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segunda-feira, 27 de junho de 2022

 


Cantiga da reencarnação
 
Um homem agonizava, mas embora
Não pudesse expressar palavra alguma,
Na sombra interior que o desarvora,
Pede em silencio ao corpo:
— “Ampara-me, por Deus!
Eu não quero morrer, ajuda, corpo amigo,
Não te quero deixar, preciso estar contigo,
Sem ti temo cair em abismos fatais...”
 
Era o apelo de instantes derradeiros
Naquele portador de moléstia obscura,
Que ainda não chegara aos cinquenta janeiros
E que tudo indicava
Estar descendo à morte prematura.
 
De consciência lúcida, lembrava
Em contrição sincera,
As forças que gastara, inutilmente,
As noites dos excessos de aguardente
E os abusos sem conta que fizera...
 
E, ante a morte a surgir, sempre mais perto,
Continua a rogar ao corpo enfraquecido:
— “Corpo que Deus me deu, não me deixes caído,
quero mais tempo, a fim de preparar-me
para aceitar sem medo e sem alarme,
a ideia de perder-te e entrar em rumo incerto”.
 
Entretanto,
De espírito cansado,
A desfazer-se em pranto,
Nas vascas da agonia,
Ouviu a voz do corpo fatigado,
Que, por fim, lhe dizia:
"Escuta, meu amigo,
eu sou teu servo e sei que és meu senhor,
sempre te obedeci com desvelado amor,
Deus me criou para a missão
De atender-te em completa servidão.
Nunca me viste a desobedecer
As ordens que me destes
Fossem justas ou não,
Porquanto o meu dever
É o de servir-te sem reclamação.
Mas indago de ti quantas vez me impuseste
Noitadas de prazer, ruinosas ou vazias,
Depredando-me as próprias energias
Que Deus me concedeu, em teu favor...
Embora eu te avisasse
Com a minha própria dor
Que o remorso produz tristeza e enfermidade,
Adquiriste, displicente,
Cargas de sombra sobre a própria mente,
Culpas e culpas sem necessidade...
 
Repito: sou teu servo e em nada te condeno,
Mas, demonstrando entendimento estreito,
Gastaste-me as reservas sem proveito,
Consumindo-me as forças,
A pedaços de abuso e a doses de veneno...
Dei-te tudo o que eu tinha,
Nada me resta agora,
Senão me recolher à derradeira hora,
Em que eu deva tornar, com segura presteza,
À recomposição da natureza!...”
 
O homem ouviu o corpo em despedida
Mas não tinha defesa
Contra os próprios desmandos, ante a vida...
No silencio de mágoa indefinida,
Voltou-se para Deus em oração,
Pediu misericórdia, amparo e proteção,
E, ante o corpo que se lhe enrijecia,
Chorou o companheiro que perdia...
 
Longo tempo passou, em clima de amargura,
No entanto, ao se afundar em crises de loucura,
Fez-se-lhe a prece continuada,
Nos sofrimentos em que avança
Um clarão de esperança...
 
Tinha nódoas de culpa, em lágrimas sofria,
Mas, o Céu lhe apontava a luz de novo dia...
No íntimo, o Senhor o exortava somente
A regressar ao mundo e tentar novamente
Extinguir em si mesmo os males que trazia...
 
O espírito em falência, exânime, inseguro
Pensou nas novas bênçãos do futuro,
Viu a reparação por justiça e dever,
E agradecendo aos Céus
Gritou feliz, livre mas preso ao chão:
— “Glória a Deus pela bênção de sofrer,
Glória à reencarnação que obterei um dia,
A fim de achar na dor a essência da alegria,
O Dom de trabalhar e a graça de nascer!”
 
MARIA DOLORES (Espírito). Coração e Vida. Psicografado por F. C. Xavier. SP: IDEAL, 1978, cap. 18.

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