Páginas

quinta-feira, 6 de julho de 2023

 


ASSUNTO DE MULHER
 
 Notando um companheiro
 Trabalhando a chorar,
 Fraternalmente perguntei,
 Sem qualquer pretensão,
 Como podia eu suprir-lhe o pesar,
 Através da oração...
 
 Ele me respondeu, de sentimento aberto,
— "Irmã Dolores,
 O meu drama por certo
 É um caso igual a muito caso triste..."
 
 E como se fitasse o próprio centro
 Do romance de dor que trazia por dentro,
 Esclareceu, sereno:
 — "Penso que amor de mãe é luz maior que existe
 Depois do amor de Deus que nos envolve e aquece.
 
 Pois, creia. Há doze anos
 Fui expulso
 Do ninho maternal para sofrer
 Terríveis desenganos
 Que nunca admiti me vissem testar
 A energia da fé e o perdão por dever,
 Benfeitores daqui me prepararam
 Para existência nova...
 Cabia-me voltar à Terra, o educandário,
 Onde entraria em prova
 Para seguir, mais tarde, em nosso itinerário,
 Fui levado ao casal que me receberia;
 Ante a futura mãe que Deus me concedia,
 Enterneci-me tanto
 Que me desfiz em pranto de júbilo sublime...
 
 Era uma jovem de maneiras ternas,
 De olhar meigo e profundo...
 Pareceu-me, em verdade, ao conhecê-la,
 Que viveria ao lado de uma estrela
 Em regressando ao mundo...
 
 Amparado por nossos benfeitores,
 No preciso momento,
 Adormeci em branda anestesia,
 Depois, sem aflição, sem sofrimento,
 Não sei como me vi ligado a ela...
 
 Tinha a ideia de estar num sonho de alegria,
 Restituído ao tempo de criança...
 
 Dormindo, descuidado, em pequena cela,
 Junto à jovem mulher que me aguardava,
 Não podia dizer se vivia ou sonhava...
 Sentia-me crescer envolto de amor puro,
 Antevendo, feliz, o brilho do futuro...
 
 Mas, quando tudo parecia
 Que estava retornando a novo dia,
 Senti-me crescer deslocado, de repente,
 Sonâmbulo, inconsciente,
 Supliquei proteção naquele pesadelo...
 
 Ninguém, ninguém me ouvia o repetido apelo,
 Reconheci, por fim,
 Naquele coração a que o Céu me entregara
 Um coração de gelo,
 Que me batera e me expulsara
 Infeliz, humilhado e semimorto,
 Num processo de aborto...
 
 Por muito tempo andei numa nuvem estranha,
 Remoendo revolta e desesperação,
 Como quem despertava, a pouco e pouco,
 Até que, em certo dia, acordei quase louco,
 Padecendo terrível sensação...
 
 Não quis ouvir qualquer aviso
 Que me induzisse à bênção do perdão...
 
 Fiz-me um demônio de improviso,
 Duro perseguidor,
 Flagelando, a rigor,
 Aquela que me dera o menosprezo e a morte,
 Aniquilando-me à vontade
 Em regime de plena impunidade...
 
 Fui encontrá-la numa festa,
 Gritei-lhe em rosto o meu ressentimento,
 Ela não me escutou, na forma acostumada,
 Mas sentiu-me a presença envenenada,
 Sob a forma de culpa e de arrependimento...
 
 Exagerei-lhe a dor, amargurei-lhe a vida,
 Dia a dia, hora a hora, em agressão comprida,
 Até que meu desforço injusto e inglório,
 Vi-lhe a entrada num triste sanatório..."
 
 E o companheiro transformado
 Em obreiro do bem que servia, a meu lado,
 Solicitou, comovedoramente: -
 — "Agora que compreendo
 O dever de ajudar pela bênção do amor,
 Já não sou mais o obsessor...
 
 Preciso devolver-lhe o equilibro e a saúde,
 Fazer-lhe todo o bem que ainda não pude,
 Extirpar a raiz dos males que lhe fiz
 E auxiliá-la a ser feliz...
 
 Hoje é o dia em que devo estar com ela
 Em vista de paz numa prece singela...
 
 Quer ir comigo, Irmã?" – Falou o amigo.
 E lá me fui ao generoso abrigo
 Em que vive a doente...
 
 Não posso descrever o quadro comovente,
 A dor que me feriu ao vê-la desgrenhada.
 Ao sentir-nos de perto, a pobre dementada,
 Agitou-se ferida na memória
 E recapitulando a própria história,
 Começou a gritar em penoso estribilho: -
 — "Doutor, quero o meu filho...
 Onde ficou meu filho?..."
 
 Tocados de emoção,
 Oramos pela paz da doente querida,
 Mas, pensando na dor que geramos na vida,
 Roguei a Deus:
 — "Senhor, quando eu voltar ao mundo,
 Seja qual for o campo em que estiver,
 Não me deixes perder o sentido profundo
 Que puseste em amor, na missão da mulher!..."
 
DOLORES, Maria; MEIMEI. (Espíritos). Somente amor. 1. ed. – Impressão pequenas tiragens. Brasília: FEB; São Paulo: IDEAL, 2022.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Viva a Cruz Vermelha! (Irmão Jó)   A Terra é um cipoal De ervas daninhas do mal.   A dor internacional Faz do mundo um hospital....