A POESIA E AS MARCAS DO SUICÍDIO EM
ANTERO DE QUENTAL
Jorge Leite de
Oliveira
Em setembro de 1861,
Kardec publicou, na Revista Espírita,
um debate literário e filosófico entre os Espíritos Buffon, Lamennais, Gerard
de Nerval, Visconde de Launay e Bernardin de Saint-Pierre. A conclusão coube ao
Espírito Erasto, discípulo de Paulo que, entre outras coisas, disse o seguinte:
[...] Logicamente
deveis deduzir que o ser pessoal pensante prossegue, mesmo depois da tumba,
seus estudos e trabalhos e que, por meio dessa lucidez que é o apanágio
particular dos Espíritos, comparando seu pensamento espiritual com o seu
pensamento humano, deve eliminar tudo quanto o obscurecia materialmente.
Muito bem! o que é verdadeiro para Lamennais o é igualmente para os outros, e
cada um, no vasto país da erraticidade[1], conserva suas aptidões e
sua originalidade. Buffon, Gérard de Nerval, o Visconde de Launay, Bernardin de
Saint-Pierre conservam, como Lamennais, os gostos e a forma literária que
observáveis neles, quando vivos. Creio útil chamar vossa atenção sobre essa
condição de ser do nosso mundo de além-túmulo, para que não venhais a crer que
abandonamos instantaneamente nossas inclinações, costumes e paixões quando
despimos as vestes humanas. Na Terra, os Espíritos são como prisioneiros, que a
morte deve libertar; no entanto, assim como aquele que está sob grades tem as
mesmas propensões conserva a mesma individualidade quando em liberdade, os
Espíritos conservam suas tendências, originalidade e aptidões, ao chegarem
entre nós. [...] Que Deus seja convosco! Erasto (In: KARDEC, 2004, p. 392-
394).
Segundo
o escritor Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon, “o estilo é o próprio homem”.
Augusto Meyer vai além e diz que “[...] o estilo é mais que o homem [...], o
autor transcende o homem, projeta-se no tempo, salta por cima da sua cova, com
toda a vantagem de poder transformar-se em essência transmissível por meio da
leitura e renascer indefinidamente, ao calor da compreensão [...]” (MEYER, apud
TAVARES, 1984, p. 398). Nosso estilo, tanto no que falamos quanto no que
escrevemos, para Proença Filho (1989, p. 54), expressa nossas emoções e apelo
aos receptadores de nossa mensagem, mais do que o seu sentido referencial, o
que não significa a inexistência deste, mas a predominância da escolha daqueles
sentidos, chamados de funções da linguagem pelos linguistas Karl Bühler e Roman
Jakobson.
Como
comprovação da realidade do Espírito imortal, exemplificaremos a seguir de que
modo o ser desencarnado se manifesta como “autor que transcende o homem”. Para isso, escolhemos três médiuns: Fernando
de Lacerda, Francisco Cândido Xavier e Waldo Vieira; e o Espírito Antero de
Quental, que foi um dos maiores sonetistas mundiais. Confrontamos o estilo
literário de sua obra quando esteve encarnado e sua produção de Espírito
desencarnado.
Antero
nasceu na ilha de São Miguel em 1842 e desencarnou em 1891. Em artigo, Eça de
Queirós o considerou “gênio e santo”, devido à sua poesia metafísica e grande
bondade. Entretanto, vítima de tenaz hipocondria, Quental optou pelo suicídio,
sofrendo no Além todos os horrores desse ato, como narra na obra do médium
Lacerda (2003, v.2).
Segundo Tufano (1990),
identifica-se em Antero a “[...] poesia marcadamente filosófica, angustiada por
incertezas religiosas e metafísicas, claramente presentes em seus sonetos”. Neste
poema, escrito quando o poeta ainda estava vivo,
percebemos sua incerteza quanto à vida espiritual: A ideia
Força
é pois ir buscar outro caminho!
Lançar
o arco de outra nova ponte
Por
onde a alma passe — e um alto monte
Aonde
se abra à luz o nosso ninho.
Se
nos negam aqui o pão e o vinho,
Avante!
É largo, imenso esse horizonte...
Não,
não se fecha o mundo! E além, defronte,
E
em toda a parte há luz, vida e carinho.
Avante!
Os mortos ficarão sepultos...
Mas
os vivos que sigam, sacudindo
Como
o pó da estrada os velhos cultos!
Doce
e brando era o seio de Jesus...
Que
importa? Havemos de passar, seguindo,
Se
além do seio dele houver mais luz! (TUFANO,
1990, v. 2, p. 143).
Percebemos,
no soneto acima, um paradoxo espiritual. Inicialmente, o poeta propõe novo rumo
à alma humana. Nova direção onde possa encontrar abrigo (ninho) e alimento (pão
e vinho). E afirma que “esse horizonte” é pleno de possibilidades (é largo,
imenso), abrindo-se em vastas alternativas, pois “em toda a parte há luz, vida
e carinho”.
