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quinta-feira, 9 de julho de 2020



A POESIA E AS MARCAS DO SUICÍDIO EM ANTERO DE QUENTAL
Jorge Leite de Oliveira

Língua Portuguesa

Em setembro de 1861, Kardec publicou, na Revista Espírita, um debate literário e filosófico entre os Espíritos Buffon, Lamennais, Gerard de Nerval, Visconde de Launay e Bernardin de Saint-Pierre. A conclusão coube ao Espírito Erasto, discípulo de Paulo que, entre outras coisas, disse o seguinte:

[...] Logicamente deveis deduzir que o ser pessoal pensante prossegue, mesmo depois da tumba, seus estudos e trabalhos e que, por meio dessa lucidez que é o apanágio particular dos Espíritos, comparando seu pensamento espiritual com o seu pensamento humano, deve eliminar tudo quanto o obscurecia materialmente. Muito bem! o que é verdadeiro para Lamennais o é igualmente para os outros, e cada um, no vasto país da erraticidade[1], conserva suas aptidões e sua originalidade. Buffon, Gérard de Nerval, o Visconde de Launay, Bernardin de Saint-Pierre conservam, como Lamennais, os gostos e a forma literária que observáveis neles, quando vivos. Creio útil chamar vossa atenção sobre essa condição de ser do nosso mundo de além-túmulo, para que não venhais a crer que abandonamos instantaneamente nossas inclinações, costumes e paixões quando despimos as vestes humanas. Na Terra, os Espíritos são como prisioneiros, que a morte deve libertar; no entanto, assim como aquele que está sob grades tem as mesmas propensões conserva a mesma individualidade quando em liberdade, os Espíritos conservam suas tendências, originalidade e aptidões, ao chegarem entre nós. [...] Que Deus seja convosco! Erasto (In: KARDEC, 2004, p. 392- 394).

            Segundo o escritor Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon, “o estilo é o próprio homem”. Augusto Meyer vai além e diz que “[...] o estilo é mais que o homem [...], o autor transcende o homem, projeta-se no tempo, salta por cima da sua cova, com toda a vantagem de poder transformar-se em essência transmissível por meio da leitura e renascer indefinidamente, ao calor da compreensão [...]” (MEYER, apud TAVARES, 1984, p. 398). Nosso estilo, tanto no que falamos quanto no que escrevemos, para Proença Filho (1989, p. 54), expressa nossas emoções e apelo aos receptadores de nossa mensagem, mais do que o seu sentido referencial, o que não significa a inexistência deste, mas a predominância da escolha daqueles sentidos, chamados de funções da linguagem pelos linguistas Karl Bühler e Roman Jakobson.
            Como comprovação da realidade do Espírito imortal, exemplificaremos a seguir de que modo o ser desencarnado se manifesta como “autor que transcende o homem”.  Para isso, escolhemos três médiuns: Fernando de Lacerda, Francisco Cândido Xavier e Waldo Vieira; e o Espírito Antero de Quental, que foi um dos maiores sonetistas mundiais. Confrontamos o estilo literário de sua obra quando esteve encarnado e sua produção de Espírito desencarnado.
            Antero nasceu na ilha de São Miguel em 1842 e desencarnou em 1891. Em artigo, Eça de Queirós o considerou “gênio e santo”, devido à sua poesia metafísica e grande bondade. Entretanto, vítima de tenaz hipocondria, Quental optou pelo suicídio, sofrendo no Além todos os horrores desse ato, como narra na obra do médium Lacerda (2003, v.2).
Segundo Tufano (1990), identifica-se em Antero a “[...] poesia marcadamente filosófica, angustiada por incertezas religiosas e metafísicas, claramente presentes em seus sonetos”. Neste poema, escrito quando o poeta ainda estava vivo, percebemos sua incerteza quanto à vida espiritual:  A ideia                           
                        
Força é pois ir buscar outro caminho!
Lançar o arco de outra nova ponte
Por onde a alma passe — e um alto monte
Aonde se abra à luz o nosso ninho.

Se nos negam aqui o pão e o vinho,
Avante! É largo, imenso esse horizonte...
Não, não se fecha o mundo! E além, defronte,
E em toda a parte há luz, vida e carinho.

Avante! Os mortos ficarão sepultos...
Mas os vivos que sigam, sacudindo
Como o pó da estrada os velhos cultos!

