Em
dia com o Machado 367 (Jó)
www.jojorgeleite@gmail.com
Havíamos terminado uma de nossas corridas
no maior parque urbano do mundo, ou seja, no Parque da Cidade de Brasília,
quando encontramos um velho amigo, chamado Resus, que também gosta de correr
ali. Após os cumprimentos iniciais, fomos tomar uma água de coco, num dos quiosques
do parque, e conversar um pouco sobre os benefícios da corrida, que tanto nos
apraz. Em seguida, ele narrou-me a seguinte história:
— Em minha última corrida aqui, ao me encaminhar
para o estacionamento, onde deixara meu carro, deparei-me com uma criatura que
parecia ter saído das profundezas do Hades.
Era uma anciã negra, esquálida, com aparência de mais de setenta anos. Estava
enrolada em trapos e num cobertor antigo de lã, todo puído. Trazia numa das
mãos uma garrafa pet com um líquido
verde e na outra uma nota dobrada de cinco reais.
Ao nos aproximarmos, perguntou-me:
“Moço, onde fica a rodoviária do Plano Piloto?”
Estávamos muito distantes da rodoviária.
Penalizado de sua situação, e como, para chegar ao seu destino, eu apenas
precisaria desviar-me cerca de dez minutos de minha rota, respondi-lhe: “Entre
no meu carro que eu a deixo lá”.
Disse isso meu amigo. E prosseguiu sua
narração:
— Ela parecia jamais ter entrado num
automóvel. Foi preciso que eu lhe abrisse a porta e a colocasse sentada no
banco da frente. Com certo pudor, ela aceitou minha ajuda.
No trajeto, perguntei-lhe o nome. Falou-me
que se chamava Cíntia. Perguntei-lhe também se iria pegar ônibus para sua
cidade. Nada respondeu. Dei-me conta de que estava diante duma pessoa bastante perturbada
e moradora de rua. Dizia frases desconexas e, a cada momento, perguntava: “Falta
muito para chegar?”
Após freada brusca do carro, ela
perguntou-me: “Quer me matar?” Respondi-lhe que não, e ela se acalmou.
Perguntei-lhe, então, se havia alguém esperando-a... Disse-me, simplesmente,
que seus sobrinhos eram consumidores de drogas.
Nesse momento, desconfiei que seu destino
final seria a própria rodoviária, em torno da qual alguns mendigos e
toxicômanos passam as 24 horas do dia. Embora lhe fosse fácil apoderar-se de
algumas moedas que estavam no porta-copos do banco da frente, onde a pusera
sentada, em nenhum momento ela fez menção de pegá-las.
Entre um e outro gole do líquido verde de
sua garrafa redonda de 500 ml, segurava meu braço e dizia: “Eu tenho medo de
polícia. Eu tenho medo de polícia”.
Perguntei-lhe se já fora maltratada pela
polícia, e apenas me respondeu que tinha medo de polícia.
Vez por outra, dizia-me: “Sabe quanto
custou esse cobertor? Mil e quinhentos reais”. O trapo, quando novo, não
custaria mais que uns cinquenta reais...
Pedi-lhe para orar a Deus por mim, que eu
faria o mesmo por ela. Foi o mesmo que falar alemão. A impressão que me deu foi
a de que jamais ouvira falar em Deus ou em oração...
Por fim, disse-me o amigo Resus,
concluindo sua narração:
— Ao chegarmos à antiga rodoviária, como
não estava acostumado a entrar ali, acabei parando atrás de vários ônibus, que
já estavam para sair. Do outro lado da faixa, bem próximo de nós, havia cerca de
seis a oito policiais militares. Ela, embora houvesse dito várias vezes que tinha
medo de polícia, não manifestou qualquer temor...
Ao nos verem estacionar ali, os policiais,
à frente seu comandante, vieram ao nosso encontro. Pela janela do carro, falei
ao gentil chefe da tropa: “Estou deixando esta criatura aqui”. E mostrei-lhe a pobre
anciã, envolta em trapos, que já descia do carro.
Ele olhou-nos, sorriu e fez sinal aos seus
colegas para seguirem em frente...
Cíntia desceu. Um fiscal de ônibus, que
estava ao lado do meu carro, aborrecido, pediu-lhe para sair dali. Ela
afastou-se, lentamente, como quem já conhecia o local, mas não sem antes me dizer,
com carinho imenso, ao tempo em que segurava seus trapos e trocados, somados
aos que lhe dei:
— Vai embora! Vai embora!
— Recomendei-lhe, então: “Cuidado com os
ônibus”.
Olhei-a pela última vez, enquanto ela
passava sob a luz de um poste. Seus olhos lacrimejavam.
Clique aqui e ouça uma bela canção sobre o
amor interpretada por Renato Russo: https://www.letras.mus.br/renato-russo/176305/
Nenhum comentário:
Postar um comentário