No
primeiro terceto, porém, se continua incentivando-nos a seguir adiante, conclui
que cabe aos vivos sacudir, como pó, os “velhos cultos”, inúteis, pois “Os
mortos ficarão sepultos”. No último terceto, o poeta parece desiludido com
mensagem “doce e branda” de Jesus, e dá-nos a esperança de seguir adiante, mas
isso somente ocorrerá “se” além de sua pessoa (metáfora d’o seio dele) houver mais luz, ou mais vida.
Noutro
soneto de Quental, escrito quando ele ainda estava vivo, percebemos, também, no último verso do terceto final, a
expressão de sua angústia, devido à possibilidade de nada mais encontrar, após a morte. Ei-lo: O palácio da ventura
Sonho
que sou um cavaleiro andante.
Por
deserto, por sóis, por noite escura,
Paladino
do amor, busco anelante
O
palácio encantado da Ventura!
Mas
já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada
a espada já, rota a armadura...
E
eis que súbito o avisto, fulgurante
Na
sua pompa a aérea formosura!
Com
grandes golpes bato à porta e brado:
Eu
sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos,
porta d’ouro, ante meus ais!
Abrem-se
as portas d’ouro, com fragor...
Mas
dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio,
escuridão — e nada mais!
(in: TAVARES, 1984, p. 479).
O soneto abaixo não
apenas marca a tendência à descrença total do poeta-filósofo, como também a má influência dos Espíritos
sobre sua mente atormentada: Espectros
Espectros que velais, enquanto a custo
Adormeço um momento, e que inclinados
Sobre os meus sonos curtos e cansados
Me encheis as noites de agonia e susto!...
De que me vale a mim ser puro e justo,
E entre combates sempre renovados
Disputar dia a dia a mão dos Fados
Uma parcela do saber augusto,
Se a minh'alma há de ver, sobre si fitos,
Sempre esses olhos trágicos, malditos!
Se até dormindo, com angústia imensa,
Bem os sinto verter sobre o meu leito,
Uma a uma verter sobre o meu peito
As lágrimas geladas da descrença! (QUENTAL,
2019).
Vinte
e oito anos depois do seu suicídio, ou seja, em 1919, Antero ditou ao médium
português Fernando de Lacerda longo texto, no qual se lamentava pelo ato de rebeldia
e covardia perante a Lei Divina e relatava os sofrimentos decorrentes disso. O
Espírito narrou então as terríveis consequências de seu ato desesperado aos 49
anos, no segundo dos quatro volumes da obra intitulada Do país da luz, que contém texto de diversos Espíritos portugueses
e franceses. Ainda nessa obra psicografada por Lacerda, nos volumes três e quatro,
encontramos cinco poemas do Espírito Antero de Quental, dentre os quais
selecionamos este primeiro de uma trinca de sonetos: À morte
I
Tu,
não és o Ser único, absoluto,
Ó
Morte, que eu amei em outra era,
Quando
a meus olhos foste a primavera
Que
encantava o meu ser irresoluto.
Eu
amava o teu negro olhar de luto,
A
tua estranha forma de Quimera,
Deusa
da Liberdade então te crera
E
sorrindo, busquei-te resoluto.
Mas
como me enganei! Tu não me deste
O
descanso que tanto apetecia!
Do
sofrer nova forma ofereceste!
Atiraste-me
a nova gemonia,
Onde,
em lugar de luz que me acendeste,
Só
a Noite encontrei, que não tem Dia! (LACERDA,
2003, v. 3, p. 220).
A
partir de 1932, Chico Xavier publica dezenove sonetos do Espírito Antero de
Quental, nos quais este ratifica sua decepção por não ter confiado em Deus e ter
optado pelo suicídio. Mais uma vez, o poeta utiliza-se, num de seus novos
sonetos, do título anterior para expressar seu tormento espiritual: À morte
Ó
morte, eu te adorei, como se foras
O
fim da sinuosa e negra estrada,
Onde
habitasse a eterna paz do Nada
Às
agonias desconsoladoras.
Eras
tu a visão idolatrada
Que
sorria na dor das minhas horas,
Visão
de tristes faces cismadoras,
Nos
crepes do Silêncio amortalhada.
Busquei-te,
eu que trazia a alma já morta,
Escorraçada
no padecimento,
Batendo
alucinado à tua porta;
E
escancaraste a porta escura e fria,
Por
onde penetrei no Sofrimento,
Numa
senda mais triste e mais sombria
(XAVIER, 2002, p. 86).
Por fim, foi o médium Waldo Vieira quem psicografou um
soneto do Espírito Quental. Neste, como em outros poemas psicografados por
Fernando de Lacerda e Chico Xavier, o poeta português faz sua reverência a Deus,
conclama o leitor a suportar com coragem suas provas e expiações e esforçar-se
para alcançar, a perfeição na Eternidade: A
lâmpada e a chama
A
alma clamou cansada ao corpo, um dia:
—
Por que me prendes, barro vil e escuro?
Quem
te sustenta por lodoso muro,
Acalentando
a noite que me espia?
Quem
te mandou, algema da agonia,
Escravizar-me
o sonho vivo e puro?
Quem
te criou, cadeia de monturo,
Excitando-me
a dor e a rebeldia?
E
o corpo respondeu, calmo e sublime:
—
Eu sou, na Terra, a cruz que te redime,
Não
me interpretes por sinistra grade...
Deus
modelou-me lâmpada de lodo,
Na
qual és chama do Divino Todo
Para
fulgir além, na Eternidade... (VIEIRA,
2002, p. 132).
Quando Pilatos indaga a
Jesus se este é rei, o Senhor lhe responde que seu Reino não é deste mundo. Em
seguida, o Governador da Galileia reitera a pergunta: “Logo, tu és rei?” e ouve
a resposta que o atormentaria até o fim de sua existência terrena: “Tu o dizes;
sou rei; não nasci e não vim a este mundo senão para dar testemunho da verdade.
Aquele que pertence à verdade escuta a minha voz” (João, 18: 33, 36 e 37).
Antero de Quental enveredou
pela ciência positiva, conforme ele próprio afirmou num de seus sonetos. Se
houvera estudado a Doutrina Espírita, já consolidada no mundo pelas obras de Allan
Kardec e ratificada pelas experiências de William Crookes, Ernesto Bozzano,
Alexandre Aksasof, Gabriel Dellane, Léon Denis, Cesare Lombroso e outros
renomados filósofos e cientistas do século XIX, incluindo-se entre esses
grandes homens o poeta Victor Hugo e o romancista Arthur Conan Doyle, certamente
optaria por acrescentar ao desses sábios o esforço de sua mente racional. Com
certeza, jamais optaria pelo suicídio ante os tormentos de Espíritos obsessores
e seus conflitos mentais, dos quais se arrepende amargamente, como observamos
em sua produção literária provinda do Além.
Entretanto, contribui com
a revelação espírita o estilo inconfundível de Antero de
Quental, além de suas mensagens poéticas, porque ele proporciona-nos a certeza, uma vez mais, sobre a imortalidade da alma. Seus poemas, psicografados por três médiuns distintos, conservam integralmente seu estilo, o que reforça a fé à luz da razão de quem se dedique a estudar os ensinamentos morais do Cristo, restaurados, em toda a sua pureza, pelos Espíritos Superiores sob a coordenação do Espírito Verdade.
Quental, além de suas mensagens poéticas, porque ele proporciona-nos a certeza, uma vez mais, sobre a imortalidade da alma. Seus poemas, psicografados por três médiuns distintos, conservam integralmente seu estilo, o que reforça a fé à luz da razão de quem se dedique a estudar os ensinamentos morais do Cristo, restaurados, em toda a sua pureza, pelos Espíritos Superiores sob a coordenação do Espírito Verdade.
Referências
KARDEC, Allan. Revista Espírita, set. 1861. Trad.
Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2004.
LACERDA, Fernando de. Do país da luz. v. 2, 7. ed. Rio de
Janeiro: FEB, 2003.
______. ______. v.3, 6.
ed. Rio de Janeiro: FEB, 2003.
MEYER, A. In:
TAVARES, Hênio. Teoria literária. 8.
ed. rev. e atual. Belo Horizonte, MG: Itatiaia, 1984.
PROENÇA FILHO, Domício. Estilos de época na literatura. 11. ed.
São Paulo: Ática, 1989.
QUENTAL, Antero. Os sonetos completos de Antero de Quental.
Disponível em: Wikisourse. Acesso em 23 fev. 2019.
TUFANO, Douglas. Estudos de língua e literatura. v. 2, 4.
ed. rev. e ampl. São Paulo: Moderna, 1990.
XAVIER, Francisco
Cândido. Parnaso de além-túmulo. (poesias
mediúnicas). 16. ed. Pelo Espírito Antero de Quental. Rio de Janeiro: FEB,
2002.
______; VIEIRA, Waldo. Antologia dos imortais. Diversos Espíritos.
4. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2002.
(Publicado em Reformador/FEB em maio 2019.)
[1]
Erraticidade é o nome dado pelos Espíritos ao Mundo Espiritual, modo
predominante de designar o plano de existência em que vivemos, após a vida
física, todos aqueles que ainda estamos sujeitos à reencarnação para evoluir,
até a perfeição, quando então o Espírito não mais reencarna. Outras
denominações: Plano Espiritual, Além, Mundo dos Espíritos, Vida Maior, Além-Túmulo.
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