CARÁTER DA REVELAÇÃO ESPÍRITA
Jorge Leite de Oliveira
"Nos últimos tempos, disse o Senhor, derramarei
do meu Espírito sobre toda a carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão,
vossos jovens terão visões e vossos anciãos sonharão; e também do meu Espírito
derramarei sobre os meus servos e minhas servas, naqueles dias, e profetizarão;
e farei aparecer prodígios em cima no céu e sinais em baixo na terra: sangue,
fogo e vapor de fumaça." Atos,
2:17- 19.
A última obra publicada
em vida por Allan Kardec, cuja primeira edição ocorreu em 6 de janeiro de 1868,
foi intitulada por ele de A gênese:
os milagres e as predições segundo o espiritismo. Comemora-se, pois, em 2018, o
sesquicentenário de A gênese, como é
mais conhecida. Embora publicada há 150 anos, a obra nunca perdeu sua atualidade. Apesar disso, é o livro do chamado
pentateuco kardequiano menos lido, a despeito de já terem sido publicadas 53
edições, levando-se em conta apenas as edições da Federação Espírita Brasileira
(FEB), até 2013, traduzidas por Guillon Ribeiro de sua 5ª edição francesa.
Na introdução de A gênese,
Allan Kardec esclarece-nos sobre sua intenção com a publicação da obra:
prosseguir demonstrando “as consequências e aplicações do Espiritismo”. O Codificador
da Doutrina dos Espíritos, como ele mesmo a denominava, enfatiza a importância
do esclarecimento de grande número de “fenômenos” considerados pelos pensadores
como inadmissíveis, por sua incompreensão sem a chave proporcionada pelo Espiritismo.
Faltava à Humanidade
entender que todos os fatos considerados milagrosos ou sobrenaturais são
perfeitamente explicados pela “ação recíproca entre o Espírito e a matéria”. E
esses fatos resultam das leis naturais. Seu conhecimento permite-nos entender a
imensidade de fenômenos relatados nas Escrituras e que o Espiritismo, sem ter o
caráter de “mistério ou de teorias secretas”, tudo revela com clareza a quem o
estuda com seriedade e sem ideias preconcebidas.
É nesse sentido que não
existe “misticismo” no Espiritismo. Não que os fatos deixem de existir, pois
desde os primórdios da Humanidade eles vêm ocorrendo; mas tais fenômenos são
absolutamente naturais, como o demonstram os Espíritos. Entretanto, acrescenta
Kardec, a Doutrina é de iniciativa dos Espíritos, mas também resulta “do ensino
coletivo e concorde por eles dado”.
No parágrafo seguinte da
introdução, explica o Codificador que
o caráter essencial da Doutrina Espírita é a “generalidade e concordância no
ensino”. Essa é a base da subsistência do Espiritismo, “donde resulta que todo
princípio que ainda não haja recebido a consagração do controle da generalidade
não pode ser considerado parte integrante dessa mesma Doutrina”, pois sobre uma
“opinião isolada” o Espiritismo não pode se responsabilizar.
Em seguida, explica que
a concordância de opiniões dos Espíritos, submetida ao “critério da lógica, é
que constitui a força da Doutrina Espírita e lhe assegura a perpetuidade”. E é
também essa concordância universal
que prevalecerá “sobre todos os sistemas pessoais, cujas raízes não se
encontram por toda parte, como com ela se dá”. Como exemplo dessa concordância
coletiva, cita O livro dos espíritos,
em cujo primeiro decênio de publicação, e ainda hoje, teve seus “princípios
fundamentais” basilares “sucessivamente completados e desenvolvidos”. Nenhum
deles jamais foi desmentido.
Allan Kardec deixa
claro, no penúltimo parágrafo da introdução de A gênese, que teve o cuidado de indicar a situação hipotética de
algumas teorias dessa obra, “que devem ser consideradas simples opiniões
pessoais, enquanto não forem confirmadas ou contraditadas”. Dessa forma, não
nos cabe outro dever senão o de conhecer bem essas “opiniões pessoais”,
inclusive as do próprio Kardec, mantendo discrição em relação ao que ainda não
tenha recebido a chancela de verdade por parte dos Espíritos superiores sem,
entretanto, faltar com a nossa obrigação de respeito às ideias alheias e estudo
aprofundado de toda obra que nos seja transmitida pelos Espíritos naquilo que
não contradiga o critério do consenso universal.
Há revelações, entretanto, que somente podem
ser feitas à nossa Humanidade ainda atrasada espiritualmente após um tempo
relativamente longo para nós, mas breve para Jesus e seus missionários. As
próprias obras da Codificação de Allan Kardec foram submetidas a ensaios de
muitos de seus textos pela Revista
Espírita, antes da desencarnação do Codificador, como ele nos esclarece no
último parágrafo da introdução de A gênese. Um desses princípios, que
Kardec de início relutou em aceitar, só o fazendo após longa reflexão e
esclarecimento dos Espíritos superiores, foi o da reencarnação, que, em diversos países, em especial nos Estados
Unidos, onde o preconceito racial sempre foi marcante, não era admitida por
grande número de adeptos dos fenômenos mediúnicos, ainda que cressem nas
manifestações dos Espíritos.
