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quinta-feira, 26 de março de 2020


EVOLUÇÃO INDIVIDUAL E COLETIVA
Jorge Leite de Oliveira

Na questão 27 d’O livro dos espíritos,[1] somos informados da existência de três elementos gerais no Universo: Deus, espírito e matéria. A palavra espírito aqui, com inicial minúscula, não se refere à individualidade, mas sim ao elemento inteligente do Universo que formará as individualidades chamadas Espíritos. A ligação do espírito à matéria dá-se pelo princípio vital, originado do fluido universal, como lemos na questão 65 do livro citado (grifei).
Também o instinto se origina da inteligência universal, de acordo com o contido na questão 73 e 75 da obra citada. Ele pode guiar-nos para o bem até mesmo com mais segurança do que a razão. Em comentário final à alínea a) da questão 75, Allan Kardec esclarece-nos que “O instinto varia em suas manifestações, conforme as espécies e as suas necessidades. Nos seres que têm a consciência e a percepção das coisas exteriores, ele se alia à inteligência, isto é, à vontade e à liberdade”.
É na questão 76, ao se referir aos “seres inteligentes da Criação”, utiliza-se a palavra Espíritos “para designar as individualidades dos seres extracorpóreos e não mais o elemento inteligente universal”. Entretanto, como lemos na questão 79, o Espírito é a “individualização do princípio inteligente”, como o corpo é “a individualização do princípio material”. Só não nos é dado conhecer a “época e o modo dessa formação”.
A evolução do Espírito dá-se, “não pela fieira do mal, mas pela da ignorância”. Têm, entretanto, o livre-arbítrio. Aquele que optar sempre pelo bem, na escolha entre este o mal, livra-se da influência dos Espíritos imperfeitos (q. 120 a 124).
Como o mundo espiritual é “o principal na ordem das coisas” e “preexiste e sobrevive a tudo” (q. 85), na análise da evolução do ser e da influência dos Espíritos em nossas existências físicas, é importante citarmos a classificação dos Espíritos em seu “grau de adiantamento”, como foi proposto a Allan Kardec e ele anotou nos itens 100 a 113 d’O livro dos espíritos:
A terceira ordem é a dos Espíritos imperfeitos, que abrange cinco classes da décima à sexta classe, nesta sequência descendente de Espíritos: impuros; levianos; pseudossábios; neutros; e batedores e perturbadores. Embora as diferentes denominações deem-nos a impressão de certa gradação espiritual, todos eles foram enquadrados na categoria geral de Espíritos imperfeitos.
As características gerais desses Espíritos são o predomínio da matéria sobre o espírito, a propensão ao mal, a ignorância, o orgulho, o egoísmo e todas as más paixões consequentes ao egoísmo. A malícia, a leviandade, a irresponsabilidade de seus atos, mais do que a pura maldade são características de alguns. Outros “não fazem o bem nem o mal”. Os piores comprazem-se em fazer o mal. A inteligência se alia à maldade em outros, mas seus conhecimentos são limitados e, por vezes, contraditórios, carregados de preconceitos. Esclarece-nos Kardec, na questão 101, que “Todo Espírito que, em suas comunicações, trai um mau pensamento, pode ser classificado na terceira ordem”.
A segunda ordem é a dos Espíritos bons. Essa ordem possui quatro classes de Espíritos: benévolos; de ciência; de sabedoria; e superiores.
São características desses Espíritos, o predomínio do Espírito sobre a matéria e “o desejo do bem”. Diferenciam-se por possuírem, uns mais do que outros, ou a ciência; ou a sabedoria; ou a bondade. Ainda não alcançaram a perfeição e, portanto, “não estão ainda completamente desmaterializados”. Desfrutam a ventura dos bons, que “compreendem Deus e o Infinito”. Estão livres dos sentimentos inferiores, como o ciúme, a inveja, o remorso e qualquer paixão negativa. Amam-se profundamente e sentem-se felizes pelo bem que fazem e pelo mal que evitam. Até atingirem a perfeição completa, todos esses Espíritos ainda terão que passar por provas.
A primeira ordem possui classe única dos Espíritos que não mais sofrem influência alguma da matéria. Alcançaram toda a “perfeição de que é suscetível a criatura” e “estão livres das provas e expiações. Não estando mais sujeitos à reencarnação em corpos perecíveis, realizam a vida eterna no seio de Deus” [...] (q. 113). São os Espíritos puros.
Feitas essas considerações preliminares, que nos mostram a importância da vontade na escolha entre o bem e o mal, com base no livre-arbítrio individual, que ocorre paulatinamente, “[...] à medida que o Espírito desenvolve a consciência de si mesmo” (q. 122), passemos à análise do que informa o Espírito Pascal na Revista Espírita de maio de 1865: “A Humanidade é um ser coletivo que deve marchar, se não em seu conjunto, ao menos por grupos, para o progresso do futuro [...]”.[2]
Segundo Pascal, há duas expressões da verdade: a relativa, humana; e a absoluta, Divina. Com base na verdade relativa, pois muitas coisas que desconhecemos estão nos mistérios de Deus, ainda vedados ao nosso conhecimento, propomos, a seguir uma classificação binária nos níveis desse ser coletivo citado por Pascal: o ser coletivo comum e o ser coletivo superior.
Características do ser coletivo comum: a) instinto pouco diferenciado da razão; b) identidade de pensamentos, atos e falas em níveis inferiores; c) pouca propensão para mudanças no estilo de vida; d) conhecimentos limitados; e) predomínio das paixões inferiores e do interesse pessoal; f) egoísmo e orgulho como fontes de todos os sentimentos negativos, como a inveja, o ciúme, o ódio, a ambição pelas coisas materiais, a malquerença etc.
Características do ser coletivo superior: a) instinto a serviço da razão e do bem; b) harmonia de pensamentos, palavras e ações nobres; c) inquietação permanente em auxiliar o próximo e aumentar seus conhecimentos morais e intelectuais; d) conhecimentos superiores; e) predomínio das paixões superiores e da abnegação; f) humildade e altruísmo como bases de sentimentos positivos, tendo como meta a caridade no seu sentido mais amplo: “benevolência para com todos, indulgência para as imperfeições dos outros [e] perdão das ofensas”.[3]
O Espírito Pascal ainda nos esclarece, na Revista Espírita, que nos movemos e agitamos “sob a influência de três causas, que são: a reflexão, a inspiração e a revelação”. Em seguida, desenvolve seu raciocínio sobre cada uma dessas causas:

