Allan
Kardec, a educação e o educador
Jorge Leite de Oliveira (12/3/2020)
Na
“[...] antiga família lionesa, católica, de nobres e dignas tradições”[1], nasceu Hippolyte Léon
Denizard Rivail, o futuro Allan Kardec, no dia 3 de outubro de 1804, em Lyon, e
desencarnou em 31 de março de 1869, na cidade
luz de Paris, na França. Seus pais chamavam-se Jean-Baptiste Antoine Rivail
e Jeanne Louise Duhamel. A família residiu na Rua Sala, nº 76. Sua casa
desapareceu quando foi inundada essa rua em 1840 e, dessa data até 1852,
segundo Henri Saussi, a rua foi alargada.[2]
Quando
tinha dez anos, Rivail foi matriculado no Instituto Yverdun, fundado e dirigido
pelo famoso pedagogo João Henrique Pestalozzi, considerado “o educador da
Humanidade”, como consta em epitáfio do monumento construído à sua memória em
Birr (cantão de Argóvia).[3] O Instituto, localizado na
Suíça, era na época a mais renomada escola da Europa. Ali estudou Roger de
Guimps, que escreveu um livro sobre a obra pestalozziana,[4] e várias outras grandes
personalidades destacadas do passado, que também escreveram sobre a excelência
do Instituto.
Os fundamentos da
educação, para Pestalozzi, eram a disciplina e o amor. Em seu Instituto, “[...]
não havia castigos nem recompensas. Pestalozzi não queria a emulação nem o
medo. Só admitia a disciplina do dever, ou melhor, a da afeição, do amor”,
segundo Gabriel Compayré.[5]
Acrescenta Wantuil, em
seguida, que Pestalozzi,
Nas admoestações que fazia, sempre
indiretas, punha tanta bondade e compreensão em suas palavras, que não raro os
alunos se retiravam com lágrimas nos olhos, de sincero arrependimento. Além de receberem
excelente preparo físico, intelectual e moral, os escolares eram igualmente
educados para a vida em sociedade, de modo a poderem enfrentar o mundo em
qualquer situação ou circunstância.[6]
Pestalozzi, embora
protestante, educava jovens de outras crenças com base na tolerância e distante
“[...] dos preconceitos e das paixões religiosas” de seu tempo. Para ele, o
importante era a prática da “[...] moral ativa e intuitiva e não a moral de
cartilha [...]”.[7]
Para
o pedagogo suíço, o ensino e a prática da moral, antes da instrução, deveria
ser a base da educação. Mais tarde, o agora compilador, organizador e
comentador da Doutrina Espírita, Allan Kardec, diria que somente o ensino moral
dos Evangelhos estaria livre de controvérsias e se constituiria na base para
que nos tornássemos verdadeiros cristãos e cidadãos de bem.
Assim
foram os primeiros anos do jovem Denizard Rival. A tradição de sua família era
a de que a transformação da sociedade teria por base o lema da Revolução
Francesa: “liberdade, igualdade, fraternidade” e, sobretudo, respeito à vida. E
isso só seria possível com a educação que se iniciasse pela elevação do caráter
da criança e do jovem, jamais pela violência, nunca pela discriminação à
crença, etnia, sociedade ou cultura de alguém.
Tendo
na educação o mais eficaz instrumento de elevação moral, sem o qual a instrução
não passaria de letra morta, a influência pestalozziana na formação de Rivail
seria de tal modo marcante que este criou, em Paris, o primeiro instituto
semelhante ao de Yverdun, substituído, em 1835, pelo Liceu Polimático. Neste
último lecionou, durante quinze anos, diversos cursos gratuitos, como os de
Química, Física, Astronomia e Fisiologia.[8]
Autor e tradutor de
várias obras, pois falava e escrevia fluentemente o alemão, tão bem como o
francês, além de outros idiomas, Rivail, aos vinte anos, publicou a obra intitulada Curso prático e teórico de aritmética,
que, somente no primeiro ano de sua publicação, teve duas edições, e por mais
de cinquenta anos foi reeditada e adotada na França.[9]
Zêus
Wantuil, op. cit., p. 26 a 30,
relaciona dezenove obras publicadas e onze diplomas recebidos pelo professor
Rivail em sua atividade de fundador, diretor de escola, professor, escritor e
tradutor. E conclui:
Entre outras matérias, lecionou,
como pedagogo de incontestável autoridade: Química, Matemática, Astronomia,
Física, Fisiologia, Retórica, Anatomia Comparada e Francês. Era dado a estudos
filológicos e de gramática da língua francesa. Conhecia profundamente o alemão,
o inglês, o holandês, assim como eram sólidos seus conhecimentos do latim e do
grego, do gaulês e de algumas línguas novilatinas, como a italiana e a
espanhola, as quais falava fluentemente.[10]
Kardec também estudou o
magnetismo durante cerca de trinta anos. Na Revista
Espírita de março de 1858, diz ele que
O magnetismo preparou o caminho do
Espiritismo, e o rápido progresso desta última doutrina se deve,
incontestavelmente, à vulgarização das ideias sobre a primeira. Dos fenômenos
magnéticos, do sonambulismo e do êxtase às manifestações espíritas não há mais
que um passo; tal é sua conexão que, por assim dizer, torna-se impossível falar
de um sem falar do outro.[11]
Esse
foi o período inicial da formação do educador, Hippolyte Léon Denizard Rivail,
que, por mais de trinta anos, se empenhou na educação de crianças e jovens
parisienses com base na didática pestalozziana, que adaptou e tornou conhecida
na França. Como atento observador que sempre fora, porém, sonhava contribuir
para a unidade de crença no mundo.