Em novembro de 1869, o
Espírito Allan Kardec, em importante mensagem, publicada na Revista Espírita de dezembro desse ano,
deixa aos espíritas sinceros este alerta:
[...] Ainda por longo tempo haverá
irmãos falsos e amigos desassisados; mas, tal como seus irmãos mais velhos, não
conseguirão que o Espiritismo saia da sua diretriz. Embora causem algumas
perturbações momentâneas e puramente locais, nem por isso a Doutrina periclitará.
Ao contrário, os espíritas transviados bem depressa reconhecerão o erro em que
incidiram e virão colaborar com maior ardor na obra por um instante abandonada
e, atuando de acordo com os Espíritos superiores que dirigem as transformações
humanitárias, caminharão a passo rápido para os ditosos tempos prometidos à
Humanidade regenerada (KARDEC, op. cit., p. 492).
Como podemos observar,
as dificuldades da união e concordância sobre alguns pontos importantes do
Espiritismo estavam previstas em A gênese
por Allan Kardec, que ele reforçou em comunicação post-mortem na Revista
Espírita. Essas dificuldades, segundo ele, demandariam tempo para serem
superadas.
Outro desses pontos
refere-se à questão das relações sociais do espírita, em especial com as
pessoas necessitadas de nosso apoio espiritual e material. Sem isso, fica
difícil nosso exercício da caridade,
meio eficaz de nossa “salvação”, como foi proposto por Kardec. Dentre as obras
espíritas que se referem ao assunto, recomendaríamos a leitura e reflexão da
obra baseada na proposta de Mário da Costa Barbosa, intitulada Conviver para amar e servir, cuja
primeira edição foi publicada pela FEB em 2013.
No que se refere à
crença na reencarnação, no país mais refratário a essa realidade, que são os
Estados Unidos, diversos cientistas ali reencarnaram ou residiram, nas últimas
décadas, para realizar pesquisas da mais alta importância na comprovação dessa questão.
Dentre eles, lembramos Ian Stevenson, que publicou obra conhecida mundialmente,
traduzida para o português com o título de Vinte
casos sugestivos de reencarnação, após o que suas pesquisas vêm sendo, cada
vez mais, confirmadas por outros cientistas, como é o caso de Brian Weiss, Helen
Wambach, Raymond A. Moody, Jenny Cockell e outros.
Ao falar sobre o caráter
da revelação espírita, no primeiro capítulo de A gênese, explica Allan Kardec que
O caráter
essencial da revelação divina é o da eterna verdade. Toda revelação
eivada de erros ou sujeita a modificações não pode emanar de Deus. É assim
que a Lei do Decálogo tem todos os
caracteres de sua origem, enquanto que as outras leis mosaicas, essencialmente
transitórias, muitas vezes em contradição com a lei do Sinai, são obra pessoal
e política do legislador hebreu (loc. cit., it. 10).
Logo após, informa que a
base dos ensinamentos do Cristo, foi o Decálogo.
As demais leis que não eram Divinas foram abolidas por Ele. Com o tempo, todas
as leis que não provinham de Deus foram perdendo sua influência e sendo
modificadas, exceto as contidas nos Dez
Mandamentos recomendadas por Jesus e até hoje mantidas intactas.
A Ciência espírita,
esclarece-nos Kardec, como revelação das leis do
mundo invisível que nos cerca e no meio do qual
vivíamos sem o suspeitarmos, assim como as leis que o regem, suas relações com
o mundo visível, a natureza e o estado dos seres que o habitam e, por
conseguinte, o destino do homem após a morte, é uma verdadeira revelação, na
acepção científica da palavra” (loc. cit., it. 12).
Em seguida (it. 13),
após explicar o “duplo caráter” da “revelação espírita”, o divino e o
científico, termina por afirmar o seguinte: “O que caracteriza a revelação
espírita é o ser Divina a sua origem e da iniciativa dos Espíritos, sendo a sua
elaboração fruto do trabalho do homem”. O método utilizado no Espiritismo é
idêntico ao das ciências positivas, ou seja, o método experimental.
