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quarta-feira, 5 de outubro de 2022

 


JUSTIÇA

 

Este episódio aconteceu, há tempos,
E está guardado na memória
De quantos compartilham desta história.
Um condenado à morte pela forca
Acusado de um crime,
Sem proteção a que se arrime,
Tudo aceitou sem reclamar.
A hora da execução chegara, enfim...
Muita gente na praça se adensava
No intuito de aplaudir
A presença da morte, em estranho festim.
 
Explodiam na tarde clara e quente
Estas palavras de clamor:
— “Morte ao bandido!... Morte ao matador!...”
 
O prisioneiro chega e encontra o sacerdote
Que o seguirá na cena derradeira...
Em torno, a multidão
Gritava rumorosa e galhofeira...
Mas entre o padre e o réu se estabelece
A conversa ligeira
Que o povo crê, no fundo, condensar
O amparo de um conselho e a benção de uma prece
Que o ministro de Deus promove com pesar.
 
— "Filho — diz o pastor — sei que estais inocente,
Posso agora dizer a verdade,
Questão de consciência e lealdade
Que preciso estender a toda gente..."
 
— "Padre, como sabeis?"
— Interrogou ansioso o réu aflito —
“Se estou no fim, segundo as nossa leis?”
 
O sacerdote amigo
Aconchegou-se mais ao penitente
E lhe falou, paternalmente:
— “Na semana passada,
Ouvi a confissão inesperada
Do homicida infeliz...
Ele morreu comigo, após contar-me
Calculando as palavras, uma a uma,
Que não tendes culpa alguma...
No derradeiro alento,
Cansado de remorso e sofrimento,
Pediu-me vos livrasse, ante as autoridades,
Documentadamente,
Porquanto, ele somente
É o responsável pelo crime
Que vos foi imputado injustamente,
E devo executar-lhe as últimas vontades”.
 
No entanto, o sentenciado
Estampando na face uma expressão de horror,
Disse, em tom abafado:
— “Padre amigo,
Nesse crime, não fui o matador;
Quanto a isto, já sei,
Mas deixai que se cumpra a exigência da lei”.
 
E, fitando o pastor, de modo inesquecível,
Rematou, afinal:
— “A justiça é de Deus e o remorso é terrível...
Recordai vosso irmão assassinado,
Há quase cinco anos,
Por entre espancamentos desumanos?
O rapaz despojado
Da fortuna de um banco que trazia?
Aquele vosso irmão que amáveis tanto,
Pelo qual vossa mãe morreu de saudade e de pranto,
Cuja morte no mundo
Permanece envolvida em mistério profundo?"
O sacerdote ouvira, trêmulo e assombrado
Mas nada respondeu...
Após comprida pausa, disse o condenado:
— “O assassino fui eu...
Não me livreis da forca a me entrego,
Já não aguento mais a culpa que carrego..."
 
Pálido, o sacerdote
Exclamou, fatigado:
— “Para mim, já não sois o sentenciado,
Sois também nosso irmão,
Mereceis nosso amor,
Em nome do Senhor,
Estais vós perdoado...”
 
Mas, nisso, a multidão
Crendo haver terminado aquele entendimento,
Que lembrava um diálogo discreto,
Avançou sobre o preso, em tumulto completo...
Não houve qualquer tempo
Para maior explicação.
Aos gritos delirantes
De “morte ao matador”,
Sob a guarda robusta
Que tomara feitio protetor,
O infeliz a tremer, triste e descalço,
Subiu ao cadafalso...
 
Alguns momentos mais,
E o corpo entremostrando angústia indefinida,
Balançava sem vida.
E, na turba, a gritar, perante a horrível cena,
Entre vaias finais e assovios plebeus,
O sacerdote em pranto,
Sem que o povo lhe ouvisse a palavra serena,
Murmurava, sozinho, em pequeno recanto:
— “A justiça é de Deus... A justiça é de Deus...”
 
DOLORES, Maria (Espírito). Coração e Vida. Psicografado por Chico Xavier. São Paulo, SP: IDEAL, 1978.


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