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sexta-feira, 7 de abril de 2023

 


AMOR E VIDA

 
Na sala extensa da delegacia,
Estavam de plantão
O chefe e um escrivão
Agindo atentamente.
 
Diante deles se reconhecia
Um nobre advogado em companhia
De um filho adolescente.
 
Algo distantes, lado a lado,
Erguia-se um soldado,
Guardando a prisioneira, uma doente,
Triste e pobre mulher, maltratada e abatida
Que, conquanto sentada,
Parecia a visão da dor, ansiosa e conformada,
Entre a ronda da morte e a presença da vida.
 
— Doutor — falou o chefe vigilante,
Dirigindo a palavra ao visitante —,
Embora o furto confessado,
Não sei o que fazer da velha, aqui detida,
Todo o processo-crime está formado,
Mas a infeliz não tem qualquer defesa...
Já nomeei um bacharel amigo
Que lhe proteja a causa
De mulher sofredora, em extrema pobreza,
Mas a doença dela é febre sem pausa,
Segundo o nosso médico em serviço,
É um caso grave de pneumonia...
Que fazer? Conservá-la na prisão?
Aguardar do juiz alguma decisão?
Recolhê-la em asilo hospitalar?
Ou guardá-la em custódia no seu lar?
 
O causídico explode em tom severo:
— Absolutamente, não a quero;
Trata-se aqui de ladra astuta e estranha
Que desde a meninice me acompanha...
Lavadeira na cada de meus pais,
Confesso que em meus tempos de menino
Ela foi ama generosa e boa,
Ajudou-me e serviu-me em pequenino,
Algum tempo de amparo, cousa à toa...
Mas foi sempre um trambolho em meu caminho.
Desorientada e analfabeta,
Sempre me pareceu a burrice completa...
 
Minha mãe há dez anos, falecida,
Pediu-me, antes da morte, agasalhar-lhe a vida.
Tornei-a lavadeira em minha residência...
Infelizmente agora,
Furtou minha senhora
Em joias no valor de alguns milhões!...
Fale, pois Excelência.
Como ampará-la com paciência,
Se esta velha se fez agora simples ladra?
Resguardá-la em meu lar? Isso não quadra.
 
Ouvindo a acusação, a pobre estarrecida,
Caiu, desfalecida.
 
Enternecido, o próprio delegado
Fitou o advogado,
Como a lhe perguntar de que modo agiria;
Ele apenas, porém, respondeu friamente:
— Que se lhe dê qualquer enfermaria...
Desmaio de gatuno é antigo expediente...
Depois, erguendo mais a voz:
— Pode espantar aos tolos, não a nós...
Nada posso fazer,
Devo esperar meu pai que volta ainda hoje
De uma visita a Portugal.
Coloquem esta ladra no hospital,
A Polícia dispõe de ação segura e pronta,
A despesa será por minha conta.
 
Pai e filho, no carro, a deslizar lá fora,
Eis que o rapaz revela, enquanto chora:
— Papai, ao ver tia Lina desmaiada
(Lina era o nome da acusada),
Já não devo ocultar o erro que fiz,
Num momento infeliz,
Roubei todas as joias da Mãezinha,
Tenho-as todas em minha escrivaninha;
E Tia Lina me viu quando as furtei,
Sabe o erro que fiz
E porque se calou, realmente não sei...
 
Pálido, o genitor espantado e abatido,
Colhe das mãos do filho o tesouro escondido...
Quer gritar, acusar, mas a hora é de ação;
O pai estava à porta,
Regressando feliz da ditosa excursão.
 
Depois das manifestações de amor e de alegria,
Ambos se trancaram numa sala;
O velho escuta a história e, ao registrá-la,
Tanto mais chora, quanto mais a ouvia...
 
Em silenciando o filho, o distinto senhor,
Sem poder disfarçar a profunda emoção,
Falou-lhe, coração a coração:
— Filho, de qualquer modo, és sempre, o nosso amor,
Eis chegado, no entanto, o instante justo,
Em que devo contar-te, mesmo a custo,
Algo que foi passado...
Minha esposa, depois de nosso enlace,
Precisava de alguém que lhe compartilhasse
Os cuidados do lar, a limpeza, o serviço...
Nossa querida Lina
Surgiu-nos, certo dia...Era quase menina,
No entanto, estava grávida e solteira
Nela encontramos nobre companheira,
Dela nasceste em nosso próprio lar,
Minha mulher beijou-te a sorrir e a cantar...
Desde então, tua mãe – tua mãe verdadeira,
Deu-se, de todo, a nós, de espírito cativo,
Esqueceu-se por nós, nunca pôde estudar,
Ela era o serviço, o apoio em nosso lar...
Nada nos reclamou, nem mesmo uma só vez,
Declarava-te o filho de nós três,
Nunca foste adotivo...
Criança recém-nata, eras fraco e doente;
Lina te resguardou, constantemente.
Mãe, servidora, irmã e escrava pelo afeto
Agora, certamente,
Aceitou a prisão para salvar o neto...
 
 
Sufocado de pranto, acompanhando o pai,
O advogado na delegacia
Apagou toda a queixa
Que já não mais vigoraria...
Perguntou por notícias da acusada,
Soube que Lina foi transportada
Para uma enfermaria de indigentes.
 
Correm os dois, ansiosos e impacientes,
Querem Lina de volta, por sinal;
Mas sobre o leito humilde do hospital,
Acham-na muda e inerte...Esclarece a enfermeira
Que a doente chegara à hora derradeira...
 
Põem-se os visitantes a chorar,
Mas Lina lhes dirige um último olhar...
E nesse último olhar que envolve os três
A verdade se fez...
 
Descem-lhe grossas lágrimas na face,
Qual se a pobre ao vertê-las,
Por elas encontrasse
Um caminho de luz para a luz das estrelas...
 
O filho a soluçar, sem conforto e sem voz,
Reconheceu, por fim, de alma abatida,
Que a mais simples mulher, em renúncia na vida,
Pode ser nossa mãe, junto de nós...
 
DOLORES, Maria (Espírito). Alma e vida. Psicografado por: Francisco Cândido Xavier. São Paulo: Cultura Espírita União, 1984.


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