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sexta-feira, 30 de junho de 2023

 


O IRMÃO LOBO
 
Na floresta de Gubbio, um lobo se fizera
 Uma espécie de monstro aterrador,
 Mais astuto e mais hábil que uma fera.
 Parecia um terrível salteador,
 Matando qualquer homem desarmado,
 Espalhando pavor e aniquilando o gado...
 Mas, Francisco de Assis foi procurá-lo, um dia,
 E, em plena solidão,
 Ao encontrá-lo, em vasta ramaria,
 Começou a chamá-lo por irmão...
 Em seguida, falou-lhe da bondade,
 Da paz, da caridade, do carinho...
 Pediu-lhe, por Jesus, alterar o caminho
 Em que o pobre animal
 Vivera até então
 E terminou, rogando ao lobo atento
 Fosse morar com ele no convento
 E a fera obedeceu,
 Sem demonstrar qualquer hesitação.
 
 Seguindo o Irmão Francisco, achou-se em novo lar,
 E, ao mudar de atitude, entregou-se, feliz,
 No trabalho do bem, nas tarefas de Assis.
 Era um guarda-noturno dos melhores
 E, carregando um cesto aos dentes,
 Buscava pães nos arredores.
 
 Mas o chefe ocupado, muitas vezes,
 Por semanas ou meses,
 Ausentava-se em serviço,
 Quase sempre reunido a frei Leão,
 Saía em sacrifício e peregrinação,
 A fim de semear o ensino do Senhor,
 Atento a inolvidável compromisso.
 
 Nessas ocasiões,
 O irmão Lobo sentia
 A carência de amor
 E a fome de alegria.
 Longe do Irmão Francisco, em todas as estradas
 Era seguido a insultos e pedradas...
 Mesmo entre os servidores do convento
 Sofria ele o impacto violento
 De varadas cruéis...
 Chamavam-no "covarde", "lobo vil",
 "Carniceiro feroz..."
 E de tanto aguentar o tratamento hostil,
 Vendo-se, um dia, a sós,
 O Irmão Lobo voltou para a vida selvagem,
 Na antiga sede de carnagem;
 Tornando à condição a que dantes se dera
 Nos instintos de fera...
 
 Voltando o Irmão Francisco
 À morada de amor que presidia,
 Depois de longa ausência,
 Teve notícia da ocorrência
 Mas, embora cansado
 E prematuramente envelhecido,
 A lastimar o acontecido,
 Ante as muitas saudades do animal,
 Embrenhou-se no verde da floresta...
 E reencontrou o Irmão Lobo, como em festa
 Na vastidão da natureza,
 Perseguindo, sem pausa, uma lebre indefesa.
 
 — "Irmão lobo, o que é isto?"
 Disse o recém-chegado.
 — "Já não te lembras mais dos ensinos de Cristo?"
 
 O lobo veio a ele, abatido e humilhado,
 E respondeu, tristonho:
 "Santo amigo, não pude suportar
 As dores que sofria em vossa ausência,
 Acreditei que o vosso sonho
 Fosse uma realidade na existência,
 Mas tenho ainda as marcas doloridas
 De profundas feridas
 Que os homens me fizeram...
 Toda vez que deixáveis nossa casa
 Tratavam-me com vara, pedra e brasa...
 Não vi qualquer pessoa a não ser vós
 Nos ensinos sagrados
 Que trazeis a nós...
 Deixai-me, santo amigo,
 Sou lobo, apenas lobo no serrado,
 Fera solta nas trilhas em que sigo."
 
 Francisco, então, enfermo e fatigado,
 Replicou-lhe, porém:
 — "Irmão lobo, recorda!... O caminho do bem
 É aquele de Jesus...
 Devemos aceitar a própria cruz...
 Recorda as instruções que estudaste comigo,
 Sentença por sentença!
 Deixe que eu te interprete:
 A lei é perdoar setenta vezes sete
 Qualquer ofensa recebida...
 A presença de Cristo é o sol de nossa vida...
 Volta, comigo, irmão,
 Eu também, já sofri calúnia, provação...
 Sinto-me fatigado,
 Mas a fé no Senhor é uma luz em meu peito,
 Continua, irmão Lobo, de meu lado,
 Resguarda-me, com Deus, na pedra
 Em que me deito...
 Necessito de ti na casa de onde venho,
 As tuas grandes cicatrizes
 Dos momentos que julgas infelizes
 São feridas irmãs das úlceras que eu tenho!..."
 O lobo cabisbaixo acompanhou o amigo,
 Fez-se-lhe guardião na aspereza do abrigo,
 Onde Francisco, dantes forte,
 Pôs-se em chaga e oração
 Para aguardar a morte...
 
 Finda aquela existência engrandecida e bela,
 O Irmão Lobo fugiu para um bosque vizinho,
 Algo desatinado,
 Como alguém que se vê desamparado
 Sem rumo e sem caminho,
 Em súbita carreira...
 Ouvido no convento
 Notou-se que ele uivava a noite inteira;
 E porque se calara, de repente,
 Quando o Sol regressou, resplandecente,
 Um irmão de Francisco foi à mata,
 Decidido a trazê-lo,
 No máximo de zelo,
 Para a vida de paz, de serviço e conforto...
 Mas, surpreso, encontrou nas pedras do serrado
 Um corpo de animal abandonado:
 O lobo de Francisco estava morto.
 
DOLORES, Maria; MEIMEI. (Espíritos). Somente amor. 1. ed. – Impressão pequenas tiragens. Brasília: FEB; São Paulo: IDEAL, 2022.


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