Todos os fatos novos que
surjam, impossibilitados de serem explicados por leis conhecidas, são
observados, comparados, analisados e o Espiritismo,
remontando dos efeitos às causas, chega à lei que os preside;
depois, deduz-lhes as consequências e busca as aplicações úteis. Não estabeleceu nenhuma teoria preconcebida;
assim, não estabeleceu como hipótese a existência e a intervenção dos
Espíritos, nem o perispírito, nem a reencarnação, nem qualquer dos princípios
da Doutrina. Concluiu pela existência dos Espíritos quando essa existência
ressaltou evidente da observação dos fatos, procedendo de igual maneira quanto
aos outros princípios. Não foram os fatos que vieram depois confirmar a teoria:
a teoria é que veio subsequentemente explicar e resumir os fatos. É, pois,
rigorosamente exato dizer-se que o Espiritismo é uma ciência de observação e
não produto da imaginação. As ciências só fizeram progressos importantes depois
que seus estudos se basearam sobre o método experimental; até então,
acreditou-se que esse método também só era aplicável à matéria, quando também
se aplica às coisas metafísicas (loc. cit., it. 14).
Diz Kardec que o objeto
de pesquisa da “Ciência propriamente dita” são as leis da matéria, enquanto que
o assunto especial com o qual se ocupa o Espiritismo “é o conhecimento das leis
do princípio espiritual. Um deles reagindo sobre o outro, os princípios material
e espiritual se completam. Conclui o Codificador que
O Espiritismo
e a Ciência se completam reciprocamente;
a Ciência, sem o Espiritismo, se acha na impossibilidade de explicar certos
fenômenos só pelas leis da matéria; ao Espiritismo, sem a Ciência, faltariam
apoio e comprovação. O estudo das leis da matéria tinha que preceder o da
espiritualidade, porque a matéria é que primeiro fere os sentidos. Se o
Espiritismo tivesse vindo antes das descobertas científicas, teria malogrado,
como tudo quanto surge antes do tempo (loc. cit. it. 16).
Nos itens 20 e
seguintes, deste primeiro capítulo, Allan Kardec, incontestavelmente inspirado
pelo Cristo, chega à conclusão de que, com toda a razão, o Espiritismo pode ser
considerado a terceira das grandes revelações. A primeira foi a de Moisés, que
recebeu mediunicamente o Decálogo e
trouxe ao Mundo a ideia do Deus único; a segunda foi a do Cristo, que nos fez a
revelação da vida futura e anunciou, para os nossos tempos a vinda do Paracleto
ou Consolador, como registrou João no capítulo 14 do seu Evangelho, em especial
nos versículos 16 e 17; e a terceira é a própria Doutrina Espírita, que nos confirma
o anúncio do Cristo e desvela tudo o que era considerado “magia e feitiçaria”,
demonstrando que essa crença não é algo aterrador e, sim, a revelação de leis
naturais até então desconhecidas pela maioria das pessoas.
Este primeiro capítulo
de A gênese contém 62 itens que vale
a pena serem lidos, estudados e refletidos. Principalmente pelos que ainda não
entenderam o caráter revelador do Espiritismo, não como mais uma religião, com
sacerdócio organizado, rituais, paramentos, hierarquia, etc., mas, sim como o
Cristianismo restaurado, que tem sob a coordenação de seus ensinamentos
superiores o próprio Jesus.
A gênese é
mais uma obra de Kardec que nos dá clara visão sobre o verdadeiro caráter da
Doutrina Espírita. Fica aqui o convite ao amigo leitor para ler também este
belíssimo capítulo sobre o caráter da terceira
revelação, assim como esta monumental obra.
O Cristo sintetizou toda
a Lei Divina e “fez do amor de Deus e da caridade para com o próximo” condições
essenciais para a nossa “salvação” (it. 25). Por isso mesmo, repete Kardec, no
item 26 deste capítulo, a promessa de Jesus concretizada pela Doutrina Espírita,
com as quais encerramos estes apontamentos:
Muitas das coisas que vos digo ainda não as podeis
compreender, e muitas outras eu teria a dizer, que não compreenderíeis; é por
isso que vos falo por parábolas; mais tarde, porém, enviar-vos-ei o Consolador, o Espírito de Verdade, que restabelecerá
todas as coisas e vo-las explicará todas (João, 14:16; Mateus, 17).
O Espiritismo cumpre
fielmente essa promessa do Cristo e, portanto, restaura sua Boa-Nova em toda a pureza de revelação
Divina, como o demonstra o livro A gênese.
REFERÊNCIAS
KARDEC, Allan. A gênese: os milagres e as predições segundo o espiritismo. Tradução de Evandro Noleto Bezerra. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2009.
______. ______. Tradução de Guillon Ribeiro. 53. ed. (ed. histórica) Brasília: FEB, 2013.
______. Revista Espírita. Ano décimo segundo. Dezembro de 1869. Tradução de Evandro Noleto Bezerra. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2005.
PAROLIN, Sônia Regina Hierro; SARMENTO, Hélder Boska de Moraes; PONTES, Reinaldo Nobre. Organizadores. Conviver para amar e servir: fundamentação espírita sobre a metodologia do espaço de convivência, criatividade e educação pelo trabalho no serviço assistencial espírita. Brasília: FEB, 2013.
Publicado em Reformador,
jan. 2018, periódico mensal da Federação Espírita Brasileira.
Republicado, nesta data, com pequenas modificações.
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