Entretanto, ele conhecia
bem o espírito de intolerância religiosa de todos os tempos, em especial no que
observou durante sua época de aluno do Instituto de Pestalozzi, quando
católicos e protestantes não se entendiam. Daí sua não estranheza, quando
constatou que a Igreja, instituição da tradição religiosa de sua família, não
percebeu nas manifestações dos Espíritos a inauguração de uma nova Era para a
Humanidade.
O
Espírito Zéfiro informou a Rivail que, em reencarnação ocorrida, provavelmente,
há cerca de dois mil anos, o nome deste fora Allan Kardec, sacerdote druida na
sociedade celta das Gálias. A partir dessa revelação, é com esse nome que o
mundo passa a conhecê-lo. A revista
Reformador, de novembro de 1976, p. 331 a 333, traz informações detalhadas
sobre os motivos da adoção do pseudônimo pelo qual seria conhecido o Codificador
do Espiritismo. Esse e outros periódicos mais antigos podem ser acessados no
site www.febnet.org.br.[12]
O
sonho de Kardec jamais fora fundar uma nova crença, mas ver a unificação do
aspecto moral em todas as religiões promovendo sua união. Com o advento dos
fenômenos mediúnicos e sua revelação superior, esforçou-se em mostrar ao mundo
a Filosofia e Ciência do Espírito, como a Nova Revelação cristã, sob a direção
do Espírito da Verdade. E propunha a todas as religiões promover o ecumenismo
religioso no qual imperasse a tolerância, a fraternidade, o amor e a caridade segundo
o modelo de Jesus, o Messias Divino.
Desse modo, ao citar
João, 10:16, que termina anunciando a existência de “um só rebanho e um só
pastor”, Kardec comenta o seguinte:
Por essas palavras, Jesus anuncia
claramente que os homens um dia se unirão por uma crença única; mas como poderá
efetuar-se essa união? A tarefa parece difícil, tendo-se em vista as diferenças
que existem entre as religiões, os antagonismos que elas alimentam entre seus
respectivos adeptos e a obstinação que manifestam em se acreditarem na posse
exclusiva da verdade. Todas querem a unidade, mas cada uma se vangloria de que
essa unidade se fará em seu proveito e nenhuma admite a possibilidade de fazer
qualquer concessão às suas crenças.[13]
Em seguida, o Codificador
do Espiritismo explica, cheio de otimismo, que a unidade religiosa ainda
ocorrerá, assim como a união entre os povos, pelos laços de fraternidade e pela
evolução da razão humana. E conclui o novo parágrafo dizendo: “Se é certo que a
Ciência demole, nas religiões, o que é obra dos homens e fruto de sua
ignorância das leis da Natureza, também é certo que não poderá destruir, apesar
da opinião de alguns, o que é obra de Deus e eterna verdade”.[14]
É
preciso que as religiões não se imobilizem e, sim, façam concessões e
sacrifícios maiores ou menores para se unirem em torno de um “[...] terreno
neutro, se bem que comum a todas”. Esse espaço é o da moral mais pura, mais lógica
e “[...] mais de harmonia com as necessidades sociais, o mais apropriado,
enfim, a fundar na Terra o reinado do Bem, pela prática da caridade e da
fraternidade universais”.[15]
Assim
sonhava Kardec, assim sonhamos todos nós, espíritas e não espíritas que
acreditamos na educação pelo amor como base de um mundo melhor. Informa Wantuil
que ano antes de desencarnar, o Codificador mantinha, ainda, intacto seu ideal
de mocidade quando escreveu:
A unidade de crença será o laço
mais forte, o fundamento mais sólido da fraternidade universal, obstada, desde
todos os tempos, pelos antagonismos religiosos que dividem os povos e as
famílias, que fazem sejam uns, os dissidentes, vistos pelos outros como
inimigos a serem evitados, combatidos, exterminados em vez de irmãos a serem
amados.[16]
“O Espiritismo foi a obra
de minha vida”, diria Allan Kardec, cujo tempo, fortuna, repouso e saúde
sacrificara pelo desejo de contribuir, humildemente, como instrumento de
divulgação e exemplificação das mensagens trazidas ao Mundo pelos Espíritos
Superiores, sob a direção amorosa do Cristo.
