16.8.6 Desprendimento dos bens terrenos
Lacordaire
Constantine, Argélia, 1863
Venho, meus irmãos, meus amigos,
trazer-lhes meu óbolo, para ajudá-los a marchar corajosamente na vida de
aperfeiçoamento em que entraram. Somos devedores uns dos outros. É somente por
uma união sincera e fraternal entre Espíritos e encarnados que a regeneração
será possível.
Seu amor aos bens terrenos é um dos mais
fortes entraves ao seu adiantamento moral e espiritual. Devido a esse apego às
posses, vocês destroem suas faculdades de amar, voltando-as inteiramente às
coisas materiais. Sejam sinceros: a riqueza proporciona uma felicidade sem
mistura? Quando seus cofres estão cheios, não há sempre um vazio em seus
corações? No fundo dessa cesta de flores, não há sempre um réptil escondido?
Compreendo que um homem que conquistou uma
fortuna, por um trabalho assíduo e honrado, experimente por isso uma satisfação
muito justa. Mas dessa satisfação, muito natural e que Deus aprova, a um apego
que absorve todos os outros sentimentos e paralisa os impulsos do coração, há
uma distância, tão grande quanto a que separa a sórdida avareza à prodigalidade
exagerada, dois vícios entre os quais Deus colocou a caridade, santa e salutar
virtude, que ensina o rico a dar sem ostentação, para que o pobre receba sem
humilhação.
Que a fortuna provenha de sua família, ou
que a tenham ganho pelo seu trabalho, há uma coisa que vocês jamais devem
esquecer: é que tudo vem de Deus, tudo retorna a Deus. Nada lhes pertence na
Terra, nem sequer seu pobre corpo: a morte os despoja dele, como de todos os
bens materiais. Vocês são depositários e não proprietários. Não se enganem
sobre isso. Deus lhes emprestou e vocês terão que lhe restituir, mas ele lhes
empresta sob a condição de que, pelo menos o supérfluo, reverta para aqueles
que não possuem o necessário.
Um dos seus amigos lhes empresta uma soma.
Por menos honesto que vocês sejam, terão o escrúpulo de pagá-la, e lhe ficarão
agradecidos. Pois bem: eis a posição de todo homem rico! Deus é o amigo celeste
que lhes emprestou a riqueza, ele não pede para si mais do que o amor e o
reconhecimento, mas exige, por sua vez, que o rico dê aos pobres, que são
também seus filhos, tanto quanto o rico.
O bem que Deus lhes confiou excita em seus
corações uma ardente e desvairada cobiça. Vocês já refletiram, quando se apegam
loucamente a uma fortuna perecível, e tão passageira como vocês mesmos, que um
dia terão de prestar contas ao Senhor daquilo que veio dele? Esquecem que, pela
riqueza, foram investidos na sagrada condição de ministros da caridade na
Terra, para serem seus dispensadores inteligentes? Que serão, pois, quando usam
somente em seu proveito o que lhes foi confiado, senão depositários infiéis?
Que resulta desse esquecimento voluntário dos seus deveres? A morte inflexível,
inexorável, virá rasgar o véu sob o qual se escondem, forçando-os a prestar
contas ao amigo que os favoreceu, e que nesse momento se reveste para vocês da
toga de juiz.
É em vão que na Terra vocês procurem
iludir-se, colorindo com o nome de virtude o que muitas vezes nada mais é que
egoísmo. Que chamem economia e previdência aquilo que é simples cupidez e
avareza, ou generosidade o que não passa de prodigalidade em seu proveito. Um
pai de família, por exemplo, abstendo-se de fazer a caridade, economizará,
amontoará ouro sobre ouro, e tudo isso, diz ele, para deixar a seus filhos o
máximo de bens possível, evitando-lhes a queda na miséria. É bastante justo e
bem paternal, convenhamos, e não se pode censurá-lo. Mas será sempre esse o
único objetivo que o guia? Não é antes, e o mais das vezes, uma desculpa para a
própria consciência, a fim de justificar a seus próprios olhos e aos olhos do
mundo seu apego pessoal aos bens terrenos? Entretanto, admito que o amor
paterno seja o seu único móvel. Será esse um motivo para fazê-lo esquecer dos
seus irmãos perante Deus? Quando esse pai mesmo já vive no supérfluo, deixará
os seus filhos na miséria por legar-lhes um pouco menos desse supérfluo? Não
lhes estará dando uma lição de egoísmo, e lhes endurecendo os corações? Não
será sufocar neles o amor do próximo?
Pais e mães, vocês estão num grande erro,
se acreditam que com isso aumentam o afeto de seus filhos por vocês. Ensinando-os
a ser egoístas para com os outros, ensinam-lhes a ser egoístas para com vocês
mesmos.
