Sesquicentenário
de desencarnação de Allan Kardec
Jorge
Leite de Oliveira
No dia 31 de março de 2019, comemoram-se
150 anos da desencarnação de Allan Kardec, o incansável Codificador da Doutrina
Espírita ou Espiritismo, encarregado por Jesus Cristo de organizar
metodicamente a Terceira Revelação Divina à Terra, a qual saía da cegueira
espiritual para a luz da fé raciocinada. Além de sua formação humanitária no renomado
instituto pestalozziano, situado em Yverdon, na Suíça, o futuro missionário do
Espiritismo era dotado de alta inteligência e coerência em sua busca da verdade
relativa aos habitantes deste mundo ora em transição.
Influenciado na juventude pelas ideias
positivistas do Iluminismo, ainda marcantes no século XIX, o futuro Codificador
do Espiritismo conhecia as teorias dos sábios dessa escola: Galileu Galilei
(1564- 1642), René Descartes (1596- 1650), John Locke (1632- 1704), Isaac
Newton (1642- 1727), Voltaire (1694- 1778), Jean-Jacques Rousseau (1712- 1778)
e outros filósofos. O instituto de Pestalozzi, situado em Yverdon, seguia
predominantemente as teorias iluministas, em especial as de Rousseau.
Galilei propôs o racionalismo como base
científica do pensamento. Criou a ideia moderna da observação e da
experimentação científica. René Descartes foi o autor da célebre frase: “penso,
logo, existo”. Para esse filósofo, “a razão é o critério de validade” para a
explicação do que é “verdadeiro, claro e distinto”. John Locke defendia o
empirismo filosófico e científico, segundo o qual, também, todo conhecimento
deve basear-se na observação e na experiência. Isaac Newton dizia que todos os
fenômenos da Natureza eram regidos pelas leis da Física e cabia à Ciência a
descoberta dessas leis. Voltaire, cujo nome verdadeiro era François-Marie Arouet, era anticlerical
e criticava o absolutismo e a intolerância religiosa em sua época. Defendia a
liberdade de pensamento de modo intransigente. Rousseau propôs a “soberania
popular da liberdade e da igualdade”, que influenciou a Revolução Francesa com
base no lema: “liberdade, igualdade e fraternidade”.
O
principiante espírita e mesmo alguns adeptos novatos do Espiritismo, em geral,
só conhecem as cinco obras da Codificação e, quando muito, a Revista
Espírita, além de mais um ou outro livro de Allan Kardec. Wantuil e Thiesen
fizeram uma relação completa de todas as obras consideradas importantes para o
estudioso conhecer o trabalho gigantesco realizado pelo Codificador do
Espiritismo ao longo de cerca de quatorze anos, pois este iniciou suas
observações e experimentações, na casa da Sra. Plainemaison em maio de 1855 e
só parou de trabalhar em 31 de março de 1869. Nessa data, ao receber uma de
suas obras das mãos de um caixeiro de livraria, “caiu pesadamente ao solo,
fulminado pela ruptura de um aneurisma” (WANTUIL;
THIESEN, 2004, v. II, p. 261).
Allan
Kardec desencarnou aos 64 anos e deixou à Humanidade o legado extraordinário da
Doutrina Espírita, Consolador prometido por Jesus no capítulo 14:16 a 18 do
Evangelho de João. As obras de Kardec e dos Espíritos, sob a direção do
Espírito Verdade, foram relacionadas por Wantuil e Thiesen. São elas:
1) O livro dos espíritos (1857); 2) Instrução prática sobre as manifestações
espíritas (1858); 3) O que é o
Espiritismo (1859); 4) Carta sobre o
espiritismo, por Allan Kardec (1860); 5) O livro dos médiuns ou guia dos médiuns e dos evocadores (1861); 6)
O espiritismo na sua expressão mais
simples (1862); 7) Viagem espírita
(1862); 8) Resposta à mensagem dos espíritas lioneses por ocasião
do Ano Novo (1862); 9) Resumo da lei
dos fenômenos espíritas ou primeira iniciação (1865); 10) O evangelho segundo o espiritismo (1865),
que na primeira edição, em 1864, recebera o nome de Imitação do evangelho
segundo o espiritismo; 11) Coleção de
composições inéditas extraídas de O evangelho segundo o espiritismo (1865); 12) O céu e o inferno ou a justiça divina segundo o espiritismo (1865);
13) Coleção de preces espíritas
(1865); 14) Estudo acerca da poesia
mediúnica, por Allan Kardec; 15) Caracteres
da revelação espírita; 16) A gênese,
os milagres e as predições segundo o espiritismo (1868); 17) Revista Espírita (jan. 1858 a abr. 1869);
18) Obras póstumas (1890) (WANTUIL;
THIESEN, 2004, v. II, p. 175).
