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quinta-feira, 4 de novembro de 2021

 


16.8.6 Desprendimento dos bens terrenos

Lacordaire

Constantine, Argélia, 1863

 

Venho, meus irmãos, meus amigos, trazer-lhes meu óbolo, para ajudá-los a marchar corajosamente na vida de aperfeiçoamento em que entraram. Somos devedores uns dos outros. É somente por uma união sincera e fraternal entre Espíritos e encarnados que a regeneração será possível.

Seu amor aos bens terrenos é um dos mais fortes entraves ao seu adiantamento moral e espiritual. Devido a esse apego às posses, vocês destroem suas faculdades de amar, voltando-as inteiramente às coisas materiais. Sejam sinceros: a riqueza proporciona uma felicidade sem mistura? Quando seus cofres estão cheios, não há sempre um vazio em seus corações? No fundo dessa cesta de flores, não há sempre um réptil escondido?

Compreendo que um homem que conquistou uma fortuna, por um trabalho assíduo e honrado, experimente por isso uma satisfação muito justa. Mas dessa satisfação, muito natural e que Deus aprova, a um apego que absorve todos os outros sentimentos e paralisa os impulsos do coração, há uma distância, tão grande quanto a que separa a sórdida avareza à prodigalidade exagerada, dois vícios entre os quais Deus colocou a caridade, santa e salutar virtude, que ensina o rico a dar sem ostentação, para que o pobre receba sem humilhação.

Que a fortuna provenha de sua família, ou que a tenham ganho pelo seu trabalho, há uma coisa que vocês jamais devem esquecer: é que tudo vem de Deus, tudo retorna a Deus. Nada lhes pertence na Terra, nem sequer seu pobre corpo: a morte os despoja dele, como de todos os bens materiais. Vocês são depositários e não proprietários. Não se enganem sobre isso. Deus lhes emprestou e vocês terão que lhe restituir, mas ele lhes empresta sob a condição de que, pelo menos o supérfluo, reverta para aqueles que não possuem o necessário.

Um dos seus amigos lhes empresta uma soma. Por menos honesto que vocês sejam, terão o escrúpulo de pagá-la, e lhe ficarão agradecidos. Pois bem: eis a posição de todo homem rico! Deus é o amigo celeste que lhes emprestou a riqueza, ele não pede para si mais do que o amor e o reconhecimento, mas exige, por sua vez, que o rico dê aos pobres, que são também seus filhos, tanto quanto o rico.

O bem que Deus lhes confiou excita em seus corações uma ardente e desvairada cobiça. Vocês já refletiram, quando se apegam loucamente a uma fortuna perecível, e tão passageira como vocês mesmos, que um dia terão de prestar contas ao Senhor daquilo que veio dele? Esquecem que, pela riqueza, foram investidos na sagrada condição de ministros da caridade na Terra, para serem seus dispensadores inteligentes? Que serão, pois, quando usam somente em seu proveito o que lhes foi confiado, senão depositários infiéis? Que resulta desse esquecimento voluntário dos seus deveres? A morte inflexível, inexorável, virá rasgar o véu sob o qual se escondem, forçando-os a prestar contas ao amigo que os favoreceu, e que nesse momento se reveste para vocês da toga de juiz.

É em vão que na Terra vocês procurem iludir-se, colorindo com o nome de virtude o que muitas vezes nada mais é que egoísmo. Que chamem economia e previdência aquilo que é simples cupidez e avareza, ou generosidade o que não passa de prodigalidade em seu proveito. Um pai de família, por exemplo, abstendo-se de fazer a caridade, economizará, amontoará ouro sobre ouro, e tudo isso, diz ele, para deixar a seus filhos o máximo de bens possível, evitando-lhes a queda na miséria. É bastante justo e bem paternal, convenhamos, e não se pode censurá-lo. Mas será sempre esse o único objetivo que o guia? Não é antes, e o mais das vezes, uma desculpa para a própria consciência, a fim de justificar a seus próprios olhos e aos olhos do mundo seu apego pessoal aos bens terrenos? Entretanto, admito que o amor paterno seja o seu único móvel. Será esse um motivo para fazê-lo esquecer dos seus irmãos perante Deus? Quando esse pai mesmo já vive no supérfluo, deixará os seus filhos na miséria por legar-lhes um pouco menos desse supérfluo? Não lhes estará dando uma lição de egoísmo, e lhes endurecendo os corações? Não será sufocar neles o amor do próximo?

Pais e mães, vocês estão num grande erro, se acreditam que com isso aumentam o afeto de seus filhos por vocês. Ensinando-os a ser egoístas para com os outros, ensinam-lhes a ser egoístas para com vocês mesmos.