Quando um homem trabalhou bastante, e com
o suor do seu rosto acumulou bens, costuma-se dizer que a dinheiro ganho melhor
se reconhece o valor: nada é mais verdadeiro. Pois bem: que esse homem,
confessando conhecer todo o valor do dinheiro, faça a caridade segundo as suas
posses, e terá mais mérito do que outro que, nascido na abundância, ignora as
rudes fadigas do trabalho. Mas ao contrário, se esse homem que recorda suas
penas, seus esforços, se fizer egoísta, duro para com os pobres, será muito
mais culpado que o outro. Porque, quanto mais se conhece por si mesmo as dores
ocultas da miséria, maior será o dever de aliviá-la nos outros.
Infelizmente sempre há no homem que possui
fortuna um sentimento tão forte quanto o
apego a ela: é o orgulho. Não é raro ver-se o novo rico atordoar o infeliz que
lhe implora assistência, com a narrativa de seus trabalhos e de suas
habilidades, em vez de ajudá-lo, e terminar por dizer-lhe: "Faça como eu
fiz!" Segundo ele, a bondade de Deus não influiu em nada na sua
fortuna; a ele somente cabe todo o mérito. Seu orgulho põe-lhe uma venda nos
olhos e tapa seus ouvidos. Não compreende que, com toda a sua inteligência e
sua capacidade, Deus pode derrubá-lo com uma só palavra.
Desperdiçar a riqueza não é desapegar-se
dos bens terrenos, é descaso e indiferença. O homem, depositário desses bens,
não tem o direito de dilapidá-los ou confiscá-los em seu proveito. A
prodigalidade não é generosidade, é muitas vezes uma forma de egoísmo. Aquele
que joga ouro a mancheias na satisfação de uma fantasia não dará um centavo
para prestar um serviço. O desapego dos bens terrenos consiste em considerar a
fortuna no seu justo valor, em saber servir-se dela em benefício dos outros e
não para si somente, em não sacrificar por ela os interesses da vida futura, em
perdê-la sem murmurar, se aprouver a Deus retirá-la. Se, por revezes
imprevistos, vocês se tornarem como Jó, digam como ele: "Senhor, você me
deu, você me tira; que a sua vontade seja feita." Eis o verdadeiro
desprendimento.
Sejam submissos desde logo, tendo fé
naquele que, assim como lhes deu e tirou, pode devolver-lhes. Resistam
corajosamente ao abatimento, ao desespero, que paralisaria suas forças. Nunca
se esqueçam, quando Deus lhes desferir um golpe, que ao lado da maior prova ele
coloca sempre uma consolação. Mas pensem, sobretudo, que há bens infinitamente
mais preciosos que os da Terra, e esse pensamento os ajudará a desprender-se
desses últimos. O pouco apreço que damos a uma coisa, torna-nos menos sensíveis
à sua perda. O homem que se apega aos bens terrenos é como a criança que só vê
o momento presente; o que se desprende é como o adulto, que conhece coisas mais
importantes, porque compreende estas palavras proféticas do Salvador: "Meu
reino não é deste mundo".
O Senhor não ordena que atiremos fora o
que possuímos, para nos tornarmos mendigos voluntários, porque então nos
transformaríamos numa carga para a sociedade. Agir assim seria compreender mal
os desprendimentos dos bens terrenos. É um egoísmo de outro gênero, porque
equivale a fugir à responsabilidade que a fortuna faz pesar sobre aquele que a
possua. Deus a dá a quem lhe parece bom para administrá-la em proveito de
todos. O rico tem, portanto, uma missão, que pode tornar bela e proveitosa para
si mesmo. Rejeitar a fortuna, quando Deus
lha dá, é renunciar aos benefícios do bem que se pode fazer, ao
administrá-la com sabedoria. Saber passar sem ela, quando não a temos; saber
empregá-la utilmente, quando a recebemos; saber sacrificá-la, quando necessário
é agir segundo os desígnios do Senhor. Que diga, portanto, aquele que recebe o
que o mundo chama uma boa fortuna: "Meu Deus, você enviou-me um novo
encargo; dê-me a força de o desempenhar segundo a sua vontade!"
Eis aí, meus amigos, o que eu queria
ensinar-lhes, a respeito do desprendimento dos bens terrenos. Resumirei
dizendo: saibam contentar-se com pouco. Se são pobres, não invejem os ricos,
porque a fortuna não é necessária à felicidade. Se são ricos, não esqueçam de
que os seus bens lhes foram confiados, e que vocês devem justificar seu
emprego, como numa prestação de contas de tutela. Não sejam depositários
infiéis, fazendo-os servir à satisfação de seu orgulho e de sua sensualidade.
Não se julguem no direito de dispor deles unicamente para vocês, pois não os
receberam como doação, mas como empréstimo. Se não sabem restituir, não têm o
direito de pedir. E lembrem-se de que aquele que dá aos pobres salda a dívida
contraída para com Deus.
Tradução livre de Jorge Leite de Oliveira
http://lattes.cnpq.br/0494890808150275
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