Plenamente consciente
sobre a importância da educação intelecto-moral, esse humilde servidor de Jesus
e missionário maior da Terceira Revelação, comenta o seguinte, em O evangelho segundo o espiritismo:
O homem só possui em plena
propriedade aquilo que lhe é dado levar deste mundo. Do que encontra ao chegar
e deixa ao partir, goza ele enquanto aqui permanece. Desde, porém, que é
forçado a abandonar tudo isso, não tem a posse real das suas riquezas, mas,
simplesmente, o usufruto. Que possui ele, então? Nada do que é de uso do corpo;
tudo o que é de uso da alma: a inteligência, o conhecimento, as qualidades
morais. Isso é o que ele traz e leva consigo, o que ninguém lhe pode arrebatar,
o que lhe será de muito mais utilidade no outro mundo do que neste. Depende
dele ser mais rico ao partir do que ao chegar, porque, daquilo que tiver
adquirido em bem, resultará a sua posição futura.[17]
Foi
isso que Allan Kardec aprendeu desde criança e dedicou toda a sua vida
missionária a transmitir ao próximo, como verdadeiro espírita e cristão que ele
sempre soube ser. Ao tomar conhecimento de sua missão, como verdadeiro apóstolo
do Cristo, ele expressou-se, em resposta ao Espírito Verdade, cheio de júbilo e
gratidão ao Criador:
Espírito Verdade, agradeço os teus
sábios conselhos. Aceito tudo, sem restrição e sem ideia preconcebida.
Senhor! já que te dignaste lançar
os olhos sobre mim para cumprimento dos teus desígnios, faça-se a tua vontade!
A minha vida está nas tuas mãos; dispõe do teu servo. Reconheço a minha
fraqueza diante de tão grande tarefa; a minha boa vontade não desfalecerá, mas
talvez as forças me traiam. Supre a minha deficiência; dá-me as forças físicas
e morais que me forem necessárias. Ampara-me nos momentos difíceis e, com o teu
auxílio e o amparo dos teus celestes mensageiros, tudo farei para corresponder
aos teus desígnios.[18]
Que
o exemplo desse extraordinário missionário nos sirva de incentivo para que
jamais aleguemos falta de tempo ou de bom ânimo ante a necessidade de aprender
para melhor servir. E que jamais nos esqueçamos de que sem humildade, abnegação,
perdão e devotamento ao próximo não teremos compreendido bem sua obra
sintonizada com a do Espírito Verdade.
Cristo espera de nós o
bom cumprimento dos pequenos compromissos, para que sejamos dignos de missão
mais elevada, como foi a de Allan Kardec, o educador
espírita da Humanidade.
[1]
WANTUIL, Zêus; THIESEN, Francisco. Allan
Kardec: o educador e o codificador. 2. ed. Rio de Janeiro: Federação
Espírita Brasileira, 2004, v. 1, p. 21.
[2]
Loc. cit.
[3] Id., p. 29.
[4] Id., p. 31.
[5] Apud. WANTUIL; THIESEN. Op. cit., p. 34.
[6] Loc. cit.
[7] Id., p. 71.
[8] WANTUIL, Zêus. Grandes espíritas do Brasil. Rio de
Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 1969, p. 18 e 22.
[9] Id., p. 21.
[10] Id., p. 30.
[11] KARDEC, Allan. Revista Espírita. Ano I, 1858. Trad.
Evandro Noleto Bezerra. 5. ed., 1. imp. Brasília: FEB, 2014, p. 147.
[12]
FEDERAÇÃO Espírita Brasileira. Rivail – o
direito de ser Kardec. Disponível em: . Acesso em
7 de julho de 2018.
[13] KARDEC, Allan. A gênese. Trad. Evandro
Noleto Bezerra. 2. ed. 1. imp. Brasília: FEB, 2013, p. 327.
[14] Loc.
cit.
[15]
Id., p. 328.
[16]
WANTUIL, Zêus; THIESEN, Francisco. Allan
Kardec: o educador e o codificador. 2. ed. Rio de Janeiro: Federação
Espírita Brasileira, 2004, v. 1, p. 83.
[17]
KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. Trad. de Evandro Noleto
Bezerra. 2. ed. 4. imp. Brasília: FEB, 2017, cap. 16, it. 9, p. 216.
[18]
KARDEC, Allan. Obras póstumas. Trad.
Evandro Noleto Bezerra. 2. ed., 1. imp. Brasília: FEB, 2016, 2. Parte: Minha
missão, p. 252.
Publicado em
Reformador/FEB, out. 2018.
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