A SUBLIME POESIA DO ESPÍRITO MARIA DOLORES
Amor materno
Depois de zero hora. E a dama
recordava
O filho de quem fora venturosa
escrava.
No bairro, era o silêncio a dominar
nas ruas...
Quantas horas da noite? Um tanto,
além das duas...
E a senhora viúva, acostada no
leito
Lembrava o filho amado, o jovem
belo e forte,
Que o coração de mãe supusera
perfeito,
Cuja fuga de casa,
Fora no pai amigo o motivo da morte.
Vinte anos de ausência!... e ela
refletia
Em todo aquele tempo de agonia.
O filho que criara, a beijos de
ternura,
De quem não descansava na procura,
A quem nunca levara o mínimo
desgosto,
E a quem ela e marido haviam dado
tudo,
Dinheiro, ostentação, brilho e
facilidades,
Buscando adivinhar-lhe todas as
vontades,
Recusara o trabalho e renegara o
estudo...
Por fim, todo inclinado à cocaína,
Desertou porque o pai tão somente o
internasse
Num colégio distinto em que se lhe
evitasse
A droga deprimente...
Insone, calma e ativa,
A memória se lhe aviva,
E inacessível a calmantes,
Rememora a tragédia de anos antes.
O moço nunca mais voltara ao lar.
Ralada por extremo desconforto,
Logo após, ela vira o companheiro
morto
De saudades e pesar.
Mudara-se de bairro e residência,
Mas nada lhe alterara as lutas da
existência.
Vinte anos de pranto e de aflição
Haviam feito dela
Pobre mãe transformada em sentinela
Da casa nobre e farta, à espera do
rapaz,
Que lhe arrasara a vida, a
segurança e a paz,
E que ela amava ainda...
Mas enquanto pensava, ouve ruído
leve.
Escutou, escutou... Alguém de passo
curto
Estava em quarto próximo
Certamente na prática do furto.
Ao choque, ela chamou, em altos
brados,
A colaboração dos empregados,
Mas o assaltante se aproxima,
A valer-se da sombra em todo o
espaço estreito;
Era um homem robusto a lhe cair por
cima,
Cravando-lhe um punhal no velho
peito.
Ergue-se um dos vigias,
Vem às pressas,
De longe, liga a luz...
Eis que o quarto se fez de todo
iluminado
E o salteador não foge,
Sente-se preso à mão que se lhe
estende,
Contempla a vítima que o fita,
Num transporte de amor com ternura
infinita...
Reconhece o semblante maternal
E a desfazer-se em pranto,
Ajoelha-se e grita: — "Mãe
querida,
Por que cheguei a tanto,
A tanto crime e a tanto mal,
A ponto de acabar com a sua própria
vida?..."
A dama retirou a lâmina cravada
— Doloroso empecilho
O sangue gotejou da ferida formada,
E, em seguida, exclamou: — “Ah! Meu
filho, meu filho!...
Que saudades de ti, quanta saudade,
O tempo parecia a eternidade!...”
Entretanto, o vigia invadiu o
aposento,
Vendo um homem chorando e a dama em
sofrimento,
Quis gritar reagir, austero e
humano,
Mas a senhora diz: — “Ouça,
Germano,
Meu filho regressou, venha
conhecê-lo...
Na precipitação de meu antigo zelo,
Feri-me por engano...
Caí sobre o punhal que eu trazia no
seio,
No entanto, estou feliz... Olhe!...
Meu filho veio...
Dê-lhe as chaves da casa,
Tudo o que tenho é dele, a minha
própria vida...”
E conservando a mão sobre a parte
ferida,
Rogou ao servidor:
— “Chame o médico amigo,
Transmita a ele tudo o que lhe digo
E explique este acidente...
Meu filhinho chegou tão de repente
Para fazer-me esta surpresa,
Que caí no punhal em que eu
mantinha
Ou supunha manter minha própria
defesa...
Estou feliz, Germano, mas agora...”
O servidor gritou: - “Ah! Não
morra, senhora!...”
Entretanto, mais fraca e mais
cansada,
A dama ainda falou, muito pálida e
triste:
— “Germano, ajude agora ao meu
rapaz
Compreendo que estou chegando ao
fim,
Sê a ele fiel,
Dê a ele o respeito, a estima e a
bondade
Que você sempre deu a mim...”
O filho ajoelhou-se, em pranto
comovente,
E clamava, ao beijá-la,
ansiosamente,
— “Mãe, perdoa-me e vive, mãe
querida!...”
Entremostrando o anseio de falar,
Ela, porém, lhe deu o último olhar,
Deu-se, de todo, a isso, fez-se
forte
E descansou, por fim, dizendo, ao
entregar-se à morte:
— "Louvado seja Deus!... Deus
te abençoe, meu filho!...
(MARIA DOLORES (Espírito). Coração e Vida. Psicog. Chico Xavier.
São Paulo, SP: IDEAL, 1978, cap. 20.)
Amor materno
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