Tudo isso
em quatorze anos de trabalho ininterrupto. Como
todo ser humano, Kardec cometia equívocos, mas tão logo percebesse que se
enganara, não titubeava em corrigir-se. Exemplo disso temos na sua dedução de
que a possessão, como substituição da manifestação da alma do obsidiado pelo
obsessor era impossível, conforme expôs em O
livro dos médiuns (Kardec, 2013a, 2ª parte, cap. 23, it. 241), mas retificou essa ideia em A gênese, quando explica que o socorro
de outras pessoas torna-se necessário quando a obsessão alcança o grau da
subjugação e da possessão, “porque neste
caso o paciente não raro perde a vontade e o livre-arbítrio” (KARDEC, 2013b,
cap. 14, it. 46, destaquei).[1]
No seu entendimento anterior, o que havia
era sempre subjugação do Espírito obsessor ao médium desequilibrado
espiritualmente. No cap. 14, itens 47 a 49 e no cap. 15, its. 29 a 35, o
Codificador continua sustentando seu novo entendimento sobre a possibilidade da
possessão.
Esse novo posicionamento de Kardec já
havia sido expresso na Revista Espírita de dezembro de 1863, quando ele
admite a possibilidade da possessão:
Dissemos que não havia possessos no
sentido vulgar do termo, mas subjugados. Queremos reconsiderar essa asserção,
posta de maneira um tanto absoluta, já que agora nos é demonstrado que pode
haver verdadeira possessão, isto é, substituição, embora parcial, de um
Espírito encarnado por um Espírito errante (KARDEC, 2004, p. 499).
Em seguida, apresenta um fato que
prova a possessão.
Até
abril de 1869, Kardec deixara preparadas as matérias a serem publicadas na Revista Espírita. Com sua desencarnação,
em 31 de março daquele ano, esse conteúdo foi publicado e, a partir de maio,
Armand Théodore Desliens, secretário-gerente assumiu a direção da revista. Segundo
Almeida,
Questões que não podiam ser
desenvolvidas amplamente em suas obras, sujeitas a limites de espaço, eram na Revue Spirite analisadas com minúcias.
Fazia a leitura do mundo da sua época e do passado, colhendo temas
aparentemente vulgares, sem importância, e interpretava-os do ponto de vista
espírita, enriquecendo-os com sua análise criteriosa, fazendo emergir suas
causas e consequências. Escrevia valiosos comentários das leituras que fazia em
livros, folhetins, artigos e documentos literários, filosóficos, científicos e
religiosos, de épocas diversas, desde que contivessem referências e
manifestações dos Espíritos ou princípios, ideias e pensamentos espíritas
(ALMEIDA, in: CAMPETTI SOBRINHO, 2009, p. 23).
O primeiro texto da Revista Espírita de maio de 1869
estampou a biografia de Allan Kardec. Seu autor, de início, lamenta
profundamente a desencarnação do “fundador do Espiritismo”. Entre outras
considerações, diz sobre este o seguinte:
Evitando as fórmulas abstratas da
Metafísica, ele soube fazer que todos o lessem sem fadiga, condição essencial à
vulgarização de uma ideia. Sobre todos os pontos controversos, sua
argumentação, de cerrada lógica, poucas ensanchas oferece à refutação e
predispõe à convicção. As provas materiais que o Espiritismo apresenta da
existência da alma e da vida futura tendem a destruir as ideias materialistas e
panteístas. Um dos princípios mais fecundos dessa Doutrina e que deriva do
precedente é o da pluralidade das existências, já entrevisto por uma multidão
de filósofos antigos e modernos e, nestes últimos tempos, por Jean Reynaud,
Charles Fourier, Eugène Sue e outros. Conservara-se, todavia, em estado de
hipótese e de sistema, enquanto o Espiritismo lhe demonstra a realidade e prova
que nesse princípio reside um dos atributos essenciais da Humanidade. Dele
promana a explicação de todas as aparentes anomalias da vida humana, de todas
as desigualdades intelectuais, morais e sociais, facultando ao homem saber
donde vem, para onde vai, para que fim se acha na Terra e por que aí sofre. As ideias
inatas se explicam pelos conhecimentos adquiridos nas vidas anteriores; a
marcha dos povos e a da Humanidade, pela ação dos homens dos tempos idos e que
revivem, depois de terem progredido; as simpatias e antipatias, pela natureza
das relações anteriores. Essas relações, que religam a grande família humana de
todas as épocas, dão por base, aos grandes princípios de fraternidade, de
igualdade, de liberdade e de solidariedade universal, as próprias leis da
Natureza e não mais uma simples teoria (In: KARDEC, maio 1869, p. 189).
