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quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Vida Verdadeira
JORGE LEITE DE OLIVEIRA

Não ajunteis tesouros na Terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem,
e onde os ladrões minam e roubam - Jesus (Mateus, 6:19).

Quando lemos ou ouvimos a afirmação de que a vida verdadeira é a espiritual, muita vez nos indagamos: então a vida de encarnados é falsa? Se assim for, de que nos valerá tal existência? Não seria melhor, então, vivermos unicamente a vida espiritual? Para respondermos a tais interrogações, precisamos refletir em outras questões, fornecidas igualmente pelos Espíritos superiores.
Nas questões números 23, 27, 44 e 47 d'O Livro dos Espíritos, temos, respectivamente, as informações de que o Espírito é o princípio inteligente do Universo; os elementos gerais do Universo são: a matéria, o Espírito e, acima de tudo, Deus; os seres vivos surgiram na Terra saídos dos germens dos elementos orgânicos que, no momento apropriado, se desenvolveram; e dos quais também, no instante oportuno, surgiu a espécie humana.
Com base nessas e em outras informações dos Espíritos superiores, Allan Kardec afirma, na introdução d'O Livro dos Espíritos: “Os seres materiais constituem o mundo visível ou corpóreo, e os seres imateriais, o mundo invisível ou espírita, isto é, dos Espíritos. [...] Os Espíritos revestem temporariamente um invólucro material perecível, cuja destruição pela morte lhes restitui a liberdade”.
Ainda na introdução d'O Livro dos Espíritos, lemos que o homem possui duas naturezas: pelo corpo, participa da natureza animal, e pela alma, da natureza espiritual. Mas vemos, nos relatos dos Espíritos André Luiz, Emmanuel e outros que, mesmo no Plano Espiritual, podemos conservar vícios e paixões terrenas, permanecendo impregnados da natureza animal, com predominância dos instintos. Por outro lado, ainda na vida de encarnado, podemos nos espiritualizar, de tal forma que aqueles defeitos nenhuma influência maléfica exerçam sobre nós. Nesse caso, a prática do bem, os conhecimentos intelectuais e morais facultar-nos-ão o acesso à intuição, qualidade conquistada pelos bons Espíritos em grau elevado.
Vivemos entre dois mundos: o visível e o invisível aos sentidos físicos. O primeiro é temporário, pode mesmo deixar de existir sem afetar o segundo. O mundo invisível só o é na aparência, pelos nossos sentidos materiais, porém, é o mundo preexistente e sobrevivente a tudo, conforme nos afirmam os Espíritos superiores nas questões 85 e 86 d'O Livro dos Espíritos. Mas embora a inexistência do mundo corporal não alterasse a do espírita, há tal correlação entre ambos que “[...] um sobre o outro incessantemente reagem” (op. cit., q. 86).

Segundo a informação de Allan Kardec, n'O Livro dos Espíritos, Introd., it. VI:

Os Espíritos exercem incessante ação sobre o mundo moral e mesmo sobre o mundo físico. Atuam sobre a matéria e sobre o pensamento e constituem uma das potências da Natureza, causa eficiente de uma multidão de fenômenos até então inexplicados ou mal explicados e que não encontram explicação racional senão no Espiritismo (KARDEC, op. cit.).

É com base nessas afirmações que muitos estudiosos, encarnados e desencarnados, dizem ser a espiritual a vida verdadeira. Isso não significa, entretanto, que a vida na carne seja falsa. Para novas reflexões sobre a importância da vida espiritual, convidamos o leitor a acompanhar-nos o raciocínio, com base nos estudos a seguir expostos.
Os princípios inteligente e material sofrem, através dos milênios e sob a vigilância dos Espíritos superiores, as transformações que os hão de desenvolver, passando sucessivamente pelos reinos mineral, vegetal e animal e pelas formas e espécies intermediárias que se sucedem entre cada dois desses reinos. Chegam, dessa forma, numa progressão contínua, ao período preparatório do estado de Espírito formado, isto é, ao estado intermédio da encarnação animal e do estado espiritual consciente. Depois desse período preparatório, tornam-se criaturas com livre-arbítrio, com inteligência capaz de raciocínio, independentes e responsáveis por seus atos.
Do exposto, já se pode verificar a interdependência entre os dois mundos: físico e espiritual. Quanto às inumeráveis encarnações do Espírito, se refletirmos bem, concluiremos que a finalidade das diversas vidas no campo da matéria não se presta tão-somente ao resgate de faltas passadas, senão também ao aperfeiçoamento espiritual.
Somos luz, já afirmara o Cristo, embora nos concitando a fazer brilhar essa luz, para que não se torne trevas (Lucas, 11:35). A luz dissipa as trevas densas, bem como a purificação dos Espíritos leva à eterização dos nossos corpos opacos, após inúmeras existências nos dois planos, material e espiritual. Pois assim como a luz vence as trevas, a espiritualidade extingue a materialidade, embora aquela necessite passar por esta, nos primórdios da evolução do ser, como vemos na afirmação de Léon Denis na página 123 da obra O Problema do Ser, do Destino e da Dor: “Na planta, a inteligência dormita; no animal, sonha; só no homem acorda, conhece-se, possui-se e torna-se consciente; a partir daí, o progresso, de alguma sorte fatal nas formas inferiores da Natureza, só se pode realizar pelo acordo da vontade humana com as leis Eternas”
(op. cit. 12. ed. FEB, 1983).
Chegará, enfim, o dia em que as paixões terrenas, instintivas, nenhuma influência exercerão mais sobre nossas almas, quando houvermos conquistado, pelo esforço da vontade, o predomínio do Espírito sobre a matéria. Viveremos, então, definitivamente, a vida espiritual, privilégio exclusivo dos Espíritos purificados.
Em complemento ao que diz acima, acrescenta Denis:

