XAVIER, 2002, cap. 10, p. 594).
Diz o Espírito
Lázaro (apud KARDEC, 2017, cap. 11, p. 150) que “O amor resume a doutrina de
Jesus inteira, porque é o sentimento por excelência [...]”. Sim, a Lei de Deus
se resume numa só, conforme o Cristo nos disse: a do Amor. Saulo fora a
justiça, mas justiça sem amor é impiedade. Estêvão, Abigail e Paulo, convertidos
pelo amor, conheceram a verdadeira Justiça Divina, aquela que concede “a cada
um segundo as suas obras”, como nos afirmou Jesus (Mateus, 16:27). Esse mesmo
Messias Divino veio ao encontro de Paulo, ladeado por Estêvão e Abigail, e,
enlaçados pelo Amor, seguiram para as "esferas da Verdade e da Luz"
(XAVIER, 2002, cap. 10, p. 599).
Referências
BÍBLIA
de Jerusalém. 3. imp. São Paulo: Paulus, 2002.
KARDEC,
Allan. O evangelho segundo o espiritismo.
Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. Brasília: FEB, 2017.
KREMER,
Ruy. Paulo, um homem em Cristo. Rio
de Janeiro: FEB, 2011.
XAVIER,
Francisco C. Paulo e Estêvão. Pelo
Espírito Emmanuel. 2. ed. esp. Rio de Janeiro: FEB, 2002.
(Artigo publicado em Reformador/FEB em jan. 2019.)
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