Quando um homem trabalhou bastante, e com o suor do seu rosto acumulou bens, costuma-se dizer que a dinheiro ganho melhor se reconhece o valor: nada é mais verdadeiro. Pois bem: que esse homem, confessando conhecer todo o valor do dinheiro, faça a caridade segundo as suas posses, e terá mais mérito do que outro que, nascido na abundância, ignora as rudes fadigas do trabalho. Mas ao contrário, se esse homem que recorda suas penas, seus esforços, se fizer egoísta, duro para com os pobres, será muito mais culpado que o outro. Porque, quanto mais se conhece por si mesmo as dores ocultas da miséria, maior será o dever de aliviá-la nos outros.

Infelizmente sempre há no homem que possui fortuna um sentimento tão forte quanto  o apego a ela: é o orgulho. Não é raro ver-se o novo rico atordoar o infeliz que lhe implora assistência, com a narrativa de seus trabalhos e de suas habilidades, em vez de ajudá-lo, e terminar por dizer-lhe: "Faça como eu fiz!" Segundo ele, a bondade de Deus não influiu em nada na sua fortuna; a ele somente cabe todo o mérito. Seu orgulho põe-lhe uma venda nos olhos e tapa seus ouvidos. Não compreende que, com toda a sua inteligência e sua capacidade, Deus pode derrubá-lo com uma só palavra.

Desperdiçar a riqueza não é desapegar-se dos bens terrenos, é descaso e indiferença. O homem, depositário desses bens, não tem o direito de dilapidá-los ou confiscá-los em seu proveito. A prodigalidade não é generosidade, é muitas vezes uma forma de egoísmo. Aquele que joga ouro a mancheias na satisfação de uma fantasia não dará um centavo para prestar um serviço. O desapego dos bens terrenos consiste em considerar a fortuna no seu justo valor, em saber servir-se dela em benefício dos outros e não para si somente, em não sacrificar por ela os interesses da vida futura, em perdê-la sem murmurar, se aprouver a Deus retirá-la. Se, por revezes imprevistos, vocês se tornarem como Jó, digam como ele: "Senhor, você me deu, você me tira; que a sua vontade seja feita." Eis o verdadeiro desprendimento.

Sejam submissos desde logo, tendo fé naquele que, assim como lhes deu e tirou, pode devolver-lhes. Resistam corajosamente ao abatimento, ao desespero, que paralisaria suas forças. Nunca se esqueçam, quando Deus lhes desferir um golpe, que ao lado da maior prova ele coloca sempre uma consolação. Mas pensem, sobretudo, que há bens infinitamente mais preciosos que os da Terra, e esse pensamento os ajudará a desprender-se desses últimos. O pouco apreço que damos a uma coisa, torna-nos menos sensíveis à sua perda. O homem que se apega aos bens terrenos é como a criança que só vê o momento presente; o que se desprende é como o adulto, que conhece coisas mais importantes, porque compreende estas palavras proféticas do Salvador: "Meu reino não é deste mundo".

O Senhor não ordena que atiremos fora o que possuímos, para nos tornarmos mendigos voluntários, porque então nos transformaríamos numa carga para a sociedade. Agir assim seria compreender mal os desprendimentos dos bens terrenos. É um egoísmo de outro gênero, porque equivale a fugir à responsabilidade que a fortuna faz pesar sobre aquele que a possua. Deus a dá a quem lhe parece bom para administrá-la em proveito de todos. O rico tem, portanto, uma missão, que pode tornar bela e proveitosa para si mesmo. Rejeitar a fortuna, quando Deus  lha dá, é renunciar aos benefícios do bem que se pode fazer, ao administrá-la com sabedoria. Saber passar sem ela, quando não a temos; saber empregá-la utilmente, quando a recebemos; saber sacrificá-la, quando necessário é agir segundo os desígnios do Senhor. Que diga, portanto, aquele que recebe o que o mundo chama uma boa fortuna: "Meu Deus, você enviou-me um novo encargo; dê-me a força de o desempenhar segundo a sua vontade!"

Eis aí, meus amigos, o que eu queria ensinar-lhes, a respeito do desprendimento dos bens terrenos. Resumirei dizendo: saibam contentar-se com pouco. Se são pobres, não invejem os ricos, porque a fortuna não é necessária à felicidade. Se são ricos, não esqueçam de que os seus bens lhes foram confiados, e que vocês devem justificar seu emprego, como numa prestação de contas de tutela. Não sejam depositários infiéis, fazendo-os servir à satisfação de seu orgulho e de sua sensualidade. Não se julguem no direito de dispor deles unicamente para vocês, pois não os receberam como doação, mas como empréstimo. Se não sabem restituir, não têm o direito de pedir. E lembrem-se de que aquele que dá aos pobres salda a dívida contraída para com Deus.

Tradução livre de Jorge Leite de Oliveira

http://lattes.cnpq.br/0494890808150275

 

 


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