Concluindo
esse resumo biográfico, diz o articulista:
Uma individualidade pujante
constituiu a obra. Era o guia e o farol de todos. Na Terra, a obra substituirá
o obreiro. Os crentes não se congregarão em torno de Allan Kardec; congregar-se-ão
em torno do Espiritismo, tal como ele o estruturou e, com os seus conselhos,
sua influência, avançaremos, a passos firmes, para as fases ditosas prometidas
à Humanidade regenerada (op. cit., p. 192).
Poucos
dias após sua desencarnação, o Espírito Allan Kardec dita a diferentes médiuns
diversas comunicações. Numa delas, esclarece que o ponto polêmico para que a
Doutrina Espírita fosse unificada era o da reencarnação. De início, ele mesmo
estranhara essa informação dos Espíritos, como afirmou em vida física, porém
analisou-a detidamente e percebeu que somente ela explicava a Justiça Divina
ante as diferenças sociais e individuais no mundo.
Em
outra comunicação, estimulou os espíritas que o sucederam a utilizarem firmeza
de vontade, prudência e tolerância entre todos. Seria necessário agir “sobretudo
pela caridade, pelo amor, pela afeição”. E, finalizando, recomenda amar os que
estão cegos pela ignorância e pelo materialismo, trabalhar sem recuo na
implantação do reinado do amor e da fraternidade para a extinção dos
“verdadeiros males”, dos “sofrimentos reais” que vêm da alma (In: KARDEC,
maio 1869, p. 224).
Também
da mais alta importância, em todas as épocas, foi a dissertação do Espírito
Allan Kardec na Sociedade Espírita de Paris, no dia 30 de abril de 1869, que
vem servindo de meta a ser alcançada
pelos bons espíritas e homens de bem. Encimando seu texto, lemos o seguinte
título: “O exemplo é o mais poderoso agente de propagação”. Pela sua
importância, na divulgação do Espiritismo, a seguir citamos trecho de sua mensagem:
O que vos recomendo principalmente
e antes de tudo, é a tolerância, a afeição, a simpatia de uns para com os
outros e também para com os incrédulos. Quando vedes um cego na rua, o primeiro
sentimento que se impõe é a compaixão. Que assim seja, também, para com os vossos
irmãos cujos olhos estão velados pelas trevas da ignorância ou da
incredulidade; lamentai-os, em vez de os censurar. Mostrai, por vossa doçura, a
vossa resignação em suportar os males desta vida, a vossa humildade em meio às
satisfações, vantagens e alegrias que Deus vos envia; mostrai que há em vós um
princípio superior, uma alma obediente a uma lei, a uma verdade também
superior: o Espiritismo. As brochuras, os jornais, os livros, as publicações de
toda sorte são meios poderosos de introduzir a luz por toda parte, mas o mais
seguro, o mais íntimo e o mais acessível a todos é o exemplo na caridade, a
doçura e o amor. Agradeço à Sociedade por ajudar os verdadeiros infortunados
que lhe são indicados. Eis o bom Espiritismo, eis a verdadeira fraternidade. Ser
irmãos é ter os mesmos interesses, os mesmos pensamentos, o mesmo coração (In:
KARDEC, junho 1869, p. 257)!
Em
virtude do surgimento de diversos conflitos bélicos surgidos poucos anos após a
desencarnação de Allan Kardec, como o da guerra entre França e Prússia (atual
Alemanha), com a devastação do país do Codificador, que foi submetido ao
domínio alemão durante anos, era preciso que os esforços do Cristo se voltassem
para um país onde sua Doutrina pudesse reflorescer. Esse país, sem privilégio algum
e sem demérito para as outras nações, é o Brasil, segundo o Espírito Humberto
de Campos:
Enquanto na Europa
a ideia espiritualista era somente objeto de observações e pesquisas nos
laboratórios, ou de grandes discussões estéreis no terreno da Filosofia, não
obstante os primores morais da Codificação Kardequiana, o Espiritismo penetrava
o Brasil com todas as suas características de Cristianismo Redivivo, levantando
as almas para uma nova alvorada de fé. Aí, todas as suas instituições se alicerçavam
no amor e na caridade (XAVIER, 2013, p. 178).
