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sexta-feira, 28 de julho de 2023

 


DRAMA NO MUNDO
 
 O cavalheiro de renome e brilho,
 Quarenta e dois dezembros de existência,
 Tinha consigo um filho,
 Irrequieto rapaz de vinte primaveras...
 
 Viúvo, ele encontrara uma jovem bonita,
 De maneiras sinceras,
 Com quem se reuniria em casamento...
 
 Mas, conduzindo o filho de visita
 Ao lar da noiva, em doce entendimento,
 Eis que o rapaz por ela se apaixona
 E, moço inteligente,
 Ante a afeição que lhe transborda à tona
 Do coração ardente,
 Dá-se, de todo, à treva que o invade...
 E, tão astuto quanto desumano,
 Friamente executa um lamentável plano
 De indescritível crueldade...
 
 Notando, em certo dia, o pai acometido
 Por resfriado leve,
 Ministra-lhe o rapaz um forte entorpecente.
 O genitor caído,
 Em tremendo torpor, delira estranhamente,
 E, de dose a outra dose, parecia
 Mais doente e cansado, a cada novo dia.
 
 O rapaz busca a jovem para vê-lo
 E a moça foge amedrontada,
 Fitando o descontrole e o desmazelo
 Daquele que não mais conseguiria
 Conceder-lhe migalha de alegria
 Da ventura sonhada...
 
 O resto da ocorrência
 Qualquer pessoa pode imaginar:
 O fazendeiro se afastou do lar,
 Quase que inconsciente,
 E, recolhido a um pensionato
 Para enfermos da mente,
 Muito longe da casa,
 Eis que todo o equilíbrio se lhe arrasa,
 Ante em texto legal que o destitui
 Da regência de tudo o que possui.
 
 O filho conseguira ilhá-lo em supremo desgosto...
 O pai tanto reclama e tanto se tortura,
 Que apresenta, rebelde e descomposto,
 Um quadro indiscutível de loucura.
 
 Não se descuida o moço...Mês a mês,
 Envia ao pensionato o justo numerário
 Para o custeio necessário
 Das despesas do pai
 Que deixara de vez...
 
 Tempo vem, tempo vai
 E, ao termo de dois anos,
 De pesados e rudes desenganos,
 Certa noite, o doente
 Abandona a pensão e foge sem destino...
 
 O jovem na cidade interiorana
 Finalmente conquista
 A ex-noiva do pai que acredita, inocente,
 Na morte imaginária
 Do homem bom que adorara, ternamente,
 Através de uma carta simulada
 Que o moço sedutor lhe expõe à vista.
 
 O casal prosperou, vivendo agora
 Na metrópole grande, em formosa mansão,
 Um filho se lhe fez a base da união
 E marido e mulher viviam, de hora a hora,
 Em constante alegria...
 
 De lembranças do pai nenhum sinal
 Que lhes turvasse a vida
 No azul do céu mental...
 Festas, viagens, luxo, fantasia...
 O menino – seis anos de ternura –
 Vive ligado à ama que o não solta,
 Ambos sob a atenção de um guarda que os escolta,
 Era o garoto um gênio de doçura...
 
 Quase todos os dias,
 Quando descia ao pátio ajardinado,
 Via a criança um velho embriagado
 A sorrir-lhe, por trás das grades de um portão,
 — "Uma esmola, meu filho" – ele pedia,
 Mostrando o rosto magro em desconsolo.
 Ia o menino à ama e, em breve, aparecia,
 Trazendo-lhe, feliz, grande porção de bolo.
 — "Deus te abençoe, meu anjo!..."
 – O velho abençoava.
 Curioso, o pequeno perguntava:
 — "Onde é que você mora?"
 O pedinte dizia: — "Aqui por fora,
 Moro no Sítio da Calçada..."
 A ama, compreendendo a alusão do mendigo,
 Endereçava aos dois um olhar piedoso e amigo,
 Sabendo com bondade e simpatia
 Que a cena, no outro dia,
 Seria renovada.
 
 Certa noite em que os pais se afastaram mais cedo
 Para uma longa festa em chácaras distante,
 Dois ágeis salteadores
 Prendem o guarda num recanto escuro,
 Depois, transpondo o muro,
 Penetram na mansão...A dupla alcança
 O aposento onde jaz a tranquila criança...
 A ama é silenciada com mordaça,
 O pequeno, a gritar, segue sob a ameaça
 Das mãos armadas dos sequestradores;
 A dupla arrasta, a esmo, o menino que chora,
 Mas, atingindo os três o portão de saída,
 Alguém surge com fúria desmedida,
 Um homem que se agarra ao pequeno indefeso
 E clama em alta voz: "Sou da polícia!...
 Sereis mortos, ladrões!... Meu carro aceso
 Chegará neste instante..."
 
 Ouvindo aquela voz tonitruante,
 Um deles grita ao outro: — "Apague o velho tonto...
 Depois, é dar no pé, nosso carro está pronto!..."
 Enquanto o homem semiembriagado
 Guarda o pequeno ao lado,
 Ouve-se um tiro e o pobre tomba e geme...
 
 Despertaram servidores,
 Distanciam-se os dois sequestradores.
 No piso do jardim, faz-se enorme alarido.
 A governanta chega...O velho é conhecido,
 É o mendigo que ali espera esmola,
 O mesmo que a criança alivia e consola...
 
 Nisso o casal regressa à casa.
 Um empregado descreve o acontecido...
 Enquanto a jovem mãe abraça o filho amado,
 O dono da mansão busca ver o ferido,
 Depois, grita ao mordomo:
 "Temos aqui um herói, um amigo leal,
 Ele salvou meu filho, o anjo que conheço...
 Quero agora salvar-lhe a vida, a qualquer preço,
 No melhor hospital..."
 Mas o homem caído
 Nele pousou o olhar profundo
 E vendo-se a morrer, de segundo a segundo,
 Disse, calmo e sereno:
 — "Meu filho, agora é tarde...
 Se algo posso pedir, guarde o nosso pequeno..."
 Depois, como quem vê nas Telas do Invisível,
 Acrescentou com a voz a elevar-se de nível:
 — "Maria Clara veio... É a despedida...
 Devo hoje segui-la em outra vida...'
 
Ouvindo ali o nome
Da mãezinha que, há muito, falecera,
O dono da mansão, mais pálido que a cera,
Bradou atormentado:
— "Quem é você? Alguém do meu passado?”
 
 O velho sente o fim,
 Estirado a gemer, no piso do jardim...
 E, no esforço supremo a que se atira,
 Na tremenda exaustão, em que ele expira,
 Diz, ainda, no pranto que lhe cai:
 — "Graças aos Céus, cumpri o meu desejo,
 Ver você junto a mim é a luz maior que eu vejo...
 Deus o abençoe, meu filho!...Eu sou seu pai!..."
 
DOLORES, Maria; MEIMEI. (Espíritos). Somente amor. 1. ed. – Impressão pequenas tiragens. Brasília: FEB; São Paulo: IDEAL, 2022.


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