Doce e brando era o seio de Jesus...
Que importa? Havemos de passar, seguindo,
Se além do seio dele houver mais luz! (TUFANO,  1990, v. 2, p. 143).

            Percebemos, no soneto acima, um paradoxo espiritual. Inicialmente, o poeta propõe novo rumo à alma humana. Nova direção onde possa encontrar abrigo (ninho) e alimento (pão e vinho). E afirma que “esse horizonte” é pleno de possibilidades (é largo, imenso), abrindo-se em vastas alternativas, pois “em toda a parte há luz, vida e carinho”.
            No primeiro terceto, porém, se continua incentivando-nos a seguir adiante, conclui que cabe aos vivos sacudir, como pó, os “velhos cultos”, inúteis, pois “Os mortos ficarão sepultos”. No último terceto, o poeta parece desiludido com mensagem “doce e branda” de Jesus, e dá-nos a esperança de seguir adiante, mas isso somente ocorrerá “se” além de sua pessoa (metáfora d’o seio dele) houver mais luz, ou mais vida.
            Noutro soneto de Quental, escrito quando ele ainda estava vivo, percebemos, também, no último verso do terceto final, a expressão de sua angústia, devido à possibilidade de nada mais encontrar, após a morte. Ei-lo: O palácio da ventura

Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por deserto, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa a aérea formosura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, porta d’ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d’ouro, com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio, escuridão — e nada mais! (in: TAVARES, 1984, p. 479).

            O soneto abaixo não apenas marca a tendência à descrença total do poeta-filósofo,                     como também a má influência dos Espíritos sobre sua mente atormentada: Espectros                                        

Espectros que velais, enquanto a custo
Adormeço um momento, e que inclinados
Sobre os meus sonos curtos e cansados
Me encheis as noites de agonia e susto!...

De que me vale a mim ser puro e justo,
E entre combates sempre renovados
Disputar dia a dia a mão dos Fados
Uma parcela do saber augusto,

Se a minh'alma há de ver, sobre si fitos,
Sempre esses olhos trágicos, malditos!
Se até dormindo, com angústia imensa,

Bem os sinto verter sobre o meu leito,
Uma a uma verter sobre o meu peito
As lágrimas geladas da descrença! (QUENTAL, 2019).

            Vinte e oito anos depois do seu suicídio, ou seja, em 1919, Antero ditou ao médium português Fernando de Lacerda longo texto, no qual se lamentava pelo ato de rebeldia e covardia perante a Lei Divina e relatava os sofrimentos decorrentes disso. O Espírito narrou então as terríveis consequências de seu ato desesperado aos 49 anos, no segundo dos quatro volumes da obra intitulada Do país da luz, que contém texto de diversos Espíritos portugueses e franceses. Ainda nessa obra psicografada por Lacerda, nos volumes três e quatro, encontramos cinco poemas do Espírito Antero de Quental, dentre os quais selecionamos este primeiro de uma trinca de sonetos: À morte
                            I
Tu, não és o Ser único, absoluto,
Ó Morte, que eu amei em outra era,
Quando a meus olhos foste a primavera
Que encantava o meu ser irresoluto.

Eu amava o teu negro olhar de luto,
A tua estranha forma de Quimera,
Deusa da Liberdade então te crera
E sorrindo, busquei-te resoluto.

Mas como me enganei! Tu não me deste
O descanso que tanto apetecia!
Do sofrer nova forma ofereceste!

Atiraste-me a nova gemonia,
Onde, em lugar de luz que me acendeste,
Só a Noite encontrei, que não tem Dia! (LACERDA, 2003, v. 3, p. 220).

            A partir de 1932, Chico Xavier publica dezenove sonetos do Espírito Antero de Quental, nos quais este ratifica sua decepção por não ter confiado em Deus e ter optado pelo suicídio. Mais uma vez, o poeta utiliza-se, num de seus novos sonetos, do título anterior para expressar seu tormento espiritual: À morte

Ó morte, eu te adorei, como se foras
O fim da sinuosa e negra estrada,
Onde habitasse a eterna paz do Nada
Às agonias desconsoladoras.

Eras tu a visão idolatrada
Que sorria na dor das minhas horas,
Visão de tristes faces cismadoras,
Nos crepes do Silêncio amortalhada.

Busquei-te, eu que trazia a alma já morta,
Escorraçada no padecimento,
Batendo alucinado à tua porta;

E escancaraste a porta escura e fria,
Por onde penetrei no Sofrimento,
Numa senda mais triste e mais sombria (XAVIER, 2002, p. 86).

            Por fim, foi o médium Waldo Vieira quem psicografou um soneto do Espírito Quental. Neste, como em outros poemas psicografados por Fernando de Lacerda e Chico Xavier, o poeta português faz sua reverência a Deus, conclama o leitor a suportar com coragem suas provas e expiações e esforçar-se para alcançar, a perfeição na Eternidade: A lâmpada e a chama
             
A alma clamou cansada ao corpo, um dia:
— Por que me prendes, barro vil e escuro?
Quem te sustenta por lodoso muro,
Acalentando a noite que me espia?

Quem te mandou, algema da agonia,
Escravizar-me o sonho vivo e puro?
Quem te criou, cadeia de monturo,
Excitando-me a dor e a rebeldia?

E o corpo respondeu, calmo e sublime:
— Eu sou, na Terra, a cruz que te redime,
Não me interpretes por sinistra grade...

Deus modelou-me lâmpada de lodo,
Na qual és chama do Divino Todo
Para fulgir além, na Eternidade... (VIEIRA, 2002, p. 132).

Quando Pilatos indaga a Jesus se este é rei, o Senhor lhe responde que seu Reino não é deste mundo. Em seguida, o Governador da Galileia reitera a pergunta: “Logo, tu és rei?” e ouve a resposta que o atormentaria até o fim de sua existência terrena: “Tu o dizes; sou rei; não nasci e não vim a este mundo senão para dar testemunho da verdade. Aquele que pertence à verdade escuta a minha voz” (João, 18: 33, 36 e 37).
Antero de Quental enveredou pela ciência positiva, conforme ele próprio afirmou num de seus sonetos. Se houvera estudado a Doutrina Espírita, já consolidada no mundo pelas obras de Allan Kardec e ratificada pelas experiências de William Crookes, Ernesto Bozzano, Alexandre Aksasof, Gabriel Dellane, Léon Denis, Cesare Lombroso e outros renomados filósofos e cientistas do século XIX, incluindo-se entre esses grandes homens o poeta Victor Hugo e o romancista Arthur Conan Doyle, certamente optaria por acrescentar ao desses sábios o esforço de sua mente racional. Com certeza, jamais optaria pelo suicídio ante os tormentos de Espíritos obsessores e seus conflitos mentais, dos quais se arrepende amargamente, como observamos em sua produção literária provinda do Além.
Entretanto, contribui com a revelação espírita o estilo inconfundível de Antero de
Quental, além de suas mensagens poéticas, porque ele proporciona-nos a certeza, uma vez mais, sobre a imortalidade da alma. Seus poemas, psicografados por três médiuns distintos, conservam integralmente seu estilo, o que reforça a fé à luz da razão de quem se dedique a estudar os ensinamentos morais do Cristo, restaurados, em toda a sua pureza, pelos Espíritos Superiores sob a coordenação do Espírito Verdade.

Referências
KARDEC, Allan. Revista Espírita, set. 1861. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2004.
LACERDA, Fernando de. Do país da luz. v. 2, 7. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2003.
______. ______. v.3, 6. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2003.
MEYER, A. In: TAVARES, Hênio. Teoria literária. 8. ed. rev. e atual. Belo Horizonte, MG: Itatiaia, 1984.
PROENÇA FILHO, Domício. Estilos de época na literatura. 11. ed. São Paulo: Ática, 1989.
QUENTAL, Antero. Os sonetos completos de Antero de Quental. Disponível em: Wikisourse. Acesso em 23 fev. 2019.
TUFANO, Douglas. Estudos de língua e literatura. v. 2, 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: Moderna, 1990.
XAVIER, Francisco Cândido. Parnaso de além-túmulo. (poesias mediúnicas). 16. ed. Pelo Espírito Antero de Quental. Rio de Janeiro: FEB, 2002.
______; VIEIRA, Waldo. Antologia dos imortais. Diversos Espíritos. 4. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2002.

(Publicado em Reformador/FEB em maio 2019.)




[1] Erraticidade é o nome dado pelos Espíritos ao Mundo Espiritual, modo predominante de designar o plano de existência em que vivemos, após a vida física, todos aqueles que ainda estamos sujeitos à reencarnação para evoluir, até a perfeição, quando então o Espírito não mais reencarna. Outras denominações: Plano Espiritual, Além, Mundo dos Espíritos, Vida Maior, Além-Túmulo.

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