A reflexão é a riqueza de vossas lembranças, que agitais voluntariamente [...]. A inspiração é a influência dos Espíritos extraterrestres, que se misturam mais ou menos às vossas próprias reflexões para vos compelir ao progresso [...], a prova irrecusável de uma causa oculta que vos impulsiona para frente, e sem a qual permaneceríeis estacionários [...]. A revelação é a mais elevada das forças que agitam o Espírito do homem, porque vem de Deus e só se manifesta por sua Vontade expressa [...].[4]

Deduz-se, das palavras de Pascal, que os Espíritos enquadrados nas características de ser coletivo comum têm a reflexão como móvel de suas ações. Sua característica principal, a nosso ver, é a do predomínio das paixões inferiores, é o egoísmo, caracterizado como interesse pessoal, mas comum a esse grupo. O egoísmo é o pai de todas as imperfeições morais.
Após pergunta do Codificador do Espiritismo sobre qual o “sinal mais característico da imperfeição, ele obtém como resposta que é o “interesse pessoal”. E prossegue o Espírito esclarecendo:

Muitas vezes as qualidades morais se assemelham, como num objeto de cobre, à douração que não resiste à pedra de toque. Um homem pode possuir qualidades reais que levem o mundo a considerá-lo homem de bem, mas essas qualidades, embora assinalem um progresso, nem sempre suportam certas provas, bastando algumas vezes que se fira a corda do interesse pessoal para que o fundo fique a descoberto. O verdadeiro desinteresse é coisa tão rara na Terra que é admirado como fenômeno quando se manifesta.
O apego às coisas materiais constitui sinal notório de inferioridade, porque, quanto mais o homem se aferra aos bens deste mundo, tanto menos compreende o seu destino. Pelo desinteresse, ao contrário, ele prova que vê o futuro de um ponto de vista mais elevado.[5]

            Por outro lado, a inspiração que nos leva ao progresso, ao se misturar com nossas reflexões, segundo Pascal, aplica-se à participação dos bons Espíritos, que influem de tal modo, em nossos pensamentos e atos que, frequentemente, eles nos dirigem.[6] Todavia, se somos influenciados pelos bons, também o somos pelos maus Espíritos. Daí a necessidade de vigiar e orar, recomendada por Jesus e citada por Mateus, 26:4: “Vigiai e orai, para que não entreis em tentação [...]”.
            No que se refere à individualidade integrada no ser coletivo superior, prevalece o “desinteresse pessoal pelo bem do próximo, sem segundas intenções”. Ou seja, a sublimidade das virtudes está “na mais desinteressada caridade”.[7]
            Analisando-se as características das individualidades do ser coletivo comum ou do ser coletivo superior, e feito um honesto autoexame de consciência, podemos observar em nós o enquadramento total ou parcial na primeira ou na segunda categoria. Entretanto, para que possamos nos enquadrar na categoria dos seres plenamente integrados ao ser coletivo superior, antes de qualquer outra coisa, precisamos despertar, como recomenda Paulo aos Efésios, lembrando o apelo a Isaías, 51:17 ao despertamento de Jerusalém: “Desperta, ó tu que dormes, e levanta-te dentre os mortos, e Cristo te esclarecerá” (Efésios, 5:14).
            Comentando esse versículo paulino, exorta-nos o Espírito Emmanuel:

Grande número de adventícios ou não aos círculos do Cristianismo acusa fortes dificuldades na compreensão e aplicação dos ensinamentos de Jesus. Alguns encontram obscuridades nos textos, outros perseveram nas questiúnculas literárias. Inquietam-se, protestam e rejeitam o pão divino pelo envoltório humano de que necessitou para preservar-se na Terra.
Esses amigos, entretanto, não percebem que isto ocorre porque permanecem dormindo, vítimas de paralisia das faculdades superiores.
Na maioria das ocasiões, os convites divinos passam por eles, sugestivos e santificantes; todavia, os companheiros distraídos interpretam-nos por cenas sagradas, dignas de louvor, mas depressa relegadas ao esquecimento. O coração não adere, dormindo amortecido, incapaz de analisar e compreender.
A criatura necessita indagar de si mesma o que faz, o que deseja, a que propósitos atende e a que finalidades se destina.
Faz-se indispensável examinar-se, emergir da animalidade e erguer-se para senhorear o próprio caminho.
Grandes massas, supostamente religiosas, vão sendo conduzidas, através das circunstâncias de cada dia, quais fileiras de sonâmbulos inconscientes. Fala-se em Deus, em fé e em espiritualidade qual se respirassem na estranha atmosfera de escuro pesadelo. Sacudidas pela corrente incessante do rio da vida, rolam no turbilhão dos acontecimentos, enceguecidas, dormentes e semimortas até que despertem e se levantem, pelo esforço pessoal, a fim de que o Cristo as esclareça.[8] (grifos meus).

Os seres humanos que ainda se situam, predominantemente, na categoria do ser coletivo comum dirão que o conteúdo dessa mensagem é excelente para fulana ou sicrano, mas não para si. E, julgando-se mentes privilegiadas na interpretação da verdade, sentem-se na obrigação de impor seus conhecimentos ao próximo, de quem não aceitam controvérsias. Tais pessoas, dificilmente admitem que podem estar equivocadas. Algumas, por orgulho, mesmo que percebam ter transitado por avenida contrária à do “caminho, verdade e vida”, que é o Cristo, continuam combatendo seus irmãos que se mantêm fieis ao roteiro traçado pelo Senhor.
As individualidades humanas situadas na categoria do ser coletivo superior, prevalentemente, lerão o texto manuelino como um alerta pessoal, a fim de corrigirem em si os defeitos que observam no próximo. Desse modo, buscarão a inspiração do Plano Superior e a sintonia com Deus, a quem Jesus reitera nossa necessidade de amar sobre todas as coisas, com o objetivo de trabalhar em nós a humildade e o amor ao bem desinteressado.
Isso implica em estudar sempre, aprender com os próprios erros, que reconheçam sem vaidade ferida, e fazer de suas vidas um permanente exercício da caridade, qual foi ensinada a todos nós e transmitida a Allan Kardec pelo Espírito de Verdade. Só estará em condições de captar plenamente a influência da revelação, como Verdade Divina, a coletividade dos Espíritos superiores plenamente identificada com o Cristo. Participam dela os seres que, conforme afirma Emmanuel, despertam e se levantam, “pelo esforço pessoal”, por seu incessante serviço no bem.  Até que, pela aquisição de conhecimentos morais e intelectuais, se tornem Espíritos puros e, como tais, passem a fazer parte da comunidade dos Espíritos Crísticos, Ungidos ou Messias Divinos, quando já não sofrerão nenhuma influência da matéria, mas, pelo contrário, terão total domínio sobre esta.
           



[1] KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 4. ed. 4. imp. Brasília: FEB, 2017.
[2] ______, Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos.ano 8, n. 5, maio 1865. Dissertações espíritas, it. III A Verdade. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 4. ed. 1. imp. Brasília: FEB, 2015.
[3] ______. O livro dos espíritos. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 4. ed. 4. impr. Brasília: FEB, 2017, q. 886.
[4] ______. Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos.ano 8, n. 5, maio 1865. Dissertações espíritas, it. III A Verdade. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 4. ed. 1. imp. Brasília: FEB, 2015.
[5] ______. O livro dos espíritos. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 4. ed., 4. impr. Brasília: FEB, 2017, q. 895.
[6] ______. ______. q. 459.
[7] ______. ______. q. 893.
[8] XAVIER, Francisco Cândido. Pão nosso. Pelo Espírito Emmanuel. 1. ed. 10. imp. Brasília: FEB, 2016, cap. 68 Necessário acordar.


Publicado em Reformador de junho de 2018. Brasília: FEB.


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