Inicia-se
em nosso país o sonho de Kardec da unificação da crença cristã, que se
expandirá, no futuro, na união de todas as religiões em torno de pontos comuns,
como a existência de Deus, a sobrevivência da alma após a morte, a imortalidade
do Espírito, sua manifestação após a existência física, a reencarnação e a
caridade como alavanca de ascensão e purificação do Espírito. Pois o Codificador jamais pensou no
Espiritismo como “religião do futuro”, mas sim como o “futuro das religiões”.
A
ideia de unificação das crenças em torno de pontos inquestionáveis e
comprovados pela Ciência do Espírito surgiu-lhe desde quando estudou no
instituto de Pestalozzi. Pelo que observou ali, como aluno inteligente e
solidário, concluiu que a intolerância religiosa entre católicos e protestantes
fora a grande causadora do fechamento da escola pestalozziana. Com essa ideia, baseada
numa Filosofia, tanto quanto possível inquestionável, e com fundamentos
científicos, Kardec passou a trabalhar em silêncio ao longo dos anos. Mas
faltava-lhe um elo superior para a realização desse ideal. Esse estava
inteiramente presente na Doutrina dos Espíritos. Ele não se baseava em teorias
humanas, mas nas daqueles que habitaram corpos físicos e agora recebiam
permissão divina para nos livrar da ignorância, segundo a promessa do Cristo:
“E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João, 8:32).
Nesse
sesquicentenário de desencarnação de Allan Kardec, cujo trabalho jamais deixou
de frutificar em solo brasileiro, para daqui reflorescer no mundo inteiro,
transcrevemos a seguir a última estrofe do belíssimo poema ditado pelo Espírito
Castro Alves e psicografado por Waldo Vieira:
O mundo voga num misto
De infortúnio e de esperança,
Pranteia a sorrir e avança
Nas Bênçãos do Excelso Pai!
Kardec reflete o Cristo;
Desfralda, em bandeira à frente,
O convite permanente:
— “Espíritas, trabalhai!...”
(XAVIER; VIEIRA, 2002, p. 120).
Referências
ALMEIDA,
Waldehir Bezerra de. Prefácio. In: CAMPETTI SOBRINHO, Geraldo.
Coordenador. Revista Espírita 1858 – 1869:
índice geral. Brasília: FEB, 2009.
KARDEC,
Allan. O livro dos médiuns ou guia dos
médiuns e dos evocadores. Trad. Evandro Noleto Bezerra da 2. ed. 1. imp. Brasília:
FEB, 2013a
_____. A gênese: os milagres e as
predições segundo o espiritismo. Trad. Evandro Noleto Bezerra da 1. ed.
francesa de 1868. 1. ed. 2. imp. Brasília: FEB, 2018.
_____.
_____. Trad. Evandro Noleto Bezerra da 5. ed. francesa de 1869. 2. ed. 1. imp.
Brasília: FEB, 2013b.
______.
Revista Espírita – ano VI - 1863.
Trad. Evandro Noleto Bezerra. Rio de Janeiro: FEB, 2004.
_____._____.
ano XII – 1869. Trad. Evandro Noleto
Bezerra. Rio de Janeiro: FEB, 2005.
SABEDORIA
POLÍTICA. Precursores e filósofos do iluminismo. https://www. sabedoriapolitica.com.br/products/precursores-e-filosofos-do-iluminismo/.
Acesso em 20 dez. 2018.
TORCHI,
Christiano. Espiritismo passo a passo com
Kardec. 2. ed. 1. reimp. Rio de Janeiro: FEB, 2008.
WANTUIL,
Zêus; THIESEN, Francisco. Allan Kardec:
o educador e o codificador. 2. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2004, v. II.
XAVIER,
Francisco Cândido. Brasil, coração do
mundo, pátria do evangelho. Pelo Espírito Humberto de Campos. 33. ed. 4.
imp. Brasília: FEB, 2013.
_____;
VIEIRA, Waldo. Antologia dos imortais.
4. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2002.
(Publicado no Reformador, Brasília, FEB, mar. 2019.)
[1] Tanto na primeira edição de A gênese, quanto na quinta edição, ambas
referenciadas ao final deste texto, esses itens são idênticos.
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