Emergir grau a grau do abismo da vida para tornar-se Espírito, gênio superior, e isto por seus próprios méritos e esforços, conquistar o futuro hora a hora, ir-se libertando dia a dia um pouco mais da ganga das paixões, libertar-se das sugestões do egoísmo, da preguiça, do desânimo, resgatar-se pouco a pouco das suas fraquezas, da sua ignorância, ajudando os seus semelhantes a se resgatarem por sua vez, arrastando todo o meio humano para um estado superior, tal é o papel distribuído a cada alma. Para desempenhá-lo, tem ela à sua disposição toda a série de existências inumeráveis na escala magnífica dos mundos (op. cit. p. 125).

Podemos, agora, entender o significado das palavras dos Espíritos sobre ser a vida verdadeira a espiritual. Verdadeira no sentido de vida em plenitude, definitiva, livre das influências grosseiras da matéria. Mas isso não significa que a existência na matéria densa seja falsa e que devamos abdicar da vida enquanto encarnados; que nos seja lícito nada fazermos em prol do nosso progresso espiritual, a pretexto de aguardarmos a desencarnação para vivermos em plenitude. A encarnação tem uma finalidade da mais alta importância: fazer-nos chegar à perfeição (Allan Kardec. O Livro dos Espíritos, q. 132).
Não podemos cruzar nossos braços, a pretexto de desejarmos viver plenamente na vida espiritual, pois é aqui mesmo, na Terra, que devemos cumprir nossas tarefas relegadas outrora a segundo plano quando, em existência transata, nos afastamos do nosso Criador, agindo em desacordo com Suas Leis. Em seu comentário à questão supracitada, Kardec afirma:

A ação dos seres corpóreos é necessária à marcha do Universo. Deus, porém, na sua sabedoria, quis que nessa mesma ação eles encontrassem um meio de progredir e de se aproximar dele. Deste modo, por uma admirável lei da Providência, tudo se encadeia, tudo é solidário na Natureza (KARDEC, op. cit.).

Se apenas nos interessasse a vida no plano espiritual, Deus já nos teria proporcionado, em definitivo, essa existência. Sabemos, porém, que tal não ocorre. O Espírito precisa passar por todas as etapas de evolução do ser para progredir e viver no seu estado definitivo, na vida espiritual, mas somente após inúmeras encarnações, objetivando despojar-se de todas as paixões terrenas, de todos os vícios, enfim, de todas as imperfeições. É nisso que está o seu merecimento.
É como criaturas encarnadas, esquecidas das boas resoluções tomadas no Plano Espiritual, mas sob a orientação infalível da própria consciência, que exercitamos nosso livre-arbítrio. E somente quando utilizarmos essa faculdade sempre para o bem, em consonância com aquele rigoroso juiz, atento a todos os nossos atos, estaremos preparados para viver, com plena liberdade, a vida espiritual, em planos mais elevados.
A imperfeição da alma dá origem aos sentimentos impuros, como a sensualidade, o egoísmo, o orgulho, a vaidade, a avareza, o ódio, a vingança e todos os inumeráveis defeitos do ser ainda despreparado para viver intensamente pelo Espírito.
Uma só qualidade, porém, é suficiente para corrigir todos esses desvios da senda do bem: o amor. É para esse fim que fomos criados, para amar em plenitude. E é pela perfeita compreensão da força do amor, pela sua vivência total, que o homem, gradativamente, extinguirá de si mesmo todos os defeitos impeditivos do seu progresso.
A prática do amor em toda a sua pureza estimular-nos-á à conquista das virtudes e do saber, para melhor servirmos. Desse modo, ainda que não estejamos definitivamente no Plano Espiritual, poderemos viver intensamente, tanto lá como aqui, desfrutando, desde já, as alegrias do Espírito, com a felicidade própria dos justos.
É, pois, nesse sentido que os Espíritos superiores nos afirmam ser a vida verdadeira a espiritual. Não precisamos estar já definitivamente nos planos etéreos para sermos felizes. Necessitamos, sim, de nos depurar, livrar-nos de todas as imperfeições materiais, para alcançarmos a vida plena, desfrutarmos do tesouro real que, como disse Jesus, a traça não rói, a ferrugem não corrói e o ladrão não mina nem rouba (Mateus, 6:19).

(Publicado no periódico mensal Reformador, da Federação Espírita Brasileira, em maio de 2002. Republicado com pequenas adaptações de forma em 5